III – Conclusão
No ensaio publicado em Prismas, Theodor W. Adorno ressalta o esforço interpretativo ao qual o leitor de Kafka é levado ao se deparar com seus escritos. Mesmo que queira manter, pode-se dizer, uma distância segura dos textos, a necessidade da interpretação se coloca como insuperável, inafastável:
A violência com que Kafka reclama interpretação encurta a distancia estética. Ele exige do observador pretensamente desinteressado um esforço desesperado, agredindo-o e sugerindo que de sua correta compreensão depende muito mais que apenas o equilíbrio espiritual: é uma questão de vida ou morte. Um dos pressupostos mais importantes de Kafka é que a relação contemplativa entre o leitor e o texto é radicalmente perturbada. Os seus textos são dispostos de maneira a não manter uma distância constante com sua vítima, mas si de exercitar de tal forma os seus sentimentos que ela deve temer que o narrado venha em sua direção, assim como as locomotivas avançam sobre o público na técnica tridimensional do cinema mais recente.[22]
Alertados por Adorno, resta-nos, então, buscar a interpretação, ou melhor, as interpretações que, mesmo se tentássemos nos desviar ou ficar indiferentes a elas, invariavelmente, nos atropelariam.
As figuras do pai-tribunal e do pai-vítima parecem estar em um constante duelo durante a narrativa da novela. Duelo em que o embate, porém, não leva a um vencedor.
A posição de Georg, por sua vez, também parece trilhar uma montanha-russa. Por vezes culpado ao sair tardiamente de seu mundo individual, de alienação frente a realidade, do eu, e só então descobrir o outro, ou os outros ao seu redor. Mas, por vezes inocente, vítima de uma vingança do pai, tramada durante anos, enquanto apenas procurava cumprir e se adequar ao papel social vigente que se esperava dele.
A decisão final cabe ao leitor, ao intérprete, que mesmo permanecendo indeciso, jamais sairá ileso da leitura de Kafka, mas sim, posicionado em rota de colisão com a locomotiva tridimensional de sua narrativa, como citado por Adorno.[23]
Adorno, entretanto, fornece-nos um indício: assim como os demais personagens de Kafka, Georg não torna-se “culpado por sua própria culpa” – pois não possui culpa alguma – mas porque buscou apoio na justiça:
Os heróis de O processo e de O castelo tornam-se culpados não por sua própria culpa – eles não têm nenhuma -, mas porque procuram trazer a justiça para o seu lado. “O pecado original, a antiga injustiça cometida pelo homem, consiste na censura que o homem faz e não deixa de fazer, ao afirmar que o pecado original lhe foi imposto.”[24]
Ao buscar sua aprovação, Georg de fato procura valer-se da justiça que o pai-tribunal representa. Acaba, porém, imputado de culpa. É condenado, encontra sua sentença de morte, seu veredicto.
Seja qual for o caminho escolhido pelo intérprete, o trânsito sobre a ponte permanecerá praticamente interminável.
VI – Bibliografia
ADORNO, Theodor W. Prismas. São Paulo: Ática, 1998.
CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Vol. 2 – Parte Especial. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
DELMANTO, Celso (et al.). Código Penal Comentado. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito & Literatura – Análise de Síntese Teórica. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2008.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. V, 5ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1979.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal – Vol. 2 – Parte Especial. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
KAFKA, Franz. O veredicto e A colônia penal. 4ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MACHADO, Angela C. C.; COPELLI, Maria Angela G. (Org.). Repertório de Jurisprudência de Direito Penal e Processo Penal. 4ª ed. São Paulo: Premier Máxima, 2007.
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SILVEIRA, Euclides Custódio da. Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973.
SOUZA, Ricardo Timm de. A justiça, o veredicto e a colônia penal – um ensaio. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011.
Notas
[1] CARONE, Modesto. Posfácio: Duas novelas de primeira. In: KAFKA, Franz. O veredicto e Na colônia penal. 4ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 75.
[2] Ibidem. p. 77.
[3] CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 13
[4] KAFKA, Franz. Op. Cit., p. 22.
[5] RICOUER, Paul. O justo ou a essência da justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p. 172.
[6] Ibidem. p. 173-174.
[7] KAFKA, Franz. Op. Cit., p. 15.
[8] Ibidem, p. 16.
[9] Idem, p. 18.
[10] KAFKA, Franz. Op. Cit., p. 24
[11] RICOEUR, Paul. Op. Cit., p. 178.
[12] KAFKA, Franz. Op. Cit., p. 23.
[13] Ibidem, p. 25.
[14] BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848 de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal. Publicado no Diário Oficial da União de 31 de dezembro de 1940 e retificado em 3 de janeiro de 1941.
[15] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. V, 5ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 93.
[16] SILVEIRA, Euclides Custódio da. Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 94-95.
[17] HUNGRIA, Nelson. Op. Cit., p. 93.
[18] PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 407.
[19] DELMANTO, Celso (et al.). Código Penal Comentado. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 464.
[20] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal – Vol. 2 – Parte Especial. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
[21] MACHADO, Angela C. C.; COPELLI, Maria Angela G. (Org.). Repertório de Jurisprudência de Direito Penal e Processo Penal. 4ª ed. São Paulo: Premier Máxima, 2007, p. 197-198.
[22] ADORNO, Theodor. Anotações sobre Kafka. In: ADORNO, T. Prismas. São Paulo: Ática, 1998. p. 241.
[23] Ibidem,
[24] Idem, p. 269