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Crimes de informática.

Uma nova criminalidade

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01/10/2001 às 00:00
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8. Pedofilia e Internet

Outra grande questão gerada ou incrementado pelo advento da Internet é a que se refere aos chamados problematic speechs, inclusive o racismo, formas de discriminação, a pedofilia e pornografia eletrônicas. Tais discursos são considerados problemáticos por oporem o direito fundamental à liberdade de expressão a imperativos éticos, conflito que mais uma vez revela a necessidade da regulamentação.

Para SHAPIRO(90), o aparecimento da Internet fez surgir nos círculos governamentais sérias dúvidas quanto à natureza da rede, para efeito da incidência de normas jurídicas. Seria o conteúdo da Internet equivalente ao da imprensa stricto sensu, geralmente imune ao controle governamental? Ou a Internet seria similar ao rádio e à televisão, que são concessões do Estado? Ou, mais apropriadamente, a grande rede se equipararia ao sistemas postal e telefônico?

"As a result, lawmakers will dutifully compare the code features of the Internet to those of other media, trying to figure out whether it is most similar to print, broadcast, or common carriage"(91).

Contudo, segundo o mesmo autor, é preciso levar em conta que a Internet tem produzido alterações no contexto sócio-político, mais do que qualquer outra tecnologia recente (e nisso se diferencia das demais), provocando tensão entre dois valores concorrentes, assim propostos: a) em nome da segurança jurídica, devemos aplicar as normas existentes?; e b) à luz de um novo contexto tecnológico, devemos estabelecer novas normas?

"A solution to this quandary lies in finding a balance between those two approaches: a way that we might call the ´principles-in-context´ approach"(92), que implica a necessidade de aproveitar diretrizes testadas pelo tempo (maturadas ou amadurecidas) para obter resultados justos e eficazes num cenário que é diferente. Vale dizer: cabe-nos adotar os princípios subjacentes às leis existentes para adequá-los a um novo contexto.

SHAPIRO diz que, com a Lei da Decência nas Comunicações (Communications Decency Act) o governo dos Estados Unidos aplicou "the ´existing rules´ approach´ to this question and basically tried to graft to the Internet the vague indecency standards that govern radio and television (while upping the ante with a criminal penalty). The Supreme Court struck down the CDA on First Amendment grounds and expressly rejected the government´s strategy, noting that the Net was not like broadcast. The Court added that the CDA would have prevented adults from getting access to speech to which they were entitled and prevented parents from overriding the state´s decision about what their kids should see".

Como a introdução de uma norma restritiva da espécie do CDA (embora fundada em relevantes razões protetivas) representava uma limitação indevida no direito de acesso à informação e no direito à liberdade de pessoas adultas, a Suprema Corte americana acabou por determinar a sua desconformidade com a primeira emenda da constituição daquele país.

Desde então, as soluções imaginadas para o combate à pornografia e à pedofilia online têm sido variadas e começam pela proposta de instalação de programas reguladores de conteúdo nos computadores domésticos, como o Cyber Patrol, o CyberSitter e o NetNanny. Tais softwares filtram o conteúdo considerado impróprio para crianças e adolescentes. Pensou-se também no desenvolvimento de novos browsers, pela Microsoft e pela Netscape, de modo a impedir que crianças tenham acesso a conteúdo inadequado na rede.

Tais preocupações têm íntima relação com as questões da vida privada e da intimidade. "A fundamental principle of America´s constitucional system is that when government officials investigate criminal activity, they must also respect citizen privacy (...) To wiretap a phone and listen in on a conversation, police must prepare a sworn statement explaining why they have probable cause to investigate a person, and they must get a magistrate to approve the search. Failure to comply with this process may cause a court to suppress any evidence obtained"(93)

Para SHAPIRO, com a Internet não se pode tolerar os mesmos mecanismos que têm valido para a telefonia. As situações, segundo ele, diferem, pois as informações trocadas por via telefônica são em geral sucintas e pouco detalhadas, mesmo quando pessoais, ao passo que pelas redes de computadores transitam informações pessoais sensíveis, registros comerciais e financeiros, arquivos médicos e documentação jurídica, que, sem criptografia potente, estão absolutamente desprotegidos.

Evidentemente, os mecanismos de cifragem de documentos digitais trazem problemas para a sociedade, porque podem ser usados por pedófilos, terroristas e por agentes de crimes transnacionais de lavagem de capitais, por exemplo.

"Yet" — conclui SHAPIRO — "the answer to such a potencial dilemma, and to others, is not to reflexively deny individuals strong encryption, but to pursue other methods of law enforcement. It is, in fact, particularly in the interest of encryption proponents to work with law enforcement to figure out ways in which our communities can be protected without having institucional powers unnecessarily restrict privacy or the use of emmerging technologies. In fact, with its own use of new technology, law enforcement should have many more investigative advantages that will help it to enhance public safety without diminishing privacy rights"(94).

