5. AS CONSEQUÊNCIAS DA AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO
O estudo sobre quais são as conseqüências da falta de fundamentação em um julgado – se a decisão é inexistente, nula ou anulável – é extremamente relevante para definir “a problemática de seu trânsito em julgado e a possibilidade de sua rescisão: o que não existe não pode produzir efeitos, não transita em julgado e não pode ser rescindido” (PERO, 2001, p. 120). Neste item, procurar-se-á analisar os distintos posicionamentos doutrinários acerca da natureza jurídica da decisão judicial sem fundamentação e seus reflexos sobre a formação da coisa julgada material.
A primeira corrente doutrinária, perfilhada por Michele Taruffo (1975, p. 453-470.) e Wilson Alves de Souza (2008, p. 203.), sustenta que a sentença sem motivação é inexistente.
Explica o autor italiano que, por dois motivos, a ausência de motivação implica na própria inexistência da sentença. O primeiro deles é o de que, quando a constituição prevê expressamente a sua obrigatoriedade, a fundamentação torna-se um “elemento estrutural necessário” da decisão, sem o qual não pode ser reconhecido o exercício legítimo do poder jurisdicional. O segundo argumento é o de que a ausência de fundamentação impossibilita o controle externo do ato judicial.
Na mesma linha, Wilson Alves de Souza, sustenta que a natureza jurídica da fundamentação é de decisão, isto é, “motivação e dispositivo estão no mesmo plano, ambos integram o decisum, valendo esclarecer que, enquanto o dispositivo é a decisão em seu aspecto conclusivo, a motivação é a decisão em seu aspecto justificativo” (2008, p. 222). As decisões somente podem ser controladas pelo povo por meio da fundamentação e não pelo dispositivo, razão por que a fundamentação seria a própria decisão.
A segunda corrente, a qual se filia Elio Fazzalari, entende que a sentença sem fundamentação é apenas anulável. Segundo o autor, a anulabilidade seria sinônimo de invalidade, isto é, um vício decorrente da deformidade de algum dos elementos que, de acordo com a lei, devem integrar o ato; diversamente, a nulidade significaria a inexistência do ato, vício decorrente da ausência daqueles elementos. Com base nessas definições, sustenta que, embora viciada, a decisão sem fundamentos existe como ato processual e produz todos os efeitos que lhe são inerentes até que seja anulada (FAZZALARI, 2006, p 439-442).
Se adotada a tese de que a sentença imotivada é apenas anulável, ela estará apta a formação da coisa julgada material e o vício relativo à ausência de motivação não poderá ser invocado como fundamento para propositura de ação rescisória. Isso porque, conforme dispõe o art. 245 do Código de Processo Civil, o vício do ato anulável deve necessariamente ser alegado pela parte – e apenas por ela – na primeira oportunidade em que lhe couber se manifestar nos autos, sob pena de preclusão, a não ser ela comprove legítimo impedimento (PERO, 2001, p. 122). Trata-se, portanto, de vício passível de convalidação.
A terceira e última corrente, que reúne a maior parte da doutrina nacional – dentre outros, José Carlos Barbosa Moreira[12], Maria Thereza Gonçalves Pero, José Rogério Tucci e Cruz, Enrico Tullio Liebman, Sérgio Nojiri, Fredie Didier Júnior –, entende que a ausência de fundamentação pode dar causa a decretação da nulidade da decisão.
No plano da existência, é necessário apenas que os elementos nucleares do suporte fático estejam presentes para que o fato jurídico exista[13]. Partindo dessa premissa, Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira explicam que o suporte fático do ato “decisão judicial” é composto por “a) ter sido proferida por alguém investido de função jurisdicional; b) a decisão, a norma concreta, o comando, a manifestação do magistrado sobre o objeto litigioso” (2010, p. 301). A motivação seria apenas o elemento que legitima a decisão, mas não um de seus elementos nucleares.
Nessa linha, sustentam que uma decisão imotivada continuaria a ser uma decisão, pois preenche os pressupostos de seu plano de existência, mas seria uma decisão ilegítima, espúria e absurda. “É designar uma decisão sem fundamentação de ilegítima, espúria, absurda, autoritária etc., mas é inegável que ela é uma decisão. A partir do momento que se pode atribuir a um substantivo alguns adjetivos é porque algo existe para ser qualificado.” (DIDIER JR., SARNO, OLIVEIRA, 2010, p. 301). É exatamente porque a decisão imotivada existe e é defeituosa que a Constituição Federal, em seu art. 93, inciso X, lhe atribuiu a sanção de invalidade.
