6. APONTAMENTOS DA TEORIA CRÍTICA NA INVESTIGAÇÃO ONTOLÓGICA DO DIREITO
Vimos até aqui diferentes conceitos de direito, não só em divergentes enfoques dentro do positivismo, a partir da ótica da Teoria do Direito, mas também com a vertente mais diferenciada da sociologia jurídica, que busca uma análise do direito enquanto fenômeno dialético.
Neste momento, queremos, sucintamente, apontar a visão da Teoria Crítica do Direito na investigação do que é o direito, ou seja, qual a sua preocupação ontológica com o fenômeno jurídico.
Luiz Fernando COELHO, em sua obra Introdução à crítica do direito40, diz que “o problema ontológico da juridicidade é falso problema que a filosofia do direito criou, em seu papel ideológico de reforçar a imagem do direito como algo que ‘existe’ e que portanto deve ser aceito com naturalidade”41.
Isso porque entende que o problema verdadeiro a ser abordado, e que as teorias até então não o fizeram, é o de buscar-se entender o direito a partir de uma “ontologia real”, quer dizer, a partir da sociedade concreta.
E nesta sociedade, para o autor, o direito “não é um ser, mas um conjunto ideologizado de princípios daquela realidade social, uma realidade construída pelo homem no processo histórico e em permanente transformação”42 e, acrescenta, que o problema de sua ontologia é falso porque a busca de seu entendimento como um direito-em-si apenas situa-se no plano da legitimação da práxis.
Assim, o olhar da Teoria Crítica do Direito é o de questionamento do ser jurídico, buscando um outro ponto de partida para analisar a ontologia do direito, qual seja, a busca do entendimento do direito “como prática social específica, na qual se manifestam os grupos sociais em suas interações históricas”43.
Citando ENTELMAN, COELHO apresenta o modo como a Teoria Crítica encara o fenômeno jurídico, como “prática social específica na qual estão expressados historicamente os conflitos, os acordos e as tensões dos grupos sociais que atuam em uma formação social determinada”44.
Assim, vemos que a postura da Teoria Crítica é não somente de questionamento e crítica do direito, negando-se a entender o direito como conjunto de normas, instituição burguesa. A Teoria Crítica adota também um entendimento e uma proposta para o direito a partir da prática social, proposta esta de verdadeira intervenção na realidade.
A partir disto é que ela, enquanto teoria, busca reclamar um novo estatuto epistêmico para o direito, de modo a compreendê-lo, explicá-lo e conceituá-lo em sua flutuação histórica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que é “direito”, ou um conceito único e definitivo de direito é algo difícil de se conseguir alcançar, nada pacífico nem entre as várias ciências e a filosofia, quando se propõem a analisar o problema, nem entre as inúmeras vertentes que cada uma delas possui.
Assim, vimos que mesmo entre expoentes do positivismo, KELSEN, HART e BOBBIO, não existe uma única idéia sobre o conceito de direito. Embora todos perpassem a esfera da normatividade e da coatividade como elementos fundamentais da definição, cada um, a seu modo, analisa o fenômeno de maneira diferenciada.
Por outro lado, o enfoque filosófico, sociológico e dialético de LYRA FILHO apresenta uma outra visão do fenômeno jurídico, mais completa, por encarar o fenômeno em sua totalidade e por entende-lo como processo em constante movimento.
Já a proposta da Teoria Crítica do Direito quanto à questão ontológica do direito é de uma análise que o entende como tendo sido até então encarado como um fenômeno de manifestação ideológica, devendo passar a ser encarado como fenômeno histórico e social, o qual, a partir da práxis, poderá ser redefinido. Ë neste sentido que Clemerson Cléve fala:
Da necessidade de um saber que conheça o direito como ele é, como vem se apresentando em sua história e concreção, para modificá-lo, não teórica, mas historicamente. As reconstruções ontológicas, neste caso, acompanharão as mutações históricas, e não o inverso45.
Entendemos que as várias definições que existem de direito são construídas a partir de posições éticas e políticas, que normalmente estão escondidas por trás de sua formulação.
Deve-se, quando da análise do conteúdo de uma conceituação, questionar-se sobre o local epistemológico de onde quem a elaborou fala, negando-se qualquer pretensa neutralidade científica, hoje já desmitificada, que possa ser envocada.
Concluímos que para se ter um conceito de direito é importante não simplesmente aderir a determinada concepção apresentada por um ou outro clássico, mas captar a especificidade do direito contemporâneo, conhecendo-o em suas várias manifestações e, a partir disso, articulá-lo com as várias lutas que são travadas na sociedade, de modo a percebê-lo como objeto que se localiza espacial e temporalmente, compreendendo, assim, “sua flutuação histórica e a possibilidade de sofrer transformações”46.
