3) O direito nas sociedades arcaicas
As sociedades arcaicas refletem a sua organização social diretamente no direito. Essas sociedades baseiam toda a sua estrutura social no princípio do parentesco. A primeira diferenciação identificada por Luhmann, a segmentária, é percebida quando várias famílias se juntam, implicando a formação de novas famílias, "cuja coesão em uma tribo é mantida com base na ascendência e na história comum." [17]. Pelo fato de as relações estarem ligadas às relações de parentesco, a complexidade é bastante reduzida, não acarretando a existência de alternativas diferenciadas para a solução de conflitos.
Outra característica é a pouca diferenciação funcional dos papéis sociais, "o que resulta na impossibilidade de fixação de critérios especiais para a vigência do direito." [18]. Como consequência disso, percebe-se que o direito não tinha praticamente nada de abstrato; as normas aplicadas para a solução dos casos eram altamente concretas, ou seja, surgiam à medida que surgia uma nova situação que precisava ser resolvida. Não havia, portanto, a preocupação com a enunciação de normas de convivência para casos futuros, pois imperava o imediatismo da resolução. Entretanto, essa situação só foi possível por conta do baixo grau de complexidade das sociedades arcaicas:
"O centro da gravidade de consciência arcaica reside, portanto, em seu presente constantemente arriscado e pobre em possibilidades, o qual logo se obscurece na penumbra de um horizonte temporal indeterminado do passado, e que quase não tem futuro; pois só no presente existem vida e comunicação." [19]
O procedimento jurídico era, na verdade, ritualístico, expressando a concretude do direito em detrimento de seus aspectos futuros.
Entretanto, a sociedade é altamente dinâmica e não se configura da mesma forma por muito tempo. O desenvolvimento econômico, o surgimento de cidades, a quebra das relações de parentesco e vários outros elementos acarretaram o aumento da complexidade social. O direito até então vigente não era mais suficiente para a resolução de conflitos muito mais complexos que os anteriores. Assim, a sociedade foi passando por um novo processo de transformação, a qual Luhmann denominou diferenciação por estratificação, tendo reflexos na vigência do direito.
4) O direito nas sociedades antigas.
Nessas sociedades, principalmente em função do rearranjo social, várias características do direito anterior foram transformadas. Começou a surgir o centro funcional da política, tendo repercussão na diferenciação dos papéis sociais, o que ocasiona a formação de uma hierarquia de dominação, estatuindo a diferença entre níveis inferiores e superiores. Essa organização é de suma importância para as sociedades antigas pois é ela que possibilita a dominação política por certos grupos.
Nessa fase, inicia-se também a institucionalização do direito:
"Em face da configuração política da sociedade, tornam-se necessárias instâncias e processos, para que seja possível a convivência entre homens livres de forma juridicamente sustentável." [20]
Com isso, não era mais suficiente a aplicação concreta do direito; exigia-se uma certa abstração. Com a diferenciação dos papéis, começou-se também a distinguir uma pessoa responsável especificamente por essa tarefa de resolução de conflitos. Daí advém a necessidade de estar presente um juiz neutro, que não interfira parcialmente na decisão do caso concreto. Com esses novos aspectos, o direito começa a ter um sentido particular, se diferenciando levemente do restante do ambiente social, ou seja, tendo características próprias.
Com o aumento da complexidade, surgem novas alternativas de soluções jurídicas. Assim, a crescente complexidade é acompanhada de um simultâneo aumento contingencial. Isso, para Luhmann, significa desenvolvimento. Diante dessas novas dificuldades, a sociedade deve arranjar meios para que possa reduzi-las e, assim, tornar as comunicações mais diretas e fáceis. Dessa forma, diante da incipiente abstração do direito, percebem-se novos efeitos, como o aprimoramento da formação do jurista e uma mudança na concepção de direito vigente, a qual perde a identificação do direito com o caso concreto, passando a admitir o âmbito jurídico relacionado a uma norma que servirá de base para um futuro julgamento. Assim, já começa a surgir uma separação entre as expectativas cognitivas e as normativas, inexistente na sociedade anterior. Assim destaca Luhmann:
" O processo judicial das culturas antigas é, assim, uma combinação das diversas formas evolutivas em todas as dimensões da generalização das expectativas. E é só nessa combinação que o processo muda o nível de congruência do direito. O processo, portanto, não é nenhuma ‘unidade natural’, mas uma generalização que coordena vantagens – de forma semelhante ao já visto com respeito à ideia de hierarquia." [21]
Além dessas características, cabe destacar o surgimento da conexão entre o direito e a moralidade e também é desse período a advento das ideias do direito natural, imanente a cada indivíduo e, portanto, imutável. Dessa concepção, emergem aspectos que se ligam ao direito como as concepções de justiça. Essa situação pode ser ilustrada pela distinção grega entre a lei natural – "physis" – e o direito – "nomos".
Esse direito é sustentado até o momento em que a complexidade e a contingência de uma sociedade transformada não podem mais ser contidas por esse sistema. O dinamismo da sociedade obriga a implementação de diferentes mecanismos de conciliação da vida social com a complexidade emergente. Nasce, assim, a sociedade moderna e, por conseguinte, a diferenciação funcional.