Dito isto, temos de reconhecer que, infelizmente, o arcabouço legislativo brasileiro, em matéria penal, não tem sido útil, até o momento, para a punição da pedofilia virtual ou por meio da Internet. Cuidamos do art. 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que considera crime "fotografar ou publicar cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente", prevendo no preceito secundário a sanção de reclusão de 1 a 4 anos.

Malgrado a precisão da definição legal, que não especifica o meio pelo qual o crime possa vir a ser cometido, recentemente o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro concedeu habeas corpus para trancar a ação penal promovida pelo Ministério Público fluminense contra um ciberpedófilo, ao argumento de que a posse e a transmissão privada de fotografias pornográficas não constitui crime(95).

O rastreamento feito pelo promotor ROMERO LYRA, com a ajuda de um hacker ético durou dois anos e, ao final, o Ministério Público conseguiu localizar 40 mil fotografias pornográficas de crianças. A operação, denominada de "Catedral Rio"(96) terminou com a apreensão de vinte e um computadores e denúncia contra onze adultos e representação contra quatro adolescentes, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Aguarda-se o julgamento do recurso interposto pelo Ministério Público com grande expectativa, tendo em vista que esse pode vir a constituir um leading case, que servirá como precedente para outras ações e julgamentos da mesma espécie.

Enquanto os tribunais não se manifestam, firmando jurisprudência, tramitam no Congresso Nacional vários projetos de lei, que visam a tipificar a pedofilia e o favorecimento à prostituição por meio da Internet. São dignos de registro:

a) o PLC n. 235/99, do deputado DR. HÉLIO (PDT-TO), que modifica o Estatuto da Criança e do Adolescente para estabelecer penalidades para a veiculação de pornografia infantil pelas redes de distribuição de informações, em especial a Internet, cominando pena de 2 a 8 anos de reclusão, fazendo responder à mesma sanção quem persuade, induz, faz intermediação, atrai ou coage criança ou adolescente a participar em práticas pedófilas;

b) o PLC n. 436/99, do deputado LUÍS BARBOSA (PPB-RR), que altera o art. 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente, para tipificar a conduta de veicular por meio de computador imagens de qualquer ato libidinoso envolvendo criança ou adolescente ou aliciá-los para a prática da prostituição;

c) o PLC n. 546/99 e o PLC 631/99, que também alteram o art. 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente, para nele incluir a pedofilia eletrônica;

d) o PLC n. 953/99, que visa a alterar os arts. 241 e 250 do Estatuto da Criança e do Adolescente;

e) o PLC n. 2937/2000, do deputado LINCOLN PORTELA (PST-MG), que altera o §1º, do art. 1º, e o art. 7º, da Lei de Imprensa, para proibir as propagandas que incentivem ou divulguem a prostituição de crianças, adolescentes e adultos nos meios de comunicação de massa, inclusive a Internet;

f) o PLC 3.383/97, de iniciativa do deputado WILSON BRAGA (PSDB-PB), que acrescenta parágrafo único ao art. 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente, incluindo dentre os crimes em espécie, com pena de reclusão e multa, a conduta de colocar à disposição de criança ou de adolescente, ou do público em geral, através de redes de computadores, incluindo a Internet, sem método de controle de acesso, material que contenha descrição ou ilustração de sexo explícito, pornografia, pedofilia ou violência; e

g) por fim, o PLC n. 1.983/99, do deputado PAULO MARINHO (PSC-MA), que acrescenta os §§4º e 5º ao art. 228 do Código Penal (crime de favorecimento à prostituição), tornando típica a divulgação de material que incentive a prática de prostituição pela Internet, determinando pena de reclusão e multa, apreensão da publicação e interdição da página web.

Sem dúvida é de se louvar a preocupação de nossos congressistas com o tema pedofilia virtual, inclusive quanto à preocupação de considerar cometido o crime apenas quando não seja empregado método de controle de acesso. Mas as mesmas pergunta de antes quedam sem resposta: como identificar a autoria de tais crimes? E como determinar a autoridade competente para o seu processo e julgamento?


9. Conclusões

As muitas perguntas sem resposta que surgiram com o ciberdireito junto da certeza da ineficácia de jurisdições territoriais e da reconhecida inoperância efetiva das normas nacionais na Internet, tudo leva-nos a concluir que somente o direito internacional público pode servir de instrumento para a solução de alguns desses problemas. Afinal, a questão da criminalidade informática transnacional e o problema dos paraísos virtuais (tanto quanto o dos paraísos fiscais de lavagem de dinheiro), somente se resolverão com convenções internacionais de grande abrangência.