BIBLIOGRAFIA
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Notas
- COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1991, p. 176.
- Cf. os ensinamentos de MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. São Paulo: Livraria Martins, 1972, p. 29-59.
- André Franco Montoro, op. cit., indica, ainda, que na acepção de norma ou lei, direito pode indicar realidades diferentes quando se refere ao direito positivo e ao direito natural ou ao direito estatal e ao direito não-estatal. Cf. p. 34-37.
- RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 31.
- Apud MONTORO, André Franco. Op. cit., p. 38.
- Ë neste sentido que alguns clássicos como Aristóteles, Platão ou Santo Tomás de Aquino se utilizaram da palavra direito.
- Ou neo-positivista, já que foge ao positivismo legalista e propõe uma ciência do direito como uma meta-linguagem, como quer ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. São Leopoldo: Unisinos, 1998, p. 91.
- Cf. VENERIO, Carlos Magno Spricio. A concepção de democracia de Hans Kelsen: relativismo axiológico, positivismo jurídico e reforma institucional. Florianópolis: dissertação de Mestrado, UFSC, 1999, p. 67.
- YOKOHAMA, Alessandro Otávio. A eficácia como condição de validade da norma jurídica em Kelsen. Florianópolis: dissertação de mestrado, UFSC, 1999, p. 34.
- KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 5.
- KELSEN, Hans. Idem, p. 6.
- KELSEN, Hans. Idem, p. 33.
- KELSEN, Hans. Idem, p. 33.
- Esta segurança coletiva, que tem como fim a paz, atinge o grau máximo “quando a ordem jurídica, para tal fim, estabelece tribunais dotados de competência obrigatória e órgãos executivos centrais tendo à sua disposição meios de coerção de tal ordem que a resistência normalmente não tem qualquer perspectiva de resultar” (KELSEN, Hans. Op. cit. p. 41).
- YOKOHAMA, Alessandro Otávio. Op. cit., p. 22.
- HART, Herbert. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkinan, 1994.
- BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo. Uma introdução a Kelsen, Ross e Hart. São Leopoldo: Unisinos, 1999, p. 107.
- As regras primárias têm os seguintes defeitos: incerteza, estaticidade e ineficácia.
- Que resolvem os defeitos de incerteza, estaticidade e ineficácia das regras primárias.
- ROCHA, Leonel Severo. Op. cit., p. 95.
- Cf. Oliveira Júnior, José Alcebíades de. Bobbio e a filosofia dos juristas. Porto Alegre: Fabris Editor, 1994, p. 33.
- OLIVEIRA JÚNIOR, op. cit., p. 77.
- OLIVEIRA JÚNIOR, op. cit., p. 115.
- OLIVEIRA JÚNIOR, op. cit., p. 79.
- OLIVEIRA JÚNIOR, op. cit., p. 115.
- OLIVEIRA JÚNIOR, op. cit., p. 116. Importante acrescentar-se, ainda, que sendo o direito um discurso (e, como tal, um fato), as normas não são nada além do que comunicações linguísticas prescritivas, ou seja, enunciados para modificar a conduta humana. Assim, a jurisprudência de BOBBIO (dogmática jurídica) é apenas uma análise do discurso do legislativo. (Cf. GUASTINI, apud OLIVEIRA JÚNIOR, op. cit., p. 116-117). Pode-se dizer, ainda, que a teoria do direito de BOBBIO, ao contrário do positivismo legalista, propõe uma ciência ciência do direito como uma meta-linguagem.
- LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 1999.
- LYRA FILHO, Roberto. Op. cit., p. 86.
- LYRA FILHO, Roberto. Op. cit., p. 57.
- Cf. LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 56-58.
- LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 59.
- LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 62.
- LIMA, Sérgio Roberto. Para uma teoria dialética do direito. Um estudo da obra do prof. Roberto Lyra Filho. Florianópolis: dissertação de mestrado, UFSC, 1995, p. 110.
- LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 69.
- LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 70.
- LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 82.
- LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 82.
- LYRA FILHO, Roberto. Idem, p. 86.
- LYRA FILHO, Roberto. Pesquisa em que direito? Brasília: Edições Nair, 1984, p. 16-17.
- COELHO, Luiz Fernando. Introdução à crítica do direito. Curitiba: Livros HDV, 1983.
- COELHO, Luiz Fernando. Idem, p. 17.
- COELHO, Luiz Fernando. Idem, p. 17.
- COELHO, Luiz Fernando. Idem, p. 17.
- Apud COELHO, Luiz Fernando, 1991, p. 124.
- CLEVE, Clemerson Merlin. O direito e os direitos. Elementos para uma crítica do direito contemporâneo. São Paulo: Acadêmica, 1988, p. 134.
- CLEVE, Clemerson Merlin. Idem, p. 134.