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As contradições do tribunal penal internacional

01/10/2001 às 00:00
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Todas as profundas, complexas e velozes transformações pelas quais vem a humanidade passando em seus mais diversos campos de atuação, notadamente nas últimas décadas, e que exatamente por serem profundas, complexas e velozes revelam-se de difícil compreensão, conseguem, pelo fenômeno da globalização, ser "explicadas" a toque de caixa. Esse conceito, que alguns autores designam mundialização, já há muito tornou-se um dogma, e como todo dogma – religioso, político ou econômico – traz em sim a característica da inevitabilidade. Se o fenômeno é recente, o truque é velho e consiste em desmoralizar, no nascedouro, qualquer tentativa de se analisar o objeto com outro olhar que não seja o da mera constatação e a conseqüente aprovação, ainda que tácita.

No campo do Direito não é diferente. O mundo jurídico vem, igualmente, sendo afetado pelo inédito estágio de desenvolvimento que a humanidade vem experimentando nesse contexto de globalização. Mais especificamente no Direito Internacional, os crescentes acordos comerciais, o fortalecimento das empresas transnacionais, o surgimento das ONGs, os constantes movimentos migratórios (de pessoas e capitais), tudo isso cria a necessidade de aprimoramento (e criação) das regras jurídicas internacionais.

E aí, novamente, entra em cena o discurso da inevitabilidade para tentar impor, com o mínimo de discussão possível, fórmulas e práticas baseadas mais no interesse de alguns poucos países – não por acaso os que dominam economicamente o cenário mundial – em detrimento da grande maioria das nações, que carecem de voz afirmativa no cenário internacional na mesma proporção em que são econômica, política e militarmente dependentes.

Com os acontecimentos da II Guerra Mundial, em especial os crimes contra a humanidade ali cometidos, germinou-se a idéia da criação de um Tribunal Penal Internacional (TPI), isto é, que não esbarrasse na natural soberania dos Estados para justiçar alguns tipos de delitos como, v.g., o genocídio. Os idealizadores do famoso Tribunal de Nuremberg – aliás um bom exemplo de tribunal de exceção, eis que ausente qualquer vestígio de legitimidade jurisdicional – já sonhavam em estabelecer uma Corte, similar àquela, porém de ordem permanente.

O advento da Guerra Fria, contudo, congelou a criação de um tribunal nos moldes imaginado. Apesar dos tratados e convenções que foram surgindo, acerca dos crimes contra a humanidade, a idéia de Corte permanente mantinha-se distante. Com a derrocada do socialismo soviético e o surgimento da chamada Nova Ordem Mundial, embalada pelo fenômeno capitalista globalizador, voltou-se a cogitar do estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional.

Assim, a 17 de julho de 1998, em Roma, uma conferência diplomática das Nações Unidas decidia pelo estabelecimento de um Tribunal Penal Internacional permanente. O Estatuto do TPI foi aprovado por 120 votos a favor, 7 contra e 21 abstenções, não tendo, até a presente data, entrado em vigor, pois, para isso, conforme seu art. 126, são necessárias 60 ratificações, estando o score atual abaixo da metade deste número.

Em apertada síntese, a proposta do TPI é de ser uma corte permanente com jurisdição global e com o objetivo de investigar e trazer a julgamento indivíduos – não Estados, papel da Corte Internacional de Justiça – que tenham cometido os chamados grandes crimes internacionais, a saber, genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade (agressão generalizada a civis, como tortura, estupros em massa, a "limpeza étnica", etc.).

A primeira idéia que nos acomete é, certamente, de apoio e aprovação. Quem, com boas intenções, poderia ser contra um mecanismo jurisdicional que tenha por objetivo punir genocidas e desestimular a ação sanguinária de ditadores pelo mundo afora? No entanto, o simples enunciado de um objetivo, por mais nobre que seja, é incapaz de encobrir as enormes – quiçá insuperáveis – dificuldades que um observador mais atento fatalmente encontrará ao se debruçar sobre o tema. Vamos a elas.

Em primeiro lugar, ao aderir ao Estatuto de Roma, um Estado terá que, obrigatoriamente, consentir em aceitar a jurisdição complementar do TPI. A Corte teria competência originária para os crimes de guerra, genocídio, agressão e crimes contra a humanidade, e oriunda de tratados para outros delitos como os referentes ao narcotráfico, crime organizado e delitos contra o meio ambiente. Esse direito de ingerência, para o qual até se criou um princípio, denominado de princípio da complementaridade, baseia-se na assertiva de que o TPI não é uma jurisdição estrangeira, mas sim uma extensão do sistema jurídico nacional, ou seja, não atuaria contra o consentimento dos Estados, exceto nos casos em que a Justiça interna "falhasse". Ora, chegamos aqui a um obstáculo quase que intransponível: a quem compete determinar a omissão da Justiça nacional? Baseado em quais critérios? O Brasil, por exemplo, aceitaria uma moção do TPI afirmando que os magistrados brasileiros teriam julgado errado? A ausência de resposta a esta questão somente confirma que aceitar o TPI nesses moldes, significa aceitar a interferência de uma jurisdição alienígena nos sistemas jurídicos nacionais, por mais que se tente sofismar o contrário.

