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Globalização e Estado: dimensões e dilemas

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04/12/2011 às 09:31
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2. O ESTADO E OS DILEMAS DA GLOBALIZAÇÃO

Globalização, Estado Nação e multiculturalismo: A globalização não pode ser entendida apenas como um processo de imposição econômica do modelo capitalista sobre o mundo, esfacelando o Estado Nacional. Em geral, a globalização é contraposta ao Estado-Nação, mas o Estado nação não é um modelo universal e atemporal. Ao contrário, o Estado nacional é um fenômeno localizado geográfica e historicamente. Segundo Hobsbawm:

Precisamos distinguir entre os dois significados do termo "Estado Nacional". No sentido tradicional, refere-se a um Estado territorial sobre o qual o povo que nele vive, a Nação, tem um poder soberano. Este é sentido de Estado Nacional que surgiu com a Revolução francesa e, em parte, com a Revolução Americana. Trata-se de um definição política, e não étnica ou lingüística , do Estado: é um povo que escolhe seu governo e decide viver sob determinada Constituição e sobre determinadas leis (...) o outro significado do termo é muito mais recente e consiste na idéia de que todo o Estado territorial pertence a um povo específico, definido por determinadas características étnicas, lingüísticas e culturais – e que isso constitui a nação. Segundo essa idéia, apenas a nação pertence ao Estado nacional, e todos os outros não passam de minorias que, embora vivam no mesmo local, não fazem parte da nação. (HOBSBAWM, 2009, p. 27)

Tal conceito é típico da sociedade européia e de sua organização política. Portanto, analisando-se historicamente a questão do Estado Nacional:

(...) descobre-se que a nação é um produto histórico europeu, desenvolvido no bojo da revolução burguesa e transformado em um modelo exportado pelo imperialismo europeu e norte-americano pelos diversos continentes, ilhas e arquipélagos. Um modelo que se concretiza às vezes muito precariamente na Ásia, Oceania, África, América Latina, no Caribe, na Europa Central e Europa do Leste. Aliás, mesmo nos países em que o estado-nação se formou originariamente, mesmo nesses países revela-se não só histórico, mas problemático. (IANNI, 2007, p. 111).

Acontece que a revolução burguesa raramente resolveu a questão nacional satisfatoriamente, tendo-se em conta os interesses das maiorias e minorias. Persistem e recriam-se as desigualdades sociais, culturais e raciais, além das políticas e econômicas. Em toda sociedade nacional o povo é uma estranha coletividade de cidadãos de várias e desiguais categorias, com participação às vezes extremamente desigual nos produtos das atividades nacionais. São muitas as sociedades em que a população ainda não se transformou em povo, entendido como uma coletividade de cidadãos, fato que muitas vezes aparece claramente nas ideologias raciais por meio das quais também se classificam, hierarquizam e discriminam racialmente indivíduos e coletividades. (IANNI, 2007, p. 167-8)

Para superar a limitação do Estado-Nação, Will Kymlicka apresenta a hipótese do que ele denomina de Estados Multiculturais e Estados Poliétnicos: a) Estados multinacionais, onde uma nação (comunidade histórica) mais ou menos completa institucionalmente, que ocupava um território ou uma terra natal determinada e que compartilha uma cultura e uma língua diferenciada, convive com uma ou mais nações dentro de um mesmo Estado, gerando minorias nacionais; b) Estados poliétnicos, onde a formação populacional foi efetivada pela imigração em grande escala. (Cf. KYMLICKA, 1996, 26 e Ss). Ambas as espécies de Estado enfrentam o problema de minorias, que de uma forma ou de outra acabam tendo seus direitos suprimidos.

(...) Estados multinacionais (onde a diversidade cultural surge da incorporação de culturas que anteriormente possuíam auto-governo e estavam concentradas territorialmente num Estado maior) e Estados poliétnicos (onde a diversidade cultural surge da imigração individual e familiar) (KYMLICKA, 1996, 19-20).

