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Crimes de informática: uma nova criminalidade

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01/10/2001 às 00:00
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4. Internet, Ciberespaço e Direito Penal

É muito antiga a noção de que Direito e Sociedade são elementos inseparáveis. "Onde estiver o homem, aí deve estar o Direito", diziam os romanos. A cada dia a Ciência Jurídica se torna mais presente na vida dos indivíduos, porque sempre as relações sociais vão-se tornando mais complexas.

A Internet, a grande rede de computadores, tornou essa percepção ainda mais clara. Embora, nos primeiros anos da rede tenham surgido mitos sobre sua "imunidade" ao Direito, esse tempo passou e já se percebe a necessidade de mecanismos de auto-regulação41 e hetero-regulação, principalmente por causa do caráter ambivalente da Internet.

CELSO RIBEIRO BASTOS, nos seus Comentários à Constituição do Brasil, percebeu essa questão, ao asseverar que "A evolução tecnológica torna possível uma devassa na vida íntima das pessoas, insuspeitada por ocasião das primeiras declarações de direitos"42. Força é convir que não se pode prescindir do Direito, para efeito da prevenção, da reparação civil e da resposta penal, quando necessária.

Tendo em vista as origens da Internet, é quase um contra-senso defender a idéia de que o ciberespaço co-existe com o "mundo real" como uma sociedade libertária ou anárquica. Isto porque a cibernética — que se aplica inteiramente ao estudo da interação entre homens e computadores — é a ciência do controle. A própria rede mundial de computadores, como um sub-produto da Guerra Fria, foi pensada, ainda com o nome de Arpanet (Advanced Research Projects Agency), para propiciar uma vantagem estratégica para os Estados Unidos, em caso de uma conflagração nuclear global contra a hoje extinta União Soviética.

A WWW – World Wide Web, que popularizou a Internet, propiciando interatividade e o uso de sons e imagens na rede, foi desenvolvida em 1990 no CERN — Organisation Européenne pour la Recherche Nucléaire/European Organization for Nuclear Research 43 , pelo cientista TIM BERNERS-LEE. O CERN é uma organização internacional de pesquisas nucleares em física de partículas, situada nas proximidades de Genebra, na Suíça, e fundada em 1954. Atualmente a sua convenção-constituinte tem a ratificação de vinte Estados-partes.

Além dessa origem pouco vinculada à idéia de liberdade, a grande rede não tem existência autônoma. As relações que se desenvolvem nela têm repercussões no "mundo real". O virtual e o real são apenas figuras de linguagem (um falso dilema), não definindo, de fato, dois mundos diferentes, não dependentes. Em verdade, tudo o que se passa no ciberespaço acontece na dimensão humana e depende dela.

Por conseguinte, a vida online nada mais é do que, em alguns casos, uma reprodução da vida "real" somada a uma nova forma de interagir. Ou seja, representa diferente modo de vida ou de atuação social que está sujeito às mesmas restrições e limitações ético-jurídicas e morais aplicáveis à vida comum (não eletrônica), e que são imprescindíveis à convivência. Tudo tendo em mira que não existem direitos absolutos e que os sujeitos ou atores desse palco virtual e os objetos desejados, protegidos ou ofendidos são elementos da cultura ou do interesse humano.

Mas a Internet não é só isso. No que nos interessa, a revolução tecnológica propiciada pelos computadores e a interconexão dessas máquinas em grandes redes mundiais, extremamente capilarizadas, é algo sem precedentes na história humana, acarretado uma revolução jurídica de vastas proporções, que atinge institutos do direito tributário, comercial, do consumidor, temas de direitos autorais e traz implicações à administração da Justiça, à cidadania e à privacidade.

Não é por outra razão que, do ponto de vista cartorial (direito registrário), a Internet já conta com uma estrutura legal no País, representada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, que delegou suas atribuições à FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, e tem regulamentado principalmente a adoção, o registro e a manutenção de nomes de domínio na rede brasileira.

Assim, verifica-se que não passam mesmo de mitos as proposições de que a Internet é um espaço sem leis ou terra de ninguém, em que haveria liberdade absoluta e onde não seria possível fazer atuar o Direito Penal ou qualquer outra norma jurídica44.

