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O objeto científico como construção: apontamentos sobre ciência e conhecimento científico

19/05/2013 às 07:33
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Apontamento sobre o conhecimento científico, focando na diferença entre o objeto científico e o objeto real. Traz questões básicas sobre epistemologia e filosofia da ciência e teorias de alguns dos mais renomados filósofos da ciência: Gaston Bachelard e Thomas Kuhn.

INTRODUÇÃO

No mundo contemporâneo, globalizado e industrializado, a ciência é a principal legitimadora dos discursos empregados, seja por autoridades ou por pessoas comuns. Políticas públicas, medidas político-econômicas, tratamentos de saúde, e uma série de acontecimentos da nossa vida cotidiana trazem consigo o aval da ciência; o que não for cientificamente comprovado simplesmente não possui crédito. Nem sempre foi assim. Até meados do século XVIII o principal discurso legitimador era o da Igreja com sua doutrina da fé em Deus como superior à razão. Com o desenvolvimento da ciência e do método científico ao longo dos séculos, que culminou na Revolução Industrial, iniciou-se no século XVIII o processo de secularização, quando a ciência definitivamente destrona a religião do seu posto de guia da conduta humana. A fé em Deus foi substituída pela fé na razão; o iluminismo se difundiu pela Europa, bem como as revoluções industrial e política. (ARANHA; MARTINS, 1993).

Neste artigo procuro realizar um breve apontamento sobre a ciência e o conhecimento científico focando minha análise na construção do objeto científico demarcando sua diferença com o objeto real. O trabalho tem início com algumas questões básicas sobre epistemologia e filosofia da ciência e, a seguir, introduzo mais detalhadamente teorias de alguns dos mais renomados filósofos da ciência: Gaston Bachelard e Thomas Kuhn, finalizando com as considerações finais.


EPISTEMOLOGIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA

A epistemologia é um ramo da filosofia que possui como objeto de investigação o conhecimento e a sua possibilidade; define basicamente conhecimento como crença verdadeira justificada. Neste sentido, também salienta o caráter temporal e histórico do conhecimento, pois o que é verdadeiro e justificado num momento pode não ser mais num momento posterior (GRAYLING, 2003). Paralelo ao debate sobre o que é conhecimento existe a questão de como ele é adquirido. Duas grandes escolas do pensamento filosófico pretendem dar esta resposta: o racionalismo e o empirismo. Para os racionalistas o conhecimento surge pela intuição e por inferências racionais; a razão é a fonte do conhecimento e a dedução é o mecanismo lógico de formulação e enunciação do conhecimento. Possuem como paradigma a matemática e a lógica (GRAYLING, 2003). Para os empiristas o paradigma do conhecimento é a ciência natural. Observação e experiência são primordiais para a produção do conhecimento e a ferramenta inferencial é a indução, que parte de observações particulares à elaboração de leis universais (GRAYLING, 2003).

A filosofia da ciência é a disciplina filosófica que também se preocupa com o conhecimento, só que especificamente o conhecimento científico. O que é a ciência? Como ela se desenvolve? No que podemos nos basear para que possamos afirmar que uma determinada descoberta científica possui caráter de verdade? A filosofia da ciência se divide em duas partes: a epistemologia da ciência, que lida com questões concernentes ao problema da justificação do conhecimento científico; e a metafísica da ciência, que se preocupa com a natureza do universo descrito pela ciência (PAPINEAU, 2003). A filosofia da ciência ganhou consistência com as obras do Círculo de Viena, entre as duas grandes guerras mundiais, quando foi “estendida ao modo moderno, como disciplina autônoma que visa à explicitação consciente e sistemática do método e das condições de validade das afirmações assumidas pelos cientistas.” (REALE; ANTISERI, 2007, pg. 995). O Círculo de Viena elabora um conjunto de teoremas que têm em vista estabelecer os critérios de justificação do conhecimento científico, fundando o neopositivismo e tendo como um dos objetivos a eliminação da metafísica. O conhecimento científico é produto da experiência; resulta da explicação de um estado de fato que, se existe, é verdadeiro e, se não existe, é falso (REALE; ANTISERI, 2007).