A adoção da terceira corrente implica nas seguintes conclusões: se a sentença imotivada existe – embora possa ser decretada nula –, ela está apta a formação da coisa julgada material e pode ser rescindida por violar literal disposição de lei, nos termos do art. 485, inciso V, do Código de Processo Civil que também abrange as regras de direito processual (TUCCI, 1987, p. 144). Mas, uma vez ultrapassado o prazo para o ajuizamento da ação rescisória, as questões decididas e não fundamentadas não poderão mais, por força da coisa julgada material, ser discutidas em juízo como questão principal ou incidental em outra demanda, cujas partes, pedido e causa de pedir sejam iguais (PERO, 2001, p. 128).
São instrumentos dos quais a parte pode se valer para controlar a decisão imotivada: i) interposição de embargos aclaratórios, previstos no art. 535, inciso II, do Código de Processo Civil; ii) interposição de recurso de apelação, por meio do qual aponte o vício da sentença e pleiteie que seja decretada a sua nulidade[14] – nesta hipótese, poderá requerer que o processo retorne à instância inferior para que seja proferida decisão fundamentada ou que a questão sobre a qual o magistrado se omitiu seja de logo apreciada, com base na autorização do art. 515, §1º do Código de Processo Civil; iii) ajuizamento de ação rescisória com fundamento no art. 485, inciso V, do Código de Processo Civil.
Registre-se que, a primeira corrente doutrinária, capitaneada por Wilson Alves de Souza, sustenta que não se pode atribuir efeitos jurídicos à decisão imotivada, considerando-a existente, pois “não há como saber se a mesma é justa ou injusta, na medida em que nela só há abuso, só há arbitrariedade, só há violência”. Sucede que o próprio autor reconhece que “o valor segurança deve prevalecer frente ao valor justiça” e que “é exatamente isso que aplica o instituto da coisa julgada” (SOUZA, 2008, p. 229).
Ora, a existência da coisa julgada decorre do reconhecimento pelo sistema jurídico de que é preferível uma solução injusta à insegurança jurídica. Se assim é, com muito mais razão, é preferível uma solução não fundamentada – que pode até ser justa (afinal, não se sabe se justa ou injusta) – do que a insegurança causada pela tese que sustenta a inexistência da decisão imotivada e, por conseguinte, a instabilidade ad eternum das relações constituídas sob a sua égide. Portanto, também pela necessidade premente de conferir segurança às relações jurídicas, que não podem ficar sujeitas para sempre a uma eventual declaração de que elas nunca existiram, deve ser adotado o posicionamento de que as decisões imotivadas existem, são viciadas e, por isso, passíveis de ter decretada a sua nulidade.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A fundamentação das decisões judiciais é o elemento da decisão judicial que traduz o resultado de um ato de inteligência relativo ao exame e a conseqüente valoração das questões de fato e de direito deduzidas pelas partes no processo. Nesta etapa da decisão, o juiz analisa as questões que devem ser solucionadas como premissa lógica para que seja decidida a questão principal.
Trata-se de elemento indispensável para que o conteúdo da decisão, parte sobre a qual recairá a autoridade da coisa julgada, seja adequadamente interpretado. A parte dispositiva da decisão judicial é texto, sinal lingüístico, a partir do qual é alcançada a determinação de um conteúdo normativo, por meio da interpretação. Como interpretar é construir a partir de algo, a norma extraída da decisão deve ser produzida pelo intérprete não de forma isolada, mas a partir do seu percurso, da sua fundamentação.
A fundamentação exerce papel fundamental na formação da coisa julgada secundum eventum probationis, pois é o seu exame que evidenciará: i) se a ação foi julgada improcedente por insuficiência de provas; ii) se a demanda coletiva versa sobre questões de fato, condição indispensável para que seja possível a propositura de nova ação com base em novas provas; iii) quais foram as provas produzidas no processo anterior, pois elas serão analisadas em conjunto com as novas provas; iv) quais fatos já foram comprovados na primeira ação, o que é fundamental para averiguar se as provas novas estão aptas a gerar um resultado distinto da ação anterior.
A decisão sem fundamentação existe, é viciada e pode ter decretada a sua nulidade. Como para que a decisão exista é necessário apenas que os elementos nucleares de seu suporte fático estejam presentes (ter sido proferido por alguém investido de função jurisdicional e a norma concreta), a ausência de motivação torna a decisão viciada e não inexistente, pois ela é apenas o elemento que legitima a decisão, e não um de seus elementos nucleares. A decisão imotivada está apta a formação da coisa julgada material e pode ser rescindida, no prazo legal, por violar literal disposição de lei, nos termos do art. 485, inciso V, do CPC. Esse é o entendimento adotado pela maioria da doutrina nacional.
REFERÊNCIAS
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DIDIER JR., Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2010. v. 2.
___________ ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2010. p. 365. v. 4.
FARIAS, Cristiano Chaves de. “Um alento ao futuro: Novo tratamento da coisa julgada nas ações relativas à filiação”. In: DIDIER JR., Fredie (org). Relativização da coisa julgada: Enfoque crítico. Salvador: Jus Podivm, 2006.
