3. FUNÇÕES DA TEORIA DO BEM JURÍDICO
Uma vez inserido o bem jurídico-penal como fundamento de todo o Direito Penal democrático, é inegável a importância que o estudo teórico a seu respeito possui para a Ciência Penal, pois é nesse contexto que exsurge um outro princípio limitador do ius puniendi, qual seja, o princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos. Afinal, retomando o entendimento exposto neste capítulo, a melhor forma de adequar o Direito Penal aos valores consagrados pelo Estado Democrático de Direito é limitar a sua incidência somente às hipóteses em que haja drástica ofensa a um bem jurídico penalmente tutelado, que deve ser reflexo dos valores mais importantes para a convivência social.
Desta feita, segundo Roxin (2006, p. 26), referido princípio, "[...] serve-me, antes de tudo, como linha diretriz político-criminal para o legislador, como arsenal de indicações para a configuração de um Direito Penal liberal e de Estado de Direito".
E consoante preleciona Cruz (2008, p. 45):
O bem jurídico, além de definir a função do Direito Penal, marca os limites da legitimidade de sua intervenção, uma vez que, em um Estado Democrático de Direito, o Direito Penal somente pode interferir na liberdade de seus cidadãos para proteger os bens jurídicos.
Acerca das funções limitadoras oriundas da teoria do bem jurídico (em especial do princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos),Gomes (2002, p. 53-54) salienta que,
como não poderia ser de outra forma, revela o núcleo essencial do denominado princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos que, ao lado de tantos outros princípios fundamentais (da materialidade do fato, da ofensividade, da legalidade, da culpabilidade etc.), tem (também) a função de delimitar o ius puniendi estatal.
O princípio em testilha, consequência lógica do modelo de Direito Penal democrático, ao lado dos demais princípios constitucionais penais apresentados alhures, "constitui (mais) uma barreira – um limite – material ao Direito punitivo estatal, que já não está autorizado, por intermédio de uma criminalização, a tipificar meras atitudes morais ou éticas das pessoas (enquanto tais)" (GOMES, 2002, p. 53).
Portanto, a teoria do bem jurídico impõe mais uma barreira para o direito de punir estatal, já que condiciona a atividade legislativa concernente à criação de tipos penais incriminadores à seleção de condutas que causem lesão (ou exponham a perigo concreto) bens jurídicos dotados de dignidade penal.
Nessa perspectiva, decorrem da teoria do bem jurídico, em especial do princípio dela derivado, dois limites relevantes, assim mencionados por Gomes (2002, p. 55):
(a) o primeiro é de natureza indicativa, é dizer, em decorrência do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, hoje se reconhece (indicativamente) que somente os bens existenciais (individuais ou supra-individuais) mais importantes para o ser humano, é dizer, os que são indispensáveis para o desenvolvimento da sua personalidade, merecem ser contemplados em uma norma como objeto de proteção (e, por conseguinte, da ofensa) penal;
(b) o segundo é de caráter negativo, no sentido de que estamos em condições de afirmar, com boa margem de segurança, ao menos quais bens não podem ser convertidos em objeto da tutela (e da ofensa) penal: a moral, a ética, a religião, a ideologia, os valores culturais como tais etc.
Esses limites impõem ao legislador, portanto, a tarefa de afastar da tutela penal os valores que não podem nela se inserir, tais como a moral, a ética ou a religião, e, ao mesmo tempo, somente direcionar a proteção do Direito Penal aos bens jurídicos mais relevantes à convivência e ao desenvolvimento social pacífico.
Por fim, embora intimamente ligados, deve-se consignar que o princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos não se confunde com o princípio da ofensividade, porquanto, ainda na linha de entendimento esposada por Gomes (2002, p. 42-43),
Para bem individualizá-los cumpre sublinhar desde logo que a função principal do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos é a de delimitar uma forma de Direito penal, o Direito penal do bem jurídico, daí que não seja tarefa sua proteger a ética, a moral, os costumes, uma ideologia, uma determinada religião, estratégias sociais, valores culturais como tais, programas de governo, a norma penal em si etc. O Direito penal, em outras palavras, pode e deve ser conceituado como um conjunto normativo destinado à tutela de bens jurídicos, isto é, de relações sociais conflitivas valoradas positivamente na sociedade democrática.
O princípio da ofensividade, por sua vez, nada diz diretamente sobre a missão ou forma do Direito penal, senão que expressa uma forma de compreender ou de conceber o delito: o delito como ofensa a um bem jurídico. E disso deriva, como já afirmamos tantas vezes, a inadmissibilidade de outras formas de delito (mera desobediência, simples violação da norma imperativa etc.)
Destarte, ainda que próximos, não se deve confundir a ofensividade com a exclusiva proteção dos bens jurídicos. Este, relacionado às funções do Direito Penal, impede a criminalização de condutas que não lesem bens jurídicos, enquanto aquele, inserido na teoria do crime, aponta a maneia pela qual se deve compreender o delito.
Em conclusão, o princípio da exclusiva proteção dos bens jurídicos, consectário lógico da teoria do bem jurídico e pressuposto do Direito Penal democrático, apresenta-se, ao lado dos demais princípios constitucionais penais, como limitador do ius puniendi, regendo a seleção dos bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito Penal, ao apontar os valores mais caros à sociedade, e condicionando a atividade de criminalização às condutas que ofendam intoleravelmente aqueles bens jurídicos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De tudo se chega ao entendimento de que, uma vez inserto em um Estado Democrático de Direito, o Direito Penal não pode se afastar da função primordial que o legitima, qual seja, a de proteger os bens jurídicos mais caros à sociedade, proporcionando, dessa forma, condições para a coexistência pacífica e equilibrada entre os cidadãos, sob o primado dos valores da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos fundamentais, fixando e reafirmando os valores sociais mais importantes, e atuando como limite ao exercício do ius puniendi.
O bem jurídico se posiciona como um dos fundamentos do Direito Penal democrático, de maneira que o estudo e a compreensão do fenômeno de seleção dos valores sociais a serem tutelados pelo sistema de controle penal se fazem absolutamente oportunos.
Nessa perspectiva, tem-se que a atividade legislativa de produção de tipos penais incriminadores, diretamente balizada e limitada pela teoria do bem jurídico de acordo com os valores abarcados explicita e implicitamente na Constituição Federal, só pode conferir dignidade penal a bens jurídicos compatíveis com a Carta Magna.
Atualmente, portanto, a Constituição Federal não é a única fonte de bens jurídicos-penais, mas exerce uma função orientadora da atividade seletiva estatal, a permitir a tutela de bens jurídicos não expressamente consignados em seu texto, desde que não compreendam valores com ela incompatíveis. Somente assim se faz possível considerar legítima a atuação do Direito Penal na sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIANCHINI, Alice; MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Direito penal. Introdução e princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. Coleção Ciência Criminais, v.1.
CANTERJI, Rafael Braude. Política criminal e direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
CRUZ, Ana Paula Fernandes Nogueira da. A culpabilidade nos crimes ambientais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. Série "As Ciências Criminais no Século XXI – v. 5".
GRECO, Rogério. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Org. e Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.