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Eutanásia.

Uma análise a partir de princípios éticos e constitucionais

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01/10/2001 às 00:00
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3. AS DIFERENÇAS ENTRE BIOÉTICA E BIODIREITO

Embora os termos Bioética e Biodireito sejam semelhantes, não são sinônimos, sendo que um versa sobre ética e o outro sobre direito.

3.1 Bioética

Para o Dr. Carlin, Bioética, é "a maneira de regulamentação das novas práticas biomedicinais, atingindo três categorias de normas: deontológicas, jurídicas e éticas, que exigem comportamento ético nas relações da biologia com a medicina". (1996, p. 34 –35).

Marco Segre entende que "é a parte da Ética, ramo da filosofia, que enfoca as questões referentes à vida humana (e, portanto, à saúde). A bioética, tendo a vida como objeto de estudo, trata também da morte (inerente à vida)". (1995, p. 23).

Pode-se firmar que, a conceituação do termo bioética foi traduzido de uma forma que norteou todos os estudiosos das áreas envolvidas com o tema Bioético, sendo que esse conceito foi o adotado pela enciclopédia de Bioética, coordenada por W.T. Reich, na edição de 1978, definindo a bioética como "o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, na medida em que esta conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais" (Clotet, 1993, p. 16). Já na edição de 1995, tem-se que "bioética é o estudo sistemático das dimensões morais – incluído visão moral, decisão, conduta e políticas – das ciências da vida e atenção à saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas em um cenário interdisciplinar". (Reich, 1995, p. 9)

A ética tem sido fundamental no exercício da Medicina em todas as épocas, mas, definitivamente, foi após a Segunda Guerra Mundial que a problemática da Bioética passou a ser objeto de estudo também da Filosofia, da Religião, das Ciências Sociais, do Direito, e, principalmente, das pesquisas em Ciências Biológicas.

Inicialmente restringia-se a Bioética ao Juramento Hipocrático, que tratava unicamente das obrigações e, conseqüentemente, das responsabilidades médicas, visando uma orientação de que o médico deveria mirar-se no bem-estar do paciente e da pertinente ação de não causar danos ao mesmo

No Tribunal de Nurenberg, através da condenação dos médicos considerados culpados de conduta contrária aos valores humanos, nas experimentações que ocorreram durante o regime Nazista da Alemanha, fez-se com que a Bioética passasse a ser objeto de estudos para as ciências já mencionadas, sendo que, dessa forma, a Bioética impôs-se como uma realidade e um novo objeto de estudos, que se iniciou na barbárie Nazista e persiste até o pretensioso Projeto Genoma.

Pode-se dizer que a Bioética analisa os problemas éticos dos pacientes e de todos os envolvidos na assistência médica, bem como de pesquisas científicas relacionadas com o início, a continuação e o fim da vida - como a engenharia genética, transplantes de órgãos, a reprodução humana assistida (embriões congelados, fertilização in vitro), prolongamento artificial da vida, os direitos dos pacientes terminais, a morte encefálica, a eutanásia, dentre outros fenômenos. Enfim, a bioética visa unicamente analisar as implicações morais e sociais das técnicas resultantes dos avanços nas ciências.

3.2 Biodireito

É ramo muito recente da ciência jurídica, e tem por objeto a análise, a partir de uma ótica jurídica, através de várias metodologias, dos princípios e regras que criam, modificam e extinguem as relações entre indivíduos e grupos, e entre esses com o Estado, quando essas relações disserem respeito ao início da vida, e ao transcurso dela ou ao seu fim.

Tais descobertas científicas, por serem recentes na literatura jurídica, e muitos careceram de regulamentação específica, demandam uma apreciação científica e ética, a qual necessita ser precedida de um debate acerca dos princípios que devem servir de parâmetros referenciais para o legislador.

Entretanto para que todas essas descobertas venham ao encontro do homem, necessário é que não fira o princípio constitucional fundamental da Dignidade da Pessoa Humana.