Por este conceito o Brasil seria tanto um estado poliétnico, pois possui grande parcela de imigrantes, e também um estado multicultural, pela existência de várias etnias e povos indígenas, quilombolas, entre outros. Segundo tal autor, o Brasil, como um Estado multicultural e multiétnico, deveria agir de forma mais séria em relação às demandas das minorias: "O Brasil tem sido especialmente insistente na hora de afirmar que não detém minorias nacionais; o certo é que o quase total extermínio de suas tribos indígenas está perigosamente perto de ratificar dita afirmação". (KYMLICKA, 1996, p.40). Portanto, o próprio conceito de Estado-nação não se encaixa com a realidade desses países. Além disso, Stuart Hall faz importante distinção:

Multicultural é um termo qualificativo. Descreve as características sociais e os problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo que retêm algo de sua identidade original. Em contrapartida o termo multiculturalismo é substantivo. Refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedade multiculturais. (HALL, 2002, p.52)

Multiculturalismo, portanto, define políticas públicas para convivência entre diversas culturas dentro de um mesmo Estado-nação. O Canadá e a Austrália são exemplos de países que adotam medidas de multiculturalismo. Em contraponto ao multiculturalismo, pode-se constatar a existência de políticas de monoculturalismo, ou seja, políticas de cunho nacionalista, que pretendem excluir imigrantes ou assimilá-los a cultura dos países de acolhimento (KYMLICKA, 1996, passim).

As políticas do multiculturalismo começaram ser reivindicadas no período entre as décadas de 60 e 70, em especial, na luta por direitos civis, no movimento feminista, nas lutas contra a guerra do Vietnã. Tais movimentos são inspirados na expansão do político e da superação da dicotomia direita e esquerda (KYMLICKA, 2006, passim). O que pode aparecer como um problema para Bauman (2000), aqui pode ser um caminho possível de reorganização política. O multiculturalismo implica, portanto, em reivindicações e conquistas das chamadas minorias (negros, índios, mulheres, homossexuais, entre outras). Além disso, enfatiza-se a idéia de que as culturas minoritárias são discriminadas e devem merecer reconhecimento público. Para se consolidarem, essas culturas singulares devem ser amparadas e protegidas pela lei.

No âmbito jurídico o multiculturalismo propõe três dimensões de direitos a serem reconhecidos: a) direitos de autogoverno: representação e governo próprios (princípio da autodeterminação dos povos); b) direitos poliétnicos: direitos relacionados à própria diferenciação cultural (resgate cultural, preservação da língua, etc...) e direitos de resgate por diferenciações históricas (ações afirmativas); c) direitos de especial representação: percentuais em cargos da administração, poder executivo e legislativo (KYMLICKA, 1996, 46-55).

A política multiculturalista visa resistir à homogeneidade cultural, principalmente quando esta homogeneidade é considerada única e legítima, submetendo outras culturas a particularismos e dependência. Como é o caso da cultura do consumo da globalização. Sociedades pluriculturais coexistiram em todas as épocas, e hoje, estima-se que apenas 10 a 15% dos países sejam etnicamente homogêneos. Na construção de movimentos sociais fortes, na mobilização social e em suas novas formas de manifestação estão ancoradas as novas perspectivas de ação na sociedade. "Estos movimientos han venido haciendo énfasis en el poder democrático (derechos humanos, derechos colectivos o de grupo, democracia participativa), la autonomía institucional y la igualdad, la identidad cultural, la expansión de la libertad contra el autoritarismo estatal o la dominación cultural masiva." (SANTOS, Boaventura, 1998, p.63). Por isso, o multiculturalismo pode ser apontado como forma de resistência à homogenização da globalização.

Globalização e fim do Estado-nação? Durante a crise econômica de 2008 e 2009 voltou-se ao debate o papel do Estado na era da globalização. A reação conjunta dos países ricos (atuação do G8) e o desencadeamento da crise demonstrou que a absoluta desregulação do mercado é inviável, eis que não existe razoabilidade na obtenção do lucro.