Estabelecido que a incidência do Direito é uma necessidade inafastável para a harmonização das relações jurídicas ciberespaciais, é preciso rebater outra falsa idéia a respeito da Internet: a de que seriam necessárias muitas leis novas para a proteção dos bens jurídicos a serem tutelados pelo Direito Penal da Internet. Isto é uma falácia. Afinal, conforme o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, do Supremo Tribunal Federal, a invenção da pólvora não mudou a forma de punir o homicídio45.

Destarte, a legislação aplicável aos conflitos cibernéticos será a já vigente, com algumas adequações na esfera infraconstitucional. Como norma-base, teremos a Constituição Federal, servindo as demais leis para a proteção dos bens jurídicos atingidos por meio do computador, sendo plenamente aplicáveis o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor, a Lei dos Direitos Autorais, a Lei do Software e o próprio Código Penal, sem olvidar a Lei do Habeas Data.

Os bens jurídicos ameaçados ou lesados por crimes informáticos merecerão proteção por meio de tutela reparatória e de tutela inibitória. Quando isso seja insuficiente, deve incidir a tutela penal, fundada em leis vigentes e em tratados internacionais, sempre tendo em mira o princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.

A atuação do Direito Penal será imprescindível em alguns casos, por conta da natureza dos bens jurídicos em jogo. Pois, pela web e no ciberespaço circulam valores, informações sensíveis, dados confidenciais, elementos que são objeto de delitos ou que propiciam a prática de crimes de variadas espécies. Nas vias telemáticas, transitam nomes próprios, endereços e números de telefone, números de cartões de crédito, números de cédulas de identidade, informações bancárias, placas de veículos, fotografias, arquivos de voz, preferências sexuais e gostos pessoais, opiniões e idéias sensíveis, dados escolares, registros médicos e informes policiais, dados sobre o local de trabalho, os nomes dos amigos e familiares, o número do IP — Internet Protocol 46, o nome do provedor de acesso, a versão do navegador de Internet (browser), o tipo e versão do sistema operacional instalado no computador.

A interceptação de tais informações e dados ou a sua devassa não autorizada devem ser, de algum modo, tipificadas, a fim de proteger esses bens que são relevantes à segurança das relações cibernéticas e à realização da personalidade humana no espaço eletrônico.

Como escreveu FERNANDO PESSOA, navegar é preciso. E no mar digital, tanto quanto nos oceanos desbravados pelas naus portuguesas, há muitas "feras" a ameaçar os internautas incautos, a exemplo do Estado e de suas agências (vorazes e ameaçadores como tubarões); dos ciberdelinqüentes (elétricos e rápidos como enguias); de algumas empresas (sedutoras e enganosas como sereias); dos bancos de dados centralizados (pegajosos e envolventes como polvos); e de certos provedores (oportunistas comensais como as rêmoras).

LAWRENCE LESSIG, o maior especialista norte-americano em Direito da Internet, adverte que a própria arquitetura dos programas de computador que permitem o funcionamento da Internet como ela é pode se prestar à regulação da vida dos cidadãos online tanto quanto qualquer norma jurídica47.

Uma nova sociedade, a sociedade do ciberespaço48 surgiu nos anos noventa, tornando-se o novo foco de utopias. "Here freedom from the state would reign. If not in Moscow or Tblisi, then here in cyberspace would we find the ideal libertarian society".

Para LESSIG, "As in post-Communist Europe, first thoughts about cyberspace tied freedom to the disappearance of the state. But here the bond was even stronger than in post-Communist Europe. The claim now was that government ´could not´ regulate cyberspace, that cyberspace was essencially, and unavoidably, free. Governments could threaten, but behavior could not be controlled; laws could be passed, but they would be meaningless. There was no choice about which government to install — none could reign. Cyberspace would be a society of a very different sort. There would be a definition and direction, but built from the bottom up, and never through the direction of a state. The society of this space would be a fully self-ordering entity, cleansed of governors and free from political hacks".49

A idéia anárquica de Internet tem nítida relação — que ora apontamos — com o movimento abolicionista, do qual HULSMAN50, é um dos maiores defensores. No entanto, segundo LESSIG, a etimologia da palavra "ciberespaço" remete à cibernética, que é a ciência do controle à distância. "Thus, it was doubly odd to see this celebration of non-control over architectures born from the very ideal of control"51.