Evidente que o Direito deve abandonar imediatamente estas posturas – indiferentes e auto-suficiência – e buscar adequar-se aos novos tempos – à evolução das sociedade determinada pelos avanços da bioética.

Em parêntese, é preciso esclarecer que quando se fala em que o Direito tem se mostrado inerte ou arrogante, se está falando da postura da grande maioria dos juristas tradicionais, porque na realidade importantes vozes têm se levantado em alerta para a defasagem já mencionada. De outro lado, tomada a expressão bioética com a acepção original, com a abrangência pensada por Potter, se pode verificar que em algumas áreas, como, por exemplo, o meio ambiente, há uma certa preocuparão dos legisladores e juristas, também, que o direito experimentou uma razoável satisfatória, evolução neste campo nestas duas últimas décadas, (Esta evolução é sensível no Brasil, lugar de onde se está falando, embora seja visível no mundo inteiro) deficiência primordial se encontra nas questões relativas à biotecnologia. (Carlin, 1998, p. 100-101)

O Direito, no âmbito da Bioética, e, no momento, sendo discutido como Biodireito, encontra uma forte corrente de entendimento de que é aquilo que está codificado, ou seja, Direito é somente aquilo que está positivado, sendo que nesse âmbito inclui a variação de normas que impõem deveres e obrigações, legitimações, etc. E esse pensamento é que impulsiona a grande parte dos juristas, segundo Ramón Mateo (Carlin, 1998, p.99.):

Só a lei pode dizer-nos quando e em que condições se pode praticar um aborto ou realizar um transplante de órgãos. A fecundação artificial – e suas conseqüências jurídicas: filiação e herança – é também da incumbência do legislador. O internamento psiquiátrico imperativo, a vacinação obrigatória, as condições de experiências com humanos, a decisão geral do que se considera morte biológica, são, entre outros, expoentes de campos para os quais é inescusável o pronunciamento da lei. O mesmo pode dizer-se dos direitos sociais. De nada vale proclamar enfaticamente o direito à saúde de todos os cidadãos, se não se adota um estatuto que faça efetivo o acesso aos serviços sanitários.

Não parece discutível que somente a partir do ordenamento positivo, quer dizer, da criação do biodireito, possam resolver-se os problemas que vislumbra a bioética. (Carlin, 1998, p. 101-102)

Verifica-se que tal postura adotada é preocupante, haja vista que o autor entende que o biodireito é prioridade sobre a bioética. Casabona lembra que o Direito nem sempre opera assim, mas há ocasiões em que não se pode oferecer princípios normativos unívocos. Nestas condições, segundo o mesmo autor, "o Direito algumas vezes não está em condições de oferecer respostas adequadas, válidas para realidades ou fenômenos sociais novos, como está ocorrendo, em certa medida, com as ciências Biomédicas" (Carlin, 1997, p. 102)

Ao Direito cabe, propriamente, o papel legitimador, mas, com a questão envolvendo a Bioética, surge a necessidade de uma aderência maior e mais eficaz do direito, pois, até a sua positivação, podem ocorrer alterações ou atos que não sejam passíveis de reversão.

A Bioética e Biodireito são faces não opostas do conhecimento e do agir do ser humano. Mesmo que o enfoque divirja, o objeto sempre será o mesmo. Enquanto que a Bioética analisa o agir humano, o Biodireito considera os resultados externos, de uma ação, avaliados por um ordenamento jurídico. Como já foi afirmado que o objeto é o mesmo para ambos os estudos, a ordem do conhecimento prático exige-os mutuamente. A ordem jurídica remete à ordem moral para fundamentar a validade e os valores que sustentam a ordem constitucional. Dessa forma, a ordenação jurídica, que não tem base ética, não consegue impor-se, sendo que a ordem moral remete para a ordem jurídica para ter força jurídica e eficácia prática, no sentido de possibilitar a convivência social e educar para as exigências éticas de uma ordem democrática.