Resumindo, a principal tarefa da filosofia da ciência consiste em conferir a validade do conhecimento científico, tarefa que pode ser bem verificada no questionamento que faz Oliva (2010, pg. 23): “O que diversas disciplinas têm em comum, em termos de práticas e procedimentos, que permite classificá-las como ciência por oposição a outras formas de saber?”. Este autor expõe alguns dos critérios que historicamente foram utilizados para atribuir o status de ciência para as formas de conhecimento que pretendem adquirir este status. Cita a visão tradicional positivista, fundada na experiência que verifica e confirma o conhecimento; existe também o critério da verificabilidade, ou seja, um conhecimento é científico quando permite ser posto à prova; outro critério proposto para que um dado conhecimento possa ser considerado científico é o critério da falsificação estabelecido por Popper; nesta visão, uma teoria é científica quando pode ser falsificada (OLIVA, 2010).


BACHELARD E O NOVO ESPÍRITO CIENTÍFICO

A partir deste tópico começo a tratar especificamente do principal objetivo deste texto, que é abordar o objeto científico como uma construção. Neste sentido, a própria realidade científica se diferencia do real concreto, pois traz em si as categorias do pensamento racional, moldando esta realidade de forma que possa ser compreendida pela cientista. Iniciamos com o filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962), que cumpriu o papel de restabelecer a importância da metafísica na filosofia da ciência. Afirmava que a ciência cria uma filosofia, portando, uma metafísica, uma forma de conceber o mundo. Quanto à ciência, tinha a idéia de que esta era razão confirmada, de onde podemos conferir a importância que Bachelard confere a reflexão filosófica na elaboração do conhecimento científico. Para o filósofo francês existem duas correntes metafísicas principais pertinentes ao conhecimento científico: o racionalismo e o realismo. Para a primeira, o conhecimento científico clama por explicar a realidade; para a segunda corrente, o conhecimento científico é uma projeção da razão sobre a realidade, moldando-a e dando ao real científico um caráter de construção que surge na interação entre a o cientista e a realidade concreta. Nas palavras do autor (BACHELARD, 1978, pg. 95):

É, portanto, na encruzilhada dos caminhos que o epistemólogo deve colocar-se: entre o realismo e o racionalismo. É aí que ele pode apreender o novo dinamismo dessas filosofias contrárias, o duplo movimento pelo qual a ciência simplifica o real e complica a razão. Fica então mais curto o caminho que vai da realidade explicada ao pensamento aplicado. É nesse curto trajeto que se deve desenvolver toda a pedagogia da prova, pedagogia que é, como indicaremos em nosso último capítulo, a única psicologia possível do espírito científico.

Bachelard fundamenta sua teoria nas grandes mudanças paradigmáticas que ocorreram na ciência, desde a descoberta da geometria não-euclidiana ao destronamento da cosmovisão newtoniana substituída pelo universo relativista de Newton. Estas mudanças atestam que a própria realidade se transforma conforme o refinamento da razão e da metodologia científica que, segundo Bachelard, possui papel ativo na construção do conhecimento (BACHELARD, 1978).


THOMAS KUHN E A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS

Thomas Kuhn (19- 19) foi um filósofo da ciência e cientista inglês que identificou nas mudanças teóricas que ocorreram na ciência um fato comum, estabelecendo, inclusive, leis que estariam implícitas nestes processos do desenvolvimento da ciência. Consolidou o termo paradigma como sendo “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.” (KUHN, 2007, pg. 13). Este filósofo da ciência também afirmou que a ciência evolui por meio das revoluções paradigmáticas, quando um determinado paradigma é substituído por outro mais refinado, que dá conta de explicar fenômenos da realidade de forma mais convincente do que seu antigo modelo teórico. Neste processo não estaria apenas envolvido o papel da razão, mas também fatores subjetivos como a mudança de geração de cientistas e a história da ciência. Durante o período de vigência de um determinado paradigma, ocorre o que Kuhn chama de ciência normal, um período o qual a ciência evolui por meio de acúmulos ao conhecimento e solução de problemas. Quando os fatos da realidade começam a oferecer problemas que não são respondidos pelo paradigma dominante, surge um período de crise o qual possibilita o surgimento de novas teorias que expliquem os fatos problemáticos. Neste período de crise surgem paradigmas que se candidatam a solucionar o problema, bem como os defensores do antigo paradigma, num verdadeiro processo de luta, realizam atualizações da antiga teoria para que esta possa dar conta das lacunas encontradas em seu corpo explicativo (KUHN, 2007). Desta maneira, podemos conferir mais uma abordagem que relega ao objeto do conhecimento científico um papel de objeto a ser construído, desmitificando a concepção da realidade como objeto passível de ser descrito e explicado por meio da ciência; conforme muda o paradigma, muda também a própria essência do mundo real.

