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Propriedade:

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01/11/2001 às 01:00
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6 – A Função Social e as Limitações ao Direito de Propriedade

A função social da propriedade não pode ser confundida com os sistemas de limitação de propriedade, ou seja, a afetação de seus caracteres tradicionais (direito absoluto, exclusivo e perpétuo). Dizem sim respeito ao exercício do direito, ao proprietário, e, não à estrutura interna do direito à propriedade, estando sim subordinados à função social da propriedade, como bem leciona José Afonso da Silva (1991: 294):

"(...) a função social da propriedade se modifica com as mudanças na relação de produção. E toda vez que isso ocorrera, houvera transformação na estrutura interna do conceito de propriedade, surgindo nova concepção sobre ela, de tal sorte que, ao estabelecer expressamente que a propriedade atenderá a sua função, mas especialmente quando o reputou princípio da ordem econômica, ou seja: como um princípio informador da constituição econômica brasileira com o fim de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170, II e III), a Constituição não estava simplesmente preordenando fundamentos às limitações, obrigações e ônus relativamente à propriedade privada, princípio também da ordem econômica, e, portanto, sujeita, só por si, ao cumprimento daquele fim. Pois, limitações, obrigações e ônus são externos ao direito de propriedade, vinculando simplesmente a atividade do proprietário, interferindo tão-só com o exercício do direito, os quais se explicam pela simples atuação do poder de polícia"


7 - A Função Social da Propriedade Urbana

O art. 182, §2º, da Constituição Federal de 1988 dispõe que:

"A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor".

O descumprimento da função social da propriedade urbana sujeita o infrator às sanções dispostas no §4º do citado artigo.

Porém, o Plano Diretor só é obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes (art. 182, §1º, CF). Resta registar que as cidades que não possuem um plano diretor precisam estabelecer as limitações ao direito de propriedade, visando o atendimento da função social da propriedade, sempre através de lei, atendidos, por óbvio, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, sob a luz da prevalência do interesse público sobre o particular.


8 - A Função Social da Propriedade Rural

É do art. 186 da Constituição Federal de 1988:

"A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigências estabelecidas em lei, os seguintes requisitos:

I – aproveitamento racional e adequado;

II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores".

O exercício do direito de propriedade está condicionado ao atendimento da função social da propriedade rural, sujeitando seu infrator à sanção expropriatória, conforme faculdade a ser exercida pelo Poder Público.

A desapropriação por desatendimento da função social da propriedade rural difere da expropriação, tão somente, para o atendimento do interesse público, pois esta não é uma penalidade.

Assente o direito subjetivo de propriedade, tem-se que quando necessário o Poder Público pode efetivar a desapropriação, e não sendo esta uma sanção, a indenização deve ser prévia e em dinheiro ( art. 5º, XXIV, CF/88).

Ao reverso, "compete a União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei" (art. 184, CF/88).


9 - Função Ecológica da Propriedade

A Carta Federal assim dispõe em seu art. 225:

"Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

§4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro das condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais".

Os preceitos inscritos no art. 225 da Carta Política traduzem a consagração constitucional, em nosso sistema de direito positivo, de uma das mais expressivas prerrogativas asseguradas às formações sociais contemporâneas. Essa prerrogativa consiste no reconhecimento de que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Trata-se, consoante já proclamou o Supremo Tribunal Federal (RE 134.297-SP, Rel. Min. Celso