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A fiscalização do trânsito pela Guarda Municipal.

A atuação dos guardas municipais como agentes de trânsito

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5. A ANÁLISE DA GUARDA MUNICIPAL SOB A ÓTICA DO INTERESSE PÚBLICO

Cabem, ainda, algumas considerações da temática, agora a partir do conceito de interesse público, ou seja, se a constituição de um órgão municipal de "fiscalização do trânsito urbano", nada obstante a previsão do artigo 107, I, "e" da Constituição Estadual (SC), poderia, de alguma forma, atentar contra o interesse público.

Por certo, não é tarefa fácil definir o que se deva entender por "interesse público", havendo quem o defenda como verdadeiro topoi [12], um lugar comum (loci), e que por isso mesmo dispensaria uma definição mais precisa, até para facilitar sua adequada e eficiente aplicação [13].

Discorrendo acerca do tema, Bandeira de Mello sustenta que o "interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem" [14]. (grifos do original)

Aprofundando o debate, Justen Filho propõe uma conceituação negativa de interesse público, ou seja, a partir daquilo que não configura o conceito ou com ele se confunde, a fim de chegar àquilo que poderia ser assim definido. Primeiramente, defende que o interesse público não se confunde com o interesse do Estado, já que este é sim instrumento de realização daquele. O interesse público sequer é essencialmente de titularidade do Estado, já que existem interesses públicos não estatais, como o caso do chamado terceiro setor. Por outro lado, sob as balizas de uma Constituição republicana e democrática como a nossa, não se pode entender o Estado senão como instrumento de satisfação dos interesses públicos, ou seja, a consecução dos direitos fundamentais, instância última de legitimação da própria estrutura estatal [15].

Da mesma forma, "nenhum ‘interesse público’ se configura como ‘conveniência egoística da administração pública", já que o chamado interesse secundário ou interesse da Administração Pública não é público, sendo sequer verdadeiro interesse, mas mera conveniência circunstancial. Nem se confunde com os interesses do agente público, que deve pautar suas ações segundo os interesses da coletividade abstratamente considerada, e não interesses privados e egoísticos. O Estado "somente está legitimado a atuar para realizar o bem comum e a satisfação geral" [16].

O interesse público também não pode, por certo, ser qualificado como o interesse da maioria da população, o que afrontaria sobremaneira ao princípio do Estado democrático de direito, destruindo e marginalizando os interesses das minorias, em uma perigosa supremacia ou ditadura dos interesses da maioria, esta quase sempre eventual, sazonal e manipulável.

O conceito de interesse público, um conceito jurídico indeterminado [17], não pode ser resumido a uma questão numérica, sob pena de afronta direta e extremamente perigosa ao princípio do Estado democrático de direito. Não se trata de um conceito quantitativo, mas sim qualitativo, devendo ser entendido como o interesse coletivo abstratamente considerado, a partir dos valores consolidados pelo sistema constitucional. O interesse público é a expressão dos valores indisponíveis e inarredáveis assegurados pela Constituição. Não se trata, pois, de buscar o interesse público (singular), mas os interesses públicos consagrados no texto constitucional, que inclusive podem se apresentar conflitantes na conformação do caso concreto, o que exige necessariamente uma ponderação de valores, a fim que resolver o conflito entre princípios no problema prático.

Com inteira razão, portanto, está Justen Filho quando defende que o conceito de interesse público envolve uma questão ética e não técnica. "Há demandas diretamente relacionadas à realização de princípios e valores fundamentais, especialmente a dignidade da pessoa humana... O ponto fundamental é a questão ética, a configuração de um direito fundamental. Ou seja, o núcleo do direito administrativo não reside no interesse público, mas nos direitos fundamentais" [18].

A satisfação otimizada, ou seja, o grau máximo de implementação do interesse público surge a partir da satisfação e implementação dos direitos fundamentais, da concretização da carta de direitos esculpida na Constituição Federal, e que deve nortear cada ação administrativa, cada política pública, cada passo do poder público.

Logo, não resta dúvida que as competências de "fiscalização do trânsito urbano" e "autuação de infrações ao trânsito" (atividade de polícia), são claros mecanismos fomentadores da defesa do bem último e maior de todo ser humano: a dignidade humana e a própria vida.

A carnificina em que se tornou o trânsito brasileiro deixa extreme de dúvidas que não temos motoristas educados sob as balizas das práticas de direção defensiva. E pior, a julgar pelos números veiculados nos órgãos de informação (jornais, televisão e internet), que infelizmente posicionam Santa Catarina na vergonhosa, alarmante e lastimável vice-liderança das estatísticas de morte por acidentes de trânsito (atrás apenas do Estado de Minas Gerais), somos convencidos de que em nosso Estado a educação no trânsito está longe de ser adequada.