Posicionando-se, LESSIG pontua que não há liberdade absoluta na Internet e que não se pode falar no afastamento total do Estado. O ideal seria haver uma "constituição" para a Internet, não no sentido de documento jurídico escrito — como entenderia um publicista —, mas com o significado de "arquitetura" ou "moldura", que estruture, comporte, coordene e harmonize os poderes jurídicos e sociais, a fim de proteger os valores fundamentais da sociedade e da cibercultura.

Essa moldura deve ser um produto consciente e fruto do esforço de cientistas, usuários, empresas e Estado, pois o "cyberspace, left to itself, will no fulfill the promise of freedom. Left to itself, cyberspace will become a perfect tool of control. Control. Not necessarily control by government, and not necessarrily control to some evil, fascist end. But the argument of this book is that the invisible hand of cyberspace is building an architecture that is quite the opposite of what it was at cyberspace´s birth. The invisible hand, through commerce, is constructing an architecture that perfects control — an architecture that makes possible highly efficient regulation"52.

Mais adiante, LESSIG arrola suas perplexidades diante das implicações do ciberespaço sobre o Direito, declarando que "Behavior was once governed ordinarily within one jurisdiction, or within two coordinating jurisdictions. Now it will sistematically be governed within multiple, non-coordinating jurisdictions. How can law handle this? 53 . Ou seja, como será possível enfrentar o problema do conflito real de diferentes ordens jurídicas nacionais, em decorrência de fatos ocorridos no ciberespaço ou na Internet?

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Contudo, JACK GOLDSMITH, citado por LESSIG, opina que "there is nothing new here. For many years the law has worked through these conflicts of authority. Cyberspace may increase the incidence of these conflicts, but it does not change their nature", posição que parece lançar um pouco de luz sobre o tema.

Ainda segundo LESSIG, a mudança das concepções a respeito dos hackers, dá idéia de como o Direito tem lidado com conflitos entre as normas do ciberespaço e as da comunidade do "espaço real". "Originally, hackers were relatively harmless cyber-snoops whose behavior was governed by the norms of the hacker community. A hacker was not to steal; he was not to do damage; he was to explore, and if he found a hole in a system´s security, he was to leave a card indicating the problem".

Isto porque, no início, a Internet era um mundo de softwares e sistemas abertos54, no qual valiosos arquivos e informações financeiras não eram acessíveis online. "Separate networks for defense and finance were not part of the Internet proper".

Todavia, com o avanço do cibercomércio, as coisas mudaram, e foi necessário estabelecer novas regras de segurança na rede, fazendo surgir um evidente conflito entre a cibercultura hacker e os interesses financeiros e econômicos das empresas e as preocupações estratégicas e de segurança do governo. "As these cultures came into conflict, real-space law quickly took sides. Law worked ruthlessly to kill a certain kind of online community. The law made the hackers´ behavior a ´crime´, and the government took aggressive steps to combat it. A few prominent and well-publicized cases were used to redefine the hackers´ ´harmless behavior´ into what the law could call ´criminal´. The law thus erased any ambiguity about the ´good´ in hacking" 55.

Exemplo disso foi o que se deu com ROBERT TAPPIN MORRIS, da Universidade de Cornell, que foi condenado a três anos de detenção, com direito a sursis (probation), pela Justiça Federal norte-americana, por violar o Computer Fraud and Abuse Act de 1986. Essa lei tipifica o crime de acesso doloso a "computadores de interesse federal" sem autorização, quando esse acesso cause dano ou impeça o acesso de usuários autorizados. MORRIS programou um worm 56 para mostrar as falhas do programa de email Sendmail, acabando por contaminar computadores federais, "congelando-os" ou deixando-os off-line.

Por conseguinte, embora repudiando o exagero de certas tipificações, não há como negar a interação entre a Internet e o Direito Penal. Isto porque o ciberespaço e sua cultura própria não estão fora do mundo. E, estando neste mundo, invariavelmente acabarão por sujeitar-se ao Direito, para a regulação dos abusos que possam ser cometidos pelo Estado contra a comunidade cibernética e para a prevenção de ações ilíctas e ilegítimas de membros da sociedade informatizada contra bens jurídicos valiosos para toda pessoa ou organização humana.

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Sobre o autor
Vladimir Aras

Professor Assistente de Processo Penal da UFBA. Mestre em Direito Público (UFPE). Professor da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Procurador da República na Bahia (MPF). Membro Fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAS, Vladimir. Crimes de informática: uma nova criminalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. -639, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2250. Acesso em: 22 nov. 2024.

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