Enquanto que a bioética é uma das faces mais dinâmicas do panorama da ética, o biodireito não corresponde em contrapartida ao ordenamento jurídico.

A eficácia da bioética só se fará completa quando o biodireito já estiver positivado. Com os constantes avanços bioéticos, torna-se indispensável que o direito normatize questões a eles ligados, prevendo-os, regulamentando-os e, mesmo, criando sanções.

O problema está na própria dificuldade de definir vida humana, dignidade humana, pessoa humana que são metajurídicas de opção antropológica e ética. Em geral, as ordenações baseiam-se nas grandes declarações internacionais sobre direitos humanos. Mas estas declarações são vagas e podem apenas servir de fundamentação ética, não tendo força legal. A bioética necessita de formulações jurídicas mas claras e concretas. (Junges, 1999, p. 124)

Verifica-se a dificuldade na formação do biodireito, persistindo as lacunas, o que faz com que a bioética avance baseada apenas nas questões ética e não na questão jurídica, sendo que os avanços bioéticos atingem, de forma generalizada, a todos os seres humanos, enquanto que a questão voltada para o direito limita-se as declarações internacionais, sendo que estamos em um planeta com uma significativa pluralidade de opiniões e posturas frente aos direitos.

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Para analisar ordenações legais que dizem respeito a problemas bioéticos, o jurista italiano Franscesco D’Agostinho formulou quatro paradigmas para compreensão e formação do biodireito, abaixo elencados (Junges, 1999)

  1. Paradigma Formalístico – Para esse paradigma, o específico jurídico não está na materialidade da norma, dependente unicamente do legislador, mas na sua estrutura formal. Em matéria de bioética, os juristas não teriam competência. Sua intervenção seria apenas extrínseca, enquanto possibilitam a formalização do ordenamento legal. Neste sentido, é impensável a constituição de um biodireito para este paradigma, pois o papel do direito é a pura formalização de decisões éticas prévias.

  2. Paradigma Individualístico-libertário – Este paradigma parte do pluralismo ético e nega ao direito uma função educativa e promocional. Ao contrário do paradigma precedente, não atribui ao direito uma função puramente formal, mas um papel mais substancial de garantir a cada indivíduo o direito à privacidade e à autonomia em sua decisões pessoais. O direito tem como objetivo defender os direitos dos singulares, entendidos como solicitações expressas e exigidas pelos indivíduos. Não existem direitos "em si", mas aqueles reconhecidos e reivindicados pelo sujeito. Quem não está em condições de exigir os seus direitos (fetos e adultos excepcionais) está excluído da proteção jurídica. Para serem coerentes, os defensores deste paradigma deveriam excluir também crianças. Não teriam proteção por si mesmas, mas por aqueles que exercem a tutela sobre elas.

  3. Paradigma Procedimental – trata-se de um paradigma mais sofisticado de tipo adaptativo. Parte do pressuposto de que o social não é pura agregação de interesses dos sujeitos singulares e de que não existem critérios prévios para dirimir os conflitos entre os interesses. Por isso atribui, ao direito, a função de defender uma ética convencional pública que fixe universalmente os procedimentos, publicamente aceitos, para gerir os problemas sociais. Portanto, os procedimentos são válidos porque foram convencionados e ninguém pode alterá-los por iniciativa própria ou a partir de uma visão ética particular. Este paradigma tem maior consistência jurídica, porque baseia-se na racionalidade democrática do acordo político. O seu limite é reduzir a democracia à mera convenção numérica e, por isso, impossibilitar a elaboração de uma normativa de caráter contrafactual.

