III. Sistema difuso de reconhecimento de sentenças estrangeiras e a necessidade de mudança na redação do texto constitucional
Quanto à competência para o reconhecimento, inicialmente e por breve período, o País adotou o sistema descentralizado: as decisões estrangeiras recebiam o "cumpra-se" do juiz que seria competente para a execução da decisão similar nacional, pelo qual a sentença se tornava exequível no território nacional, mediante certas condições (matéria regulada pelo Aviso de 01.10.1847, do Governo Imperial). Em 1878, o Dec. 6.982, de 27.07.1878, da lavra do Conselheiro Lafayette Pereira, cumprindo disposição da Lei n. 2.615, de 1875, regulou o assunto, estabelecendo as condições necessárias para o reconhecimento.
Entre estas, não se mencionava a competência do juiz prolator; exigia-se, porém, que tivessem as sentenças transitadas em julgado e que viessem revestidas das formalidades externas necessárias para torná-las executórias, segundo a legislação do respectivo Estado. Entretanto, não seriam executáveis as que contivessem decisão contrária à soberania nacional ou ordem pública, às leis rigorosamente obrigatórias ou organizadoras da propriedade territorial ou leis de moral.
A Constituição de 1934, pela primeira vez, tratou da matéria (art. 76, I, g), mantendo-se a competência centralizada, tendo todas as Cartas posteriores expressamente adotado a regra da competência da Corte Suprema para homologar as sentenças estrangeiras: Constituição de 1937 (art. 101, I, f), Constituição de 1946 (art. 101, I, g), Constituição de 1967 (art. 114, I, g) e sua EC 1, de 17.10.1969 (considerada como Constituição de 1969, art. 119, I, g) e Constituição de 1988 (art. 102, I, h).
A Emenda Constitucional n. 45, de 2004, já se tornou conhecida como "A Reforma do Judiciário". Um dos principais aspectos dessa emenda foi retirar do Supremo Tribunal Federal a competência originária para o processo de homologação de sentença estrangeira. Essa competência, desde então, é do Superior Tribunal de Justiça.
Comentando esta mudança trazida pelo constituinte de 2004, CÂMARA, através de uma abordagem histórica constitucional, igualmente concluiu que houve uma ruptura com a antiga tradição do direito brasileiro.
"A Constituição de 1934 foi a primeira a atribuir ao Supremo Tribunal Federal (que era ali chamado de Corte Suprema) a competência para esse processo, o que fez por seu art. 76, g, cuja redação era a seguinte:
Art. 76. A Corte Suprema compete: (...) g) a extradição de criminosos, requisitada por outras nações, e a homologação de sentenças estrangeiras.
Esse sistema foi mantido pela Constituição de 1937, cujo art. 101, I, f, assim estabelecia:
Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete: I — processar e julgar originariamente: (...) f) a extradição de criminosos, requisitada por outras nações, e a homologação de sentenças estrangeiras.
A Constituição de 1946 foi fiel às anteriores, estabelecendo, em seu art. 101, I, g, assim redigido:
Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete: I — processar e julgar originariamente: (...) g) a extradição dos criminosos, requisitada por Estados estrangeiros e a homologação das sentenças estrangeiras.
Há, como se pode ver, uma ligeira diferença entre a redação do texto alusivo ao ponto nas Constituições de 1934 e 1937, de um lado, e na de 1946, de outro. Dessa mudança de texto, de suas conseqüências, e do modo como a matéria foi tratada nos textos constitucionais posteriores tratar-se-á adiante.
A Constituição de 1967 manteve o sistema estabelecido pela de 1946, como se pode ver pelo seu art. 114, I, g, assim redigido:
Art. 114. Compete ao Supremo Tribunal Federal: I — processar e julgar originariamente: (...) g) a extradição requisitada por Estado estrangeiro e a homologação das sentenças estrangeiras.
