O status do tratados internacionais não pode ser outro que não o de verdadeira norma materialmente constitucional
Valerio de Oliveira Mazzuoli
O tema que trago hoje à reflexão dos leitores é polêmico e atual: a incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no ordenamento brasileiro. Sobre ele os internacionalistas já discutem há mais de uma década, desde a promulgação da Constituição de 1988.
A Constituição Federal de 1988 inova, em relação às Cartas anteriores, quando traz um leque de princípios a reger a República Federativa do Brasil no cenário internacional. Pela primeira vez, em uma Constituição brasileira, aliás, vem expresso o princípio da prevalência dos direitos humanos, o que demonstra um grande avanço do texto de 1988, em relação às demais Constituições existentes no Brasil até então.
Na revisão constitucional de 1994, houve proposta revisional, infelizmente rejeitada, no sentido de substituir o parágrafo único do art. 4º da Constituição, por um novo texto mais condizente com a realidade atual do direito internacional. Dentre as suas disposições estaria aquela que estabelecia que "as normas de direito internacional são parte integrante do direito brasileiro" e que "desde que expressamente estabelecido nos respectivos tratados, as normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais, de que o Brasil seja parte, vigoram na ordem interna brasileira". A proposta, contudo, não vingou.
Pois bem, o processo de formação dos tratados tem início com os atos de negociação, conclusão e assinatura do tratado, que são da competência do órgão do Poder Executivo. No Brasil, toda negociação de ato internacional deve ser acompanhada por funcionário diplomático, que aprova a estrutura regimental e indica a natureza e competência do Ministério das Relações Exteriores. O texto final do ato internacional, juridicamente, deve ser aprovado pela Consultoria Jurídica do Itamaraty e, sob o aspecto processual, pela Divisão de Atos Internacionais. Assinado o tratado pelo Chefe do Executivo, cabe ao Poder Legislativo a incumbência de apreciá-lo e aprová-lo. Pelo art. 7º, § 1.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, a adoção ou autenticação do texto de um tratado, para manifestar o consentimento de um Estado em obrigar-se pelo mesmo, deve ser efetuado por uma pessoa que é detentora de plenos poderes para tal.
A Carta de 1988, neste tema, dispõe ser competente para a celebração de atos internacionais em nome do Governo brasileiro o presidente da República (art. 84, VIII), cabendo ao ministro de Estado das Relações Exteriores, nos termos do parágrafo único do art. 1º, do Anexo I do Decreto n.º 2.246/97, a tarefa de "auxiliar o presidente da República na formulação da política exterior do Brasil, assegurar sua execução e manter relações com Estados estrangeiros, organismos e organizações internacionais". No Brasil, qualquer autoridade, segundo a prática do Ministério das Relações Exteriores, pode assinar um ato internacional, desde que possua Carta de Plenos Poderes, firmada pelo presidente da República e referendada pelo ministro das Relações Exteriores. A única exceção à regra geral da obrigatória apresentação dos plenos poderes é a que se refere aos atos bilaterais ou multilaterais firmados pelos embaixadores plenipotenciários acreditados.
Uma vez aprovado o tratado pelo parlamento, retorna ele ao Poder Executivo para a sua ratificação, ato unilateral através do qual o Estado, sujeito de direito internacional, aceita definitivamente as obrigações internacionais que assumiu, irradiando, necessariamente, efeitos no plano internacional. À ratificação, segue-se o depósito de seu instrumento em órgão que assuma a sua custódia, cuja notícia o depositário dará aos demais pactuantes. Não tendo o Estado participado das negociações do tratado, nem tampouco de sua assinatura, mas desejando dele se tornar parte, poderá fazê-lo através da adesão, que possui, segundo a doutrina, a mesma natureza jurídica da ratificação.
Antes da Constituição de 1988, o STF tinha se pronunciado a respeito da orientação de vigência e eficácia imediatas, no ordenamento interno brasileiro, dos pactos, tratados e convenções internacionais em geral, de que o Brasil seja signatário, dizendo que não se exige, além da aprovação do tratado, a edição de um segundo diploma legal (específico) que reproduza as normas modificadoras. Em razão deste entendimento, os tratados internacionais ingressam no ordenamento brasileiro com vida própria, com força própria, sendo o decreto presidencial a via pela qual somente se dá publicidade ao conteúdo dos tratados, fixando-lhes também o início de vigência.
Entretanto, em mais uma de suas mutações, o STF passou a novamente ter entendimento oposto, qual seja, o de que "o decreto presidencial que sucede à aprovação congressual do ato internacional e à troca dos respectivos instrumentos de ratificação, revela-se enquanto momento culminante do processo de incorporação desse ato internacional ao sistema jurídico doméstico manifestação essencial e insuprimível, especialmente se considerados os três efeitos básicos que lhe são pertinentes: a) a promulgação do tratado internacional; b) a publicação oficial de seu texto; e c) a executoriedade do ato internacional, que passa, então, e somente então, a vincular e a obrigar no plano do direito positivo interno".
O parágrafo 2.º, do art. 5.º, da Constituição Federal de 1988, dispôs que os direitos e garantias expressos na Constituição "não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte", cujo caráter é de norma eminentemente aberta (norma de fattispecie aberta), pois dá margem à entrada ao rol dos direitos e garantias consagrados na Constituição, de outros direitos e garantias provenientes de tratados, revelando o caráter não fechado e não taxativo do elenco constitucional dos direitos fundamentais. O parágrafo 2.º, do art. 5.º, da Carta da República, assim, está a admitir que tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ingressem no ordenamento jurídico brasileiro no nível das normas constitucionais, e não no âmbito da legislação ordinária, como quer a posição majoritária do Supremo Tribunal Federal.
Ora, se a Constituição estabelece que os direitos e garantias nela elencados "não excluem" outros provenientes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art. 5.º, § 2.º), é porque está ela própria a autorizar que esses direitos internacionais constantes dos tratados internacionais pelo Brasil ratificados "se incluem" no nosso ordenamento, passando a ser considerados como se escritos na Constituição estivessem. E assim o fazendo, o status do produto normativo convencional não pode ser outro que não o de verdadeira "norma materialmente constitucional"(1).
O assunto é atual e importante, em conseqüência da globalização da economia, da intensificação das relações internacionais, do surgimento de blocos econômicos, da formação de mercados comuns (entre nós, o Mercosul) e do aparecimento, até mesmo, de órgãos supranacionais. Que continue despertando o interesse de número cada vez maior de estudiosos e que novas reflexões se façam propiciando a rediscussão da matéria.
NOTAS
1 Para se aprofundar no tema, indicamos os livros: "Tratados Internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969" (Editora Juarez de Oliveira), e "Direitos Humanos & Relações Internacionais" (Agá Juris, 2000).