Negar o acerto político, jurídico e social das competências de polícia de trânsito para as Guardas Municipais, equivale a dar as costas a uma realidade que nos assombra a cada dia, e mais fortemente nos finais de semana e feriados. Ficamos como que em compasso de espera. Toda a segunda-feira e depois de feriados vêm o já esperado (notícia certa): Saldo de Vítimas do Trânsito – Numero de mortos X, vítimas não fatais Y. Trata-se de uma triste realidade, que não admite a omissão dos poderes constituídos.

A política legislativa e administrativa representada pela constituição de "Guarda Municipal", com as atribuições de fiscalização de trânsito, é hialina, inescusável, clara e inconteste: a ordenação, a organização, a fiscalização e o (consequente) fomento à educação no trânsito. Essa política, resposta clara à aterradora realidade sangrenta de nossas vias públicas (muito mais sangrentas e letais que qualquer guerra civil ou guerra santa da atualidade), não pode, sob qualquer hipótese, receber a pecha de inconstitucional.


6. A ANÁLISE SOB A ÓTICA DA MÁXIMA DA RAZOABILIDADE

E ai surge a seguinte questão: qual é o argumento legítimo para atacar as competências de fiscalização do trânsito urbano pela "Guarda Municipal"? Qual a justificativa para tachar de inconstitucional tais atribuições? Simplesmente, não há argumentação razoável capaz de se contrapor efetivamente à política pública traçada na legislação acima colacionada.

Primeiro, se há dúvida acerca da constitucionalidade da medida hostilizada, mesmo assim, deve-se dar prevalência ao princípio da presunção de legalidade, legitimidade e constitucionalidade das leis.

Segundo, em nada se mostra atentatório à razoabilidade a medida ora discutida, porquanto pretende em última análise defender o bem maior, a vida, fiscalizar e assegurar um trânsito mais seguro, humano e menos letal.

Conforme é sabido, "até em razão da vagueza e indeterminação do termo jurídico, não é tarefa fácil estabelecer um conceito com pretensões de universalidade à máxima da razoabilidade. Seu conteúdo é bastante mutável e consideravelmente influenciado pelos padrões culturais da sociedade, variando nos aspectos temporais e espaciais. Entretanto, ainda que reconhecido seu alto grau de abstração, deve-se perseguir a instituição de elementos objetivos na caracterização da razoabilidade dos atos legislativos e administrativos" [19]. (sem grifo no original)

Segundo Luiz Roberto Barroso, o princípio (máxima) da razoabilidade "é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo o ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de proposições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em um dado momento ou lugar" [20]. (grifou-se)

Pode-se dizer, por fim, que a "máxima constitucional da razoabilidade é uma orientação, uma diretiva interpretativa que permite a aferição acerca da legalidade substancial dos atos administrativos e legislativos, não o mero controle formalístico. Permite alcançar o sentido finalístico da norma, a conformidade teleológica entre o ato praticado e o mandamento normativo. Não a simples legalidade formal, em sentido estrito, mas a legalidade material, ou melhor, a juridicidade das leis e dos atos administrativos" [21].

Não há qualquer afronta à máxima da razoabilidade na política legislativa e administrativa representada pela constituição de "Guarda Municipal", com as atribuições de fiscalização de trânsito.


7. A ANÁLISE SOB A ÓTICA DA MÁXIMA DA PROPORCIONALIDADE

Afora o cumprimento ao princípio da razoabilidade, há que se reconhecer que a medida eleita não se mostra atentatória à proporcionalidade e suas máximas constitutivas. Cabe, pois, uma análise em separado de cada uma delas.

7.1 – Máxima da conformidade ou da adequação dos meios (Geeignetheit)

Cumpre, primeiramente, uma análise acerca da máxima da conformidade ou da adequação dos meios, quando estabelece que o "Poder Público, na prática de seus atos, deve adotar medidas apropriadas ao alcance da finalidade prevista no mandamento que pretende cumprir. A medida adotada deve ser pertinente à consecução dos fins previstos na lei. Em outras palavras, a satisfação do interesse público deve ser buscada segundo meios idôneos, proporcionais, adequados, exigindo-se a existência de conformidade entre os meios empregados e os fins inscritos na norma" [22].

Segundo José Joaquim Gomes Canotilho, a exigência de adequação pressupõe a investigação e a prova de que a atividade administrativa está conforme aos fins justificativos de sua adoção, um controle da relação de adequação medida-fim. "Este controlo, há muito debatido relativamente ao poder discricionário e ao poder vinculado da administração, oferece maiores dificuldades quando se trata de um controlo do fim das leis dada a liberdade de conformação do legislador" [23].

Por outro lado, conforme ensina Luís Virgílio Afonso da Silva, a jurisprudência alemã não exige que com o meio empregado seja alcançado o objetivo, mas sim que seja fomentada, promovida a finalidade visada. Deve-se aferir acerca da conformação entre os meios utilizados e o possível fomento do objetivo almejado [24]. Desta forma, o "controle dos atos do poder público (poderes legislativo e executivo), que devem atender à ‘relação de adequação medida-fim’, pressupõe a investigação e prova de sua aptidão para e sua conformidade com os fins que motivaram a sua adoção" [25].