Também a Constituição de 1988, em seu texto original, se manteve fiel ao modelo anterior, como se podia ver de seu art. 102, I, h, assim redigido:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I — processar e julgar, originariamente: (...) h — a homologação das sentenças estrangeiras e a concessão do 'exequatur' às cartas rogatórias, que podem ser conferidas pelo Regimento Interno a seu Presidente.
Vê-se, pois, que de 1934 a 2004 foi do Supremo Tribuna Federal a competência originária para o processo de homologação de sentenças estrangeiras. Há, porém, um movimento destinado a transformar o Supremo Tribunal Federal brasileiro em uma verdadeira Corte Constitucional, o que tem levado a se retirar daquele Tribunal as competências sobre matérias que não sejam estritamente constitucionais.
Por conta dessa tendência é que a Emenda Constitucional n° 45 revogou a já citada alínea h do art. 102, I, da Constituição e, além disso, acrescentou ao art. 105, I, da Lei Maior, uma alínea i, com a seguinte redação:
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: (...) I — processar e julgar, originariamente: (...) i) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias.
Rompeu-se, pois, com um sistema que vigorou durante setenta anos".
O Brasil, como mencionado, durante longos anos optou por conferir ao Supremo Tribunal Federal a função, basicamente administrativa, de analisar estes pedidos formais de cooperação judicial internacional como forma de, dentre outros motivos não menos importantes, exercer sua função de zelar pelo respeito à ordem pública nacional, esculpida especialmente em nossa Constituição através dos direitos e garantias fundamentais e dos princípios gerais de direito.
Induvidosamente, o objetivo da mudança é reduzir as competências do STF, já assoberbado de processos, e dar-lhe um perfil mais aproximado ao de uma Corte Constitucional.
Ademais, tardia fora a retirada da competência do STF para esse processo, que versa sobre matéria infraconstitucional.
De outro lado, pensamos que o constituinte derivado deveria ter acabado com o processo de homologação de sentença estrangeira, permitindo que coubesse ao juízo de primeira instância, competente para conhecer da causa em que a sentença estrangeira tivesse de produzir seus efeitos, o poder de verificar, incidenter tantum, se presentes os requisitos de sua eficácia no Brasil.
O modelo aqui proposto não é desconhecido no direito comparado. Na maioria dos países desenvolvidos a competência para a homologação de sentenças estrangeiras é atribuída aos juízes de 1ª instância (Alemanha, França, Canadá, Suíça, Itália dentre outros).
Por outro lado, alguns ordenamentos preveem o reconhecimento automático da sentença estrangeira, conforme previsto no Regulamento nº CE44/2001 e no Código-Modelo de Cooperação Interjurisdicional para Iberoamérica e que integrou o sistema brasileiro pelo derrogado art. 15, parágrafo único, do CC, ao menos em relação a algumas sentenças.
A mudança no sistema de concentração do reconhecimento das sentenças estrangeiras (que continua a ser adotado, ainda que tenha mudado o Tribunal competente para tal reconhecimento) traria maior evolução para o direito brasileiro, se passado a um sistema difuso de reconhecimento de tais sentenças.
Sob tal prisma, seria do mesmo modo alcançada a aspiração de se diminuir as competências do STF e não se teria ampliado o rol das competências do Superior Tribunal de Justiça, tão afogado em processos quanto a Suprema Corte do país.
Durante a tramitação da emenda, cogitou-se transferir tal função aos juízes federais, ou seja, adotar-se-ia o ora proposto sistema difuso de reconhecimento de sentenças estrangeiras. Pensou-se no sentido de que tal sistema poderia ser mais uma fonte de morosidade, tendo em vista a quantidade de recursos que poderiam ser interpostos até o trânsito em julgado da decisão.
Da decisão proferida pelo juízo de primeiro grau, evidentemente; seriam cabíveis os recursos previstos no sistema processual vigente, mas dificilmente essa matéria chegaria ao Supremo Tribunal Federal, já que dificilmente haveria uma questão constitucional de repercussão geral discutida a respeito do ponto. Poder-se-ia, no máximo, ir ao Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso especial, quando fosse o caso, e com isso ficaria garantida a possibilidade de controle, pelo STJ, do reconhecimento por juízes brasileiros da eficácia de sentenças estrangeiras.