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A palavra não aparece na mídia norte-americana, mas é disso que se trata: nacionalização. Perante as falências ocorridas, anunciadas ou iminentes de importantes bancos de investimento, das duas maiores sociedades hipotecárias do país e da maior seguradora do mundo, o governo dos EUA decidiu assumir o controle direto de uma parte importante do sistema financeiro. (...) O que é novo na intervenção em curso é a sua magnitude e o fato de ela ocorrer ao fim de trinta anos de evangelização neoliberal conduzida com mão de ferro a nível global pelos EUA e pelas instituições financeiras por eles controladas, FMI e o Banco Mundial: mercados livres e, porque livres, eficientes; privatizações; desregulamentação; Estado fora da economia porque inerentemente corrupto e ineficiente; eliminação de restrições à acumulação de riqueza e à correspondente produção de miséria social. (...) o Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução; cada país tem o direito de fazer prevalecer o que entende ser o interesse nacional contra os ditames da globalização (SANTOS, Boaventura, 2009)

Diante da crise o papel Estado foi ressaltado, pois a única instituição capaz de assegurar a ordem e o equilíbrio econômico foi o Estado. Foram gastos quase 4 trilhões de dólares para salvar o mercado financeiro. "Os US$ 152,5 bilhões investidos pelos EUA para o resgate de uma só empresa, a AIG, supera longe os 90,7 bilhões de dólares que esse país e os europeus destinaram à ajuda para o desenvolvimento em 2007". (RIZVI, 2010). O problema está no papel que o Estado vem exercendo para o desenvolvimento social. O Brasil é um péssimo exemplo histórico disso:

Se essas décadas provaram alguma coisa, foi que o grande problema político do mundo, e certamente do mundo desenvolvido, não era como multiplicar a riqueza das nações, mas como distribuí-la em benefício de seus habitantes. Isso se dava mesmo em países pobres ‘em desenvolvimento’ que precisavam de mais crescimento econômico. O Brasil, um monumento à negligência social, tinha um PNB per capita quase duas vezes maior que o Sri Lanka em 1939, e mais de seis vezes maior no fim da década de 1980. No Sri Lanka, que subsidiara alimentos básicos e dera educação e assistência médica gratuitas até a década de 1970, o recém-nascido médio podia esperar viver vários anos mais que o brasileiro médio, e morrer ainda bebê mais ou menos na metade da taxa brasileira de 1969, e num terço da taxa brasileira de 1989 (World Tables, 1991, pp. 144-7, 524-7). A percentagem de analfabetismo em 1989 era quase duas vezes maior no Brasil que na ilha asiática. (HOBSBAWM, 2003, p. 554-4).

O Estado é a esfera que supre as demandas sociais e, mesmo que não totalmente eficiente, é imprescindível para concretização de direitos fundamentais. Isso ocorre exatamente porque sua lógica é oposta à lógica do capital.

O Estado e seu governo continuam sendo a única instância junto à qual os cidadãos e eleitores podem reivindicar justiça e reformas. [...]. Nenhum chefe de empresa, por mais poderoso que seja, desejaria assumir a responsabilidade por processos que ocorrem fora de sua alçada. (MARTIN; SCHUMANN, 1997, p. 293).

Nesse sentido, somente pelo Estado e pela recuperação da perspectiva de cidadania como elo central entre os atores sociais e o espaço público se poderá encaminhar o processo de superação do modelo hegemônico a fim de encontrar um novo rumo para a globalização.

(...) no mundo da globalização, a intervenção do mercado tem de ser combinada com a intervenção do Estado. A questão é determinar o papel e a efetividade do Estado. O desenvolvimento requer um Estado atuante e catalisador, facilitando, encorajando e regulando os negócios privados (...) O fator determinante é a efetividade do Estado. Parece claro que a sua primeira tarefa é garantir os direitos fundamentais à população, a saber: definição de uma base legal; a manutenção da estabilidade econômica; o investimento em serviços sociais básicos e em infra-estrutura; o amparo aos vulneráveis; a proteção ao meio-ambiente. (DUPAS, 1999, p. 131-2).