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UMA BREVE DIGRESSÃO: A QUESTÃ DO MÉTODO

Para além das relações entre sujeito e objeto presentes no conhecimento científico, existe também uma discussão sobre o papel do método na construção do conhecimento científico. Este seria o conjunto de normas que possibilitariam o a mediação entre a teoria e a realidade concreta. Nos primórdios cartesianos de sua consolidação, o método representa uma técnica, uma receita que, se seguida, levaria o pesquisador a um resultado positivo na elaboração do conhecimento científico. A partir da contribuição da filosofia da ciência, o método passou a representar também papel ativo na construção do conhecimento; este passou a estar filiado a um determinado paradigma, uma visão de mundo e de realidade. A escolha de um método, desta maneira, deve estar vinculada a um corpo teórico que cumpre o papel de construir o conhecimento científico de modo que este referencial possa de maneira fidedigna se relacionar com a realidade concreta em vista de sua explicação (CARDOSO, 20XX). Vejamos uma citação que clarifica esta questão:

Aquela teoria e aquele objeto real, ambos específicos de um momento determinado do desenvolvimento cientifico interagem, formando a experiência, que adere a suas especificidades, orientada pela teoria. O método, pois, se exerce no estabelecimento da consequência teórica desta relação, orientada teoricamente, entre a teoria base e o real a que se refere e para o qual pretende apresentar uma explicação válida. Como resultado deste exercício metódico fica construído o objeto do conhecimento, objeto científico. (CARDOSO, 20XX, pg. 10).


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Relatei ao longo deste trabalho a concepção que pode ser chamada de realista da ciência que defende o papel ativo que possui a razão na construção do conhecimento bem como na construção da própria realidade científica. Este debate está longe de estar concluído dentro da filosofia da ciência. Ainda são muito fortes os defensores do papel da indução e da experiência na construção do conhecimento em detrimento da dedução e do vínculo do desenvolvimento científico a sua história. Encontramos uma forte defesa da visão empírica da ciência principalmente entre os cientistas naturais, enquanto a visão realista da ciência está mais aberta a contribuição das ciências sociais e humanas na descrição do desenvolvimento científico. Diferenças à parte, existe um ponto comum: antes de qualquer paradigma ou visão do desenvolvimento da ciência, o debate, a discussão, a crítica devem sempre estar presentes para a saudável evolução do conhecimento científico.


REFERÊNCIAS

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Editora Moderna Ltda.: 1993.

BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. In: Gaston Bachelard (col. Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1978, PP.89-179.

CARDOSO, Miriam Limoeiro. O mito do método. Trabalho apresentado no Seminário de Metodologia Estatística. Disponível em HTTP://br.geocities.com/marilis_almeida/mito.doc. Acesso em

GRAYLING, A. C. Epistemology. In: BUNNIN, Nicholas e TSUI-JAMES, E. P. (orgs). The Blackwell companion to philosophy. USA: Blackwell Publishers Ltd, 2003

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.

PAPINEAU, David. Philosophy of Science. In: BUNNIN, Nicholas e TSUI-JAMES, E. P. (orgs). The Blackwell companion to philosophy. USA: Blackwell Publishers Ltd, 2003

OLIVA, Alberto. Filosofia da Ciência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.

REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. Capítulo XXXVI: A filosofia da ciência entre as duas guerras. O neopositivismo, o operacionalismo e a epistemologia de Gaston Bachelard. In: História da Filosofia Vol. 3. São Paulo: Paulus, 2007.

Sobre o autor
Leone de Araújo Rocha

Graduado em Ciências Sociais, Bacharelado e Licenciatura, pela Universidade Federal do Amapá (2010). Especialista em Ciência Política pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa e Extensão (2012). Mestrado Profissional em Estudos de Fronteira também pela Universidade Federal do Amapá (2020). Foi professor efetivo de Sociologia do Governo do Estado do Amapá (2013-2019). Atualmente é Antropólogo do INCRA-AP onde atua no serviço de regularização fundiária quilombola. Áreas de interesse: Antropologia do Direito, Estudos de Fronteira, Comunidades Quilombolas e Antropologia Econômica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Leone Araújo. O objeto científico como construção: apontamentos sobre ciência e conhecimento científico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3609, 19 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24410. Acesso em: 22 dez. 2024.

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