  4. Paradigma Relacional – este paradigma assume a dimensão relacional de ser humano com o ponto de partida e vê o direito como um sistema objetivo de defesa das expectativas irrenunciáveis da pessoa humana na sua realidade de sujeito-em-relação. Portanto, o paradigma "relacional" possui um critério específico material para determinar a justiça. Nesta perspectiva, é juridicamente ilícita toda modalidade de relação que altere a simetria da reciprocidade, dando a um elo de relação poderes ou privilégios indevidos que não sejam também reconhecidos a outra parte. Para a Bioética, este paradigma revela-se particularmente fecundo. O direito é chamado a superar o reducionismo, que determinam a defesa dos direitos e a gestão da subjetividade jurídica. Esta é entendida numa lógica essencialmente individualista que desapossa e descapacita dos direitos quem é considerado fora da trama relacional. Este paradigma fundamenta-se numa antropologia relacional: o sujeito é estruturalmente aberto à alteridade, é constituído pela alteridade. Encontra-se nessa mudança não só a única possibilidade de defesa e promoção da sua dignidade, mas a única via de conquista da própria identidade. O vínculo que relaciona todo ser humano a outros seres humanos (principalmente o vínculo que aproxima quem cuida de alguém e quem é cuidado) não é apenas um vínculo social, mas mais profundamente, um vínculo humano-existencial, constituído pela subjetividade de ambos. O jurista deve reconhecer que não existe nenhuma expectativa juridicamente justa que não tenha seu fundamento na reciprocidade, nem direitos que possam ser reivindicados fora do contexto indivíduo, porque tal indivíduo propriamente não existe.

Ao garantir a relacionalidade, o direito não defende propriamente nenhum bem ou valor, nem mesmo o bem fundamental da vida. Contudo, põe uma condição para sua aceitação. Garante aqueles bens e valores que forme coerentes com a lógica da relacionalidade. Por mais alto e apreciado, determinado bem ou valor não é defensável se incompatível com a lógica da reciprocidade.

Cabe afirmar que o direito não tutela uma forma típica de relação, mas a relacionalidade em si mesma, isto é, aquela que funda a subjetividade e pressupõe a paridade ontológica dos coexistentes.

O papel do direito, assim como o da Bioética, que significa uma dinamização teórica e prática da ética em geral, exige uma reformulação das próprias categorias jurídicas constitutivas. A Bioética impulsiona uma teoria e uma prática dos seus pressupostos e procedimentos jurídicos para poder articular um biodireito, sendo que para atender a esse desafio devem ser seguidos pelos juristas o seguinte esquema apresentado na obra do Prof. Junges:

  • Reinterpretar, em chave relacional, a subjetividade jurídica geral e daqueles sujeitos caracterizados por debilidade relacional.

  • Reconhecer que a normatividade intrínseca dos sujeitos jurídicos, enquanto sujeitos sociais, não encontra seu fundamento na vontade do legislador, mas na própria identidade substancial do "social", como um conjunto de dinâmicas relacionais.

  • Individualizar o significado intrínseco das relações interpessoais como critério último da normatividade bioética.

  • Contribuir para a inserção dos direitos bioéticos no sistema positivo dos direitos humanos, entendidos como sistema que está acima dos Estados.

  • Reafirmar o caráter estritamente relacional da epistemologia jurídica. O direito é uma ciência prática que tem como objeto as ações sociais que são sempre intersubjetivas e cuja epistemologia é, por isso, essencialmente relacional. (Junges, 1999).

Pode-se, dessa forma, afirmar que é imprescindível a composição de um biodireito que promova e defenda a igualdade e o respeito recíproco dos sujeitos de qualquer relação interpessoal na qual está implicada a vida humana.

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Sobre o autor
Milton Schmitt Coelho

bacharel em Direito em Santa Cruz do Sul (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO, Milton Schmitt. Eutanásia.: Uma análise a partir de princípios éticos e constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. -639, 1 out. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2412. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul-UNISC, para a obtenção do título de Bacharel em Direito, sob a orientação do Prof. Ms. Hugo Thamir Rodrigues.

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