Por fim, há de se encontrar saídas para o modelo de globalização atual. "A globalização atual não é irreversível." (SANTOS, Milton, 2006,p.176). Portanto, a globalização é um desafio a ser enfrentado, mas jamais uma fatalidade irremediável.


3. REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. (trad. Marcus Penchel). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2000.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede - a era da informação: economia, sociedade e cultura. 8ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

DUPAS, Gilberto. Economia global e exclusão social: pobreza, emprego, Estado e futuro do capitalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros, 2004.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4ª ed.. Porto Alegre: Artmed, 2008.

HALL, Stuart. Da diáspora – identidades e mediações. Belo Horizonte: Editora. UFMG, 2002.

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: O Breve século XX (1914-1991). 2 ed. 26 reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

HOBSBAWM, Eric. O novo século: entrevista a Antonio Polito. Tradução: Cláudio Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

IANNI, Octavio. A era do globalismo. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

IANNI, Octavio. Teorias da globalização. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

KYMLICKA, Will. Ciudadanía Multicultural. Paidós: Barcelona, 1996.

KYMLICKA, Will. Filosofia Política Contemporânea. (trad. Luís Carlos Borges). São Paulo: Martins Fontes, 2006.

LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização Econômica, Política e Direito: Análise das mazelas causadas no plano político-jurídico. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

MARTIN, Hans-Peter; SCHUMANN, Harald. A armadilha da globalização: o assalto à democracia e ao bem-estar social. Waldtraut U.E. Rose e Clara C.W. Sackiewicz. São Paulo: Globo, 1997.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. (trad. Maria Lucia Como). 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

NEGRÃO, João José. Para conhecer o neoliberalismo. São Paulo: Publisher Brasil,1998.

OHMAE, Kenichi. O fim do Estado-nação. A ascensão das Economias Regionais. Rio de Janeiro: Campus, 1996.

RIZVI, Haider. Bancos recebem ajuda de US$ 4 trilhões. E o resto do planeta? In: Carta Maior. Extraído de: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15401. Acesso em 29 de Março de 2010.

SANTOS, Boaventura de Sousa. La Globalización del derecho: Los nuevos caminos de la regulación y la emancipación. Bogotá: ILSA, 1998.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O impensável aconteceu. Retirado de: < http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3981> ; extraído em 6 de setembro de 2009.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 13. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.

THERBORN, Göran. Globalização e desigualdade: questões de conceituação e esclarecimento. Sociologias, Porto Alegre, n. 6, dez. 2001 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-45222001000200007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 21 de março de 2010.

VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. 6ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.


Notas

01 O processo de globalização intensificou-se com o Acordo de Bretton Woods (1944). Suas principais deliberações foram: a)acabar com a inflação; b) privatizações; c) deixar o mercado livre = Estado mínimo. (Cf. LIMA, 2002, p. 159). O Consenso de Washington (1989) foi outro encontro de diversas instituições financeiras e economistas de cunho liberal para traçar medidas que fossem cabíveis aos países Latino-americanos com os fins de ajustá-los ao mercado internacional. Dez foram os pontos colocados: a) disciplina fiscal; b) gastos públicos centralizados em saúde, educação e infra-estrutura; c) reforma tributária; d) liberalização financeira; e) competitividade da taxa de câmbio; f) diminuição das alíquotas de importação; g) não restrição ao capital externo; h) privatização; i) desregulação trabalhista; j) propriedade intelectual. Para maiores esclarecimentos Vide NEGRÃO, João José. Para conhecer o neoliberalismo. São Paulo: Publisher Brasil,1998.

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Sobre o autor
Ivan Furmann

Doutor em Direito pela UFPR. Mestre em Educação. Bacharel em Direito. Professor EBTT no IFC (Instituto Federal Catarinense) Campus Sombrio - Santa Rosa do Sul. Leciona Direito Ambiental, Direito do Trabalho, História, Metodologia Científica e Sociologia..

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURMANN, Ivan. Globalização e Estado: dimensões e dilemas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3077, 4 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20555. Acesso em: 1 mai. 2024.

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