Exemplifica essa necessidade o caso CLAUDE GUBLER. Autor de "O Grande Segredo" (Le Grand Secret), GUBLER foi médico particular do ex-presidente francês FRANÇOIS MITERRAND e, nessa condição, pôde partilhar alguns segredos da vida privada do falecido chefe de Estado, resolvendo relatá-los no livro acima referido. A obra teve a sua circulação proibida na França, e o autor, para livrar-se da censura, fê-la publicar in totum em vários sites, fora da jurisdição francesa, tidos como paraísos virtuais na Internet. Ou seja, por meio de provedores de conteúdo situados em território estrangeiro, longe do alcance da lei francesa, pode-se alcançar virtualmente todos os leitores franceses, na França ou não.

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Esse acontecimento gerou perplexidades no que tange à amplitude da liberdade de expressão, aos limites do sigilo médico, à necessidade de proteção da privacidade e da memória de pessoas mortas, e à competência para julgar causas dessa espécie, pondo à lume o problema da ineficácia do processo, segundo o direito interno ora vigente, em certos crimes virtuais.

Por isso, IVES GANDRA DA SILVA MARTINS e ROGÉRIO VIDAL GANDRA DA SILVA MARTINS(97) defendem a opinião de que o recente fenômeno da universalização das comunicações por computador exige a preparação de uma legislação universal, "de controle de todos os países, mediante disciplina jurídica idêntica e com possibilidades de intervenção supranacional de órgãos internacionais e/ou comunitários".

Fundam-se os referidos autores no parecer do Comitê Econômico e Social da União Européia, de n. 97/C290/04, que considera necessária a cooperação global para a criação de regras mundiais para a proteção da vida privada, da propriedade industrial e intelectual, etc, no âmbito da sociedade planetária da informação.

De qualquer modo, é quase um consenso que, pelos critérios de lesividade, fragmentaridade e intervenção mínima postos à lume como diretrizes, certas condutas ilícitas devem ser deixadas apenas à imposição de sanções civis. No plano interno, o art. 159 do Código Civil de 1916(98) estabelece claramente o dever de indenizar e tal preceito, embora antigo, presta-se perfeitamente para regular relações do Direito da Informática e do Direito da Internet.

Antes de o Direito Penal ser chamado a intervir, outras soluções podem ser pensadas e outras tantas já podem ser postas em prática. Muitas das formas de proteção de bens jurídicos virtuais ou não dependem do próprio usuário.

A Eletronic Frontier Foundation — EFF(99) sugere que o internauta não revele informação pessoal a terceiros, recuse cookies e programas com extensão .EXE (de executável), tenha um segundo email "secreto", esteja atento e desconfie sempre de propostas e ofertas tentadoras, navegue por sítios seguros ou aprovados por pessoas conhecidas, use criptografia e consulte a política de privacidade de seu provedor e das páginas que acessar. Certamente essas são medidas individuais de segurança para impedir a vitimização no campo da informática.

Quanto aos abusos do Estado e das empresas de Internet, além do Direito Civil, do Direito Comercial e do Direito do Consumidor, como mecanismos de proteção, podem ser pensadas estratégias associativistas e coletivas, como a fundação de ongues (ONGs) e a realização de campanhas nos moldes das existentes nos Estados Unidos, como a Blue Ribbon — The Online Free Speech Campaign, o Big Brother Awards — que já "premiou" o FBI, a Microsoft, a FAA e a empresa DoubleClick —; o Brandeis Awards, conferido a Phill Zimmermann, criador do programa PGP, entre outras iniciativas, que se prestam a criar uma cultura de respeito aos direitos individuais e coletivos no ciberespaço.

Ao lado dessas soluções — e, se ineficazes estas —, o Direito Penal deve ser chamado a atuar, ainda que como ultima ratio, na perspectiva da internacionalização desses delitos, que, no dizer de FRAGA são transnacionais por excelência(100). Estes, segundo o relatório das Nações Unidas sobre a cooperação internacional no combate ao crime transnacional, são "offences, whose inception, perpetration and/or direct effect or indirect effects involved more than one country".(101)

A globalização econômica certamente conduzirá à mundialização das relações humanas noutras áreas, permitindo uma interconectividade sócio-cultural jamais vista, trazendo com isso benefícios e malefícios. Entre estes, a criminalidade informática, impulsionada pela facilidade de acesso e movimentação dos agentes no mundo virtual, é um dos mais evidentes.

A ambivalência dos computadores é um fato. Devemos conviver com ela. E, em cuidando de convivência, o Direito se apresenta como uma das soluções para as ditas inquietudes. Pois, por enquanto, também no mundo virtual, a realidade é que temos como virtualmente impossível dispensar a atuação do Direito e, nalguns casos, a incidência da norma penal como garantia da harmonização social aqui e no ciberespaço.

Choque do Futuro"

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Sobre o autor
Vladimir Aras

Professor Assistente de Processo Penal da UFBA. Mestre em Direito Público (UFPE). Professor da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU). Procurador da República na Bahia (MPF). Membro Fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAS, Vladimir. Crimes de informática.: Uma nova criminalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2250. Acesso em: 23 abr. 2024.

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