Defendemos, pois, uma posição intermediária: reconhecimento difuso, mas não automático.
Assim, seria perfeitamente possível atribuir-se ao juízo de primeira instância, competente para dar cumprimento à sentença estrangeira, o poder de verificar, incidenter tantum, se estão presentes os requisitos para o reconhecimento da eficácia daquele provimento alienígena no Brasil.
Com sua imediata vigência e sem normatização de suas disposições, repentinamente, viu-se o STJ com novos processos sobre a mesa, imaginando os interessados que tudo andaria sem atropelos. Não nos enganemos.
A sobrecarga de trabalhos que recai sobre o STJ é tão grande, quanto aquela que onera o STF e muita coisa ainda deverá ser feita em prol da reforma do Judiciário. Não se sabe ainda como a lei regulará esses processos. Todavia, considerando que jurisdição é expressão de soberania e obrigatoriamente deve estar vinculada à ordem pública interna e, mais ainda, quando se trata de recepção comiter de soberania estrangeira, não se deve olvidar que algumas decisões do STJ poderão desaguar no STF, em função de recursos constitucionais. Mesmo com o acréscimo do § 3° ao art. 102 da Magna Carta pela EC 45/2004, a hipótese é real.
CONCLUSÃO
Observou-se que a cooperação judicial precisa acompanhar a crescente internacionalização das relações econômicas e sociais, e desenvolver mecanismos que permitam o máximo de agilidade no trâmite internacional das referidas medidas. A necessidade de uma providência internacional no curso de um processo judicial não pode ser prejudicada em sua viabilidade pelo elevado custo ou tempo de duração.
No que se refere à homologação de sentenças estrangerias, o sistema brasileiro não admite a discussão acerca do meritum causae. A apreciação do juízo nacional cingir-se-á a competência, a observância do contraditório e a adaptação do julgado à nossa ordem pública, aos bons costumes e à soberania nacional.
Os requisitos de homologabilidade bem como o procedimento desta nacionalização da sentença estrangeira, estão previstos em nosso ordenamento interno no artigo 5° da Resolução n. 9, de 04 de maio de 2005. Quanto à contestação esta somente poderá versar sobre a autenticidade dos documentos, a inteligência da sentença e a observância dos requisitos exigidos pelo sistema jurídico positivo para a homologação. Veda-se, pois, a discussão de aspectos ligados ao mérito da sentença estrangeira, a não ser para estabelecer eventual afronta à ordem pública, à soberania nacional e aos bons costumes.
No decorrer de nossa análise, sugerimos a adoção de um sistema difuso de reconhecimento das sentenças estrangeiras. Assim, acabar-se-ia com o processo de homologação de sentença estrangeira, permitindo que coubesse ao juízo de primeira instância, competente para conhecer da causa em que a sentença estrangeira tivesse de produzir seus efeitos, o poder de verificar, incidenter tantum, se presentes os requisitos de sua eficácia no Brasil. A adoção do sistema proposto, induvidosamente prestigiaria a tão aspirada celeridade na Cooperação Jurídica Internacional e ao mesmo tempo, não se teria ampliado o rol das competências do Superior Tribunal de Justiça, já tão sobrecarregado de trabalhos.
Em linhas conclusivas, entendemos que a concentração em tribunal superior, no caso, STJ, do reconhecimento dos atos estrangeiros, inviabiliza a eficácia da prestação jurisdicional célere. A situação ainda se agrava, vez que todos os processos de homologação de sentença estrangeira instaurados são diretamente remetidos ao Presidente do STJ.
O sistema atual inviabiliza a adoção de providências básicas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), sendo muito mais razoável, que se outorgassem competências aos juízes de 1º grau, internamente competentes para tratar as mesmas matérias.
Não obstante o conspícuo e nobre argumento apresentado, o remendo constitucional apenas mudou o problema de lugar.
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