FAZZALARI, Elio. Instituizioni di Diritto Processuale. Padova: Cedam – Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 2006.
GIDI, Antônio. Coisa Julgada e Litispendência em Ações Coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995.
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TUCCI, José Rogério Cruz e. A motivação da sentença no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1987.
Notas
[1] Tradução livre: concisão não significa omissão: em nenhuma hipótese, é facultada ao juiz a possibilidade de deixar passar totalmente em branco o fundamento de sua resolução.
[2] “Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado.” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 30)
[3] Não se buscará nesse tópico, de modo algum, esgotar as inúmeras hipóteses em que a fundamentação repercute na formação da coisa julgada material.
[4] Nesse sentido, Fredie Didier Júnior (DIDIER JR., BRAGA, OLIVEIRA, 2010. p. 433) e Enrico Tullio Liebman (2006, p. 280). Ao que parece, esse é o posicionamento mais acertado e será adotado como premissa nesse trabalho.
[5] Antônio Gidi alerta que parte considerável da doutrina, de forma equivocada, atribui às demandas coletivas a formação da coisa julgada secundum eventum litis. Segundo esclarece, seria assim, se ela se formasse apenas nos casos de procedência do pedido e não nos de improcedência. Afirma o autor que, em relação à lide coletiva, a coisa julgada se forma pro et contra, independentemente de o resultado da demanda ser pela procedência ou pela improcedência. O que diferirá, de acordo com o “evento da lide”, não é a formação ou não da coisa julgada, mas o rol de pessoas por ela atingidas: em caso de procedência, toda a comunidade será beneficiada; em caso de improcedência, apenas a via coletiva será bloqueada, atingindo os legitimados do art. 82 do CDC, sem afetar os correspondentes direitos individuais que ainda poderão ser levados a juízo.” (1995. p. 122). Também nesse sentido Carlos Roberto Batista (2005, p. 150).
[6] A doutrina dominante adota interpretação literal do inciso III do art. 103, do CDC, entendendo que a exceção da coisa julgada secundum eventum probationis não se aplica as ações que versam sobre direitos individuais homogêneos. Adotando posicionamento diverso, Fredie Didier Jr. e Hermes Zanetti Jr. interpretam o aludido dispositivo, sustentando que ele não trata da coisa julgada coletiva, mas tão somente da extensão da coisa julgada coletiva ao plano individual. Nesse passo, aplicam o princípio hermenêutico de que a solução das lacunas deve ser buscada no microssistema coletivo, razão por que, assim como ocorre com as demais ações coletivas, se as demandas que versam sobre direitos individuais homogêneos forem julgadas improcedentes por falta de prova, não haverá coisa julgada no âmbito coletivo (2010, p. 369).
[7] Segundo Antônio Gidi, a apresentação de prova nova é requisito de admissibilidade para a repropositura da ação coletiva. (1995, p. 133-134).
[8] “[...] quando se propõe a mesma ação, proíbe-se nova discussão, mas a coisa julgada forma-se anteriormente a esse momento, que é meramente eventual.” (LIEBMAN, 2006, p. 10.)
[9] Registre-se que, embora não exista lei acerca do tema, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 116/2001, segundo o qual “a ação de investigação de paternidade, realizada sem a prova do pareamento cromossômico (DNA), não faz coisa julgada.” (art. 2º, parágrafo único).
[10] Em sentido contrário, na jurisprudência: STJ, REsp 107248-GO, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 07.05.1998, D.J. 29.06.98.
[11] Sobre o tema, cita-se julgado paradigmático do Superior Tribunal de Justiça: REsp n. 226.436/PR, 4ª Turma, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Texeira, julgado em 28 de junho de 2001, publicado em 06 de fevereiro de 2002.
[12] “Em cuanto a las sentencias civiles, debe entenderse que el interessado necesita denunciar el vicio, mediante el recurso que corresponda; si la decisión a pesar del defecto, pasa em cosa juzgada, podrá todavia ser objeto de impugnación, pero solo a través de uma acción especial”. Tradução livre: No que toca às sentenças cíveis, se deve entender que o interessado deve arguir o vício, por meio do recurso correspondente; se a decisão, apesar do defeito, transita em julgado, poderá ainda ser objeto de impugnação, mas apenas por meio de uma ação especial. (MOREIRA, 2004. p. 109).
[13] “Naturalmente, se há falta, no suporte fático, de elemento nuclear, mesmo completante do núcleo, o fato não tem entrada no plano da existência, donde não haver fato jurídico” (MELLO, 2008. p. 102).
[14] Como se trata de nulidade absoluta, a matéria pode ser conhecida de ofício e não está sujeita a preclusão, conforme dispõe o art. 245, parágrafo único, do Código de Processo Civil.