Neste sentido, o "juiz, quando do controle da proporcionalidade dos atos do Poder Público, deve examinar se o meio escolhido é idôneo à obtenção do resultado pretendido pela lei, à satisfação do interesse público. Não deve, entretanto, exigir uma total e absoluta adequação entre meios e fins, deve sim examinar a conformidade da medida sob o enfoque negativo, invalidando os atos praticados em descompasso com os fins pretendidos pela norma que visavam cumprir" [26].

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Inegável que a medida eleita pelo legislador municipal mostra-se em tudo adequada e proporcional, pelo que deve ser reconhecida sua regularidade, legalidade e constitucionalidade.

7.2 – Máxima da exigibilidade ou da necessidade (Erforderlichkeit)

Acerca da máxima da exigibilidade ou da necessidade (Erforderlichkeit), cabe asseverar que "compete ao juiz averiguar se a medida tomada pela Administração ou pelo Poder Legislativo, dentre as aptas à consecução do fim pretendido, é a que produz menor prejuízo aos cidadãos. Dentre as intervenções disponíveis deve ser escolhida a menos onerosa, que em menor dimensão restrinja e limite os direitos fundamentais" [27]. A máxima da necessidade exige que "a medida restritiva seja indispensável para a conservação do próprio ou de outro direito fundamental e que não possa ser substituída por outra igualmente eficaz, mas menos gravosa" [28].

O controle jurisdicional da necessidade da providência restritiva deve apurar a possibilidade do Poder Público ter adotado outra medida, igualmente eficaz e menos desvantajosa à coletividade. "O pressuposto do princípio da necessidade é que a medida restritiva seja indispensável para a consecução do próprio ou de outro direito fundamental e que não possa ser substituída por outra igualmente eficaz, mas menos gravosa" [29].

E qual é o instrumento, o mecanismo, a forma, à disposição do Poder Público capaz de efetivamente contribuir para a organização no trânsito se não a fiscalização e a sanção às infrações. Alguns diriam: ora, a propaganda. Os meios de comunicação em massa. E ai vale rebater da seguinte forma: a propaganda já vem sendo feita, ostensivamente, há vários anos. Mas não vem alcançando os resultados necessários. O que se pretende com a atribuição de competências de fiscalização de trânsito para a "Guarda Municipal" é trazer mais um instrumento potencialmente fomentador de uma adequada consciência no trânsito, visando minorar os seus efeitos letais e crescentemente assustadores.

Inequivocamente, a efetiva fiscalização no trânsito contribuirá para a diminuição das infrações de trânsito, trazendo, inclusive, o efeito pedagógico típico da atividade fiscalizatória. E neste caso, a medida eleita mostra-se em tudo necessária e exigível, pelo que não se pode considerá-la atentatória à máxima da proporcionalidade, na máxima da exigibilidade.

7.3 – Máxima da ponderação ou proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit)

Por fim, vencidas as duas máximas anteriores, cabe averiguar acerca do cumprimento da máxima da ponderação ou proporcionalidade em sentido estrito (Verhältnismässigkeit), pela qual "deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à carga coativa da mesma. (…) Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objectivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim" [30].

Aqui, por outro lado, não se pode falar, propriamente, em restrição de direitos fundamentais ou colisão entre princípios, mas sim, por outro lado, de efetivação e concretização de direitos fundamentais, quais sejam, a segurança no trânsito, a defesa da vida e da dignidade humana, não havendo, ao que parece, carga argumentativa capaz de respaldar a alegada inconstitucionalidade da política legislativa e administrativa representada pela constituição de "Guarda Municipal", com as atribuições de fiscalização de trânsito.

Ante o estabelecimento claro de uma política pública baseada em uma diretriz que informa todo a Constituição Federal, bem como a Constituição Estadual e o Código de Trânsito Brasileiro, não cabe uma intervenção desavisada do Poder Judiciário. Somente seria legítima a intervenção jurisdicional suspendendo a execução da política pública traçada se clara à afronta aos princípios constitucionais e aos valores sociais e políticos respaldados constitucionalmente. Mas esse não parece ser o caso.

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Sobre o autor
José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTÓVAM, José Sérgio Silva. A fiscalização do trânsito pela Guarda Municipal.: A atuação dos guardas municipais como agentes de trânsito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2976, 25 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19844. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

O presente artigo reproduz, ressalvadas algumas revisões e adaptações pontuais, as considerações que foram alinhadas pelo autor, por ocasião da defesa (na qualidade de Curador Especial) da constitucionalidade da <em>Lei Municipal n. 4.144/2004, do Município de São José (SC)</em>, que sofre Ação Direta de Inconstitucionalidade (<em>ADI n. 2009.072645-5, de São José (SC)</em>) perante o Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), sob a relatoria do Eminente <em>Desembargador Vanderlei Romer</em>, ainda pendente de julgamento.

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