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Não é só isso. O Estatuto de Roma, em seu art. 77, vai de encontro com diversas legislações penais, inclusive a brasileira, ao prever a pena de prisão perpétua para condutas extremas. Não se pode conceber um sistema penal, de abrangência planetária, feito justamente para conter abusos contra a humanidade, que contemple a pena de prisão perpétua – que nada mais é que uma pena de morte permanente –, numa flagrante violação a princípios basilares de direitos humanos.

Outro ponto de difícil transposição é o que se refere à extradição. É sabido que nosso ordenamento jurídico a proíbe (totalmente em relação aos brasileiros natos e relativamente aos naturalizados). O Estatuto de Roma quis pregar uma peça nas legislações que rechaçam, regra geral, a extradição de seus nacionais, ao argüir o termo entrega, e não extradição. Fora o fato de que esta se dá entre Estados e aquela entre um Estado e um Organismo Internacional, no mais diferença não há. Resumindo, novamente os ordenamentos jurídicos internos teriam de ser modificados para consentir na ingerência de um Órgão externo sobre seus concidadãos.

E tem mais. Conforme o artigo 114 do Estatuto de Roma, os gastos da Corte e da Assembléia dos Estados-parte, incluindo os da Mesa e dos órgãos subsidiários, serão cobertos pelos fundos próprios do TPI. Até aí, tudo bem. A questão é: qual a proveniência de tais fundos? Pois bem, basicamente três: quotas dos Estados-membros, fundos oriundos das Nações Unidas e aqui está o nó górdio: contribuições voluntárias de governos, organizações internacionais, particulares, associações e outras entidades.

Pergunta-se: até onde vai a legitimidade das decisões de um Tribunal cuja estrutura é sustentada por particulares? As nações admitirão correr o risco de depender exclusivamente da honestidade dos magistrados – cujos subsídios, obviamente, farão parte do custo da Corte – mesmo cientes de que empresas privadas, e até pessoas físicas, podem estar contribuindo financeiramente para o pleno funcionamento dessa Corte? Novamente, há nesse ponto, uma discrepância com nossa Lex Fundamentalis, que proíbe, veementemente, qualquer recebimento de verba proveniente de particular, por parte dos juízes ou tribunais.

Uma outra questão merecedora de análise é o papel da ONU, mais precisamente de seu controvertido Conselho de Segurança. Foi decidido em Roma que o Conselho de Segurança da ONU e o Tribunal Penal Internacional teriam papéis complementares. O imbróglio todo está na prerrogativa conferida ao Conselho de Segurança de solicitar a suspensão de processo ou investigação realizado pela Corte, por período renovável de doze meses, estabelecida no art. 16 do Estatuto. Ora, tal prerrogativa colide, de frente, com a necessária independência almejada pelo TPI, comprometendo toda a credibilidade do sistema. Como conceber um tribunal tutelado pelas ações de um órgão eminentemente político? (Mal comparando, é o mesmo que dispor ao presidente da República o poder de suspender processos que cheguem ao STF). Nesses moldes, a Corte Criminal Internacional já nasceria deformada, pois teria todo seu trabalho (que é técnico-jurídico por definição) subordinado a interesses políticos. Ressalte-se, ainda, o famigerado poder de veto, ainda em voga no Conselho de Segurança da ONU, que na prática inviabilizará qualquer processo contra quem esteja "apadrinhado" por um dos Estados que o constituem.

Concluindo, em que pese as nobres intenções dos que propugnam pela imediata instalação da Corte Criminal Internacional, nos moldes em que foi gerida na Itália, percebe-se, com evidente nitidez, que os obstáculos, conforme exposto acima, se configuram irremediavelmente maiores.

E não se trata, aqui, de uma visão pessimista. Não é o caso de duvidar da capacidade humana em se criar um mecanismo capaz de fazer frente aos odiosos crimes contra a humanidade, mas sim de criticar um esboço repleto de armadilhas – algumas delas aqui expostas – e que, ao final, somente servirá para manter as estruturas viciadas que fazem com que, em muitos aspectos, o Direito das Gentes não passe de uma ficção jurídica a envernizar a perene subjugação de alguns países que detêm a proeminência econômica, política e militar sobre os demais.

Essa é a razão pela qual inclino-me a considerar a Corte Penal Internacional, em sua essência, um sistema de manutenção do status quo dos poucos países que controlam as Nações Unidas, eis que ausentes vários requisitos que garantam à mesma plena independência e condições de isenção, itens imprescindíveis em qualquer órgão jurisdicional.

Aqui se encaixa, à perfeição, a tese da contradição, esposada genialmente por Karl Marx. Aquilo que, à primeira vista, se mostra belo e vistoso (a coibição de crimes contra a humanidade), entra no mundo real em profunda contradição (mecanismo de perseguição política que não reconhece limites nem fronteiras), perpetuando, assim – exatamente pela sua própria negação – a injustiça e a desigualdade entre as nações, reinantes, aliás, durante toda a História conhecida.


BIBLIOGRAFIA

1.JARDIM, Tarciso Dal Maso. In Corte Criminal Internacional. Artigo.

2.Revista Consulex nº 37 – Janeiro de 2000. pp. 26/33.

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Sobre o autor
Tércio Tokano

técnico da Procuradoria da República em Londrina(PR)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOKANO, Tércio. As contradições do tribunal penal internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2199. Acesso em: 19 abr. 2024.

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Publicado no jornal O Estado do Paraná, de 31/01/2001

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