5) O direito e a sociedade moderna
A mudança da sociedade incentiva e possibilita a transformação do direito. Nessa fase de diferenciação funcional, chega-se a um ponto em que o direito necessita ser altamente abstrato para que possa eficazmente realizar sua função de generalizar as expectativas normativas. A diferenciação funcional acarreta um crescimento dos problemas internos na sociedade e, dessa forma, um crescimento dos encargos decisórios em todos os planos da generalização. Nesse contexto, ao papel da legislação é conferida extrema relevância.
É conveniente ressaltar, no entanto, que a legislação não é um fenômeno atual. Ela já existe desde as culturas mesopotâmicas, mas, nesse período, o status jurídico dessa legislação era extremamente precário. Em Roma também houve um enfoque na legislação, mas seu caráter era diferente do caráter legislativo da sociedade moderna. Lá, era praticamente impossível a sua alteração. É somente com o enraizamento da diferenciação funcional que a legislação ganha um caráter específico.
Convém ressaltar ainda a distinção entre a diferenciação segmentária e a diferenciação funcional, baseada no princípio de divisão da sociedade em sistemas parciais. Sobre isso, diz Luhmann:
"Na diferenciação segmentária são formados diversos sistemas iguais ou semelhantes: a sociedade compõe-se de diversas famílias, tribos, etc. Na diferenciação funcional, os sistemas parciais, ao contrário, são formados para exercerem funções especiais e específicas, sendo, portanto, distintos entre si: para a política e a administração, para a economia, para a satisfação de necessidades religiosas, para a educação, para cuidar dos doentes, para funções familiares residuais." [22]
A partir do século XVIII, o direito só poderia ser considerado como tal se ele estivesse positivado. Por isso, afirma-se que a exigência para que o direito fosse considerado vigente era a sua positivação. Assim, vincula-se, no século XIX, a produção do direito ao Estado. Como conseqüência disso, surge a concepção de uma hierarquia das leis, tendo por base a fonte do direito. Luhmann denomina esse fenômeno de "catálogo de leis" [23]. Dessa forma,
"(...) a estrutura hierárquica das normas diferenciava e canalizava as reações a insuficiências, a ambivalências ou à falta de normas, dependendo do plano em que o problema fosse localizado. " [24]
Essas leis tinham um caráter de mutabilidade e de vigência condicionada distinto do caráter da legislação anterior à sociedade moderna.
À primeira vista, dá-se a entender que o papel do jurista ficou um pouco mitigado em relação ao papel do legislador. Em um primeiro momento isso realmente ocorreu, mas no século XX, conclui-se que nem todo direito tem forma de lei, admitindo-se, assim, o direito formulado pelos juízes – mas sempre seguindo os padrões do direito vigente. Essa constatação adveio do enorme número de problemas internos à sociedade que demandavam inúmeras outras decisões judiciais. Assim, pode-se dizer que esse direito das sociedades modernas
"(...) vige não por estar em consonância com normas superiores, mas porque sua alta seletividade preenche a função básica do sistema jurídico – o estabelecimento da congruência." [25]
E ainda complementa:
"Fica clara, então, (...) a relação existente entre o processo de positivação do direito e o desenvolvimento da forma de diferenciação funcional, entre a crescente abstração e especificação dos sistemas parciais da sociedade e a superprodução de possibilidades estruturalmente condicionadas." [26]
BIBLIOGRAFIA
CARVALHO NETO, Menelick de. A Hermenêutica Constitucional sob o Paradigma do Estado Democrático de Direito In: Notícia do Direito Brasileiro – nova série, N.G. Brasília: Ed. UnB, 2º sem. De 1998.
LUHMANN, Niklas. A posição dos Tribunais no sistema jurídico. In: Revista da Ajuris. N.º 49. Porto Alegre: Ajuris, julho de 1990 (trad. de Peter Nauman).
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Modernidade, Tempo e Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.
Notas
- LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. Pág. 45.
- LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. Pág. 167.
- Idem. Pág. 169.
- NAVAS, Alejandro. In: PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Modernidade, Tempo e Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. Pág. 204.
- PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Modernidade, Tempo e Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. Pág. 212-213.
- LUHMANN, Niklas. Op.cit. Pág. 174.
- LUHMANN, Niklas. A posição dos Tribunais no sistema jurídico. In: Revista da Ajuris. N.º 49. Porto Alegre: Ajuris, julho de 1990 (trad. de Peter Nauman). Pág. 150.
- LUHMANN, Niklas. A posição dos Tribunais no sistema jurídico. Pág. 153.
- Idem. Pág. 154.
- Idem. Pág. 155.
- Idem. Pág. 155.
- Idem. Pág. 157.
- Idem. Pág. 159.
- Idem. Pág. 160.
- Idem. Pág. 164.
- Idem. Pág. 164.
- Idem. Pág. 184.
- PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Op.cit. Pág. 218.
- LUHMANN, Niklas. Op.cit. Pág. 188.
- PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Op.cit. Pág. 222.
- LUHMANN, Niklas. Op.cit. Pág. 211.
- LUHMANN, Niklas. Op.cit. Pág. 176.
- LUHMANN, Niklas. Op.cit. Pág. 231.
- Idem. Pág. 231.
- PINTO, Cristiano Paixão Araújo. Op.cit. Pág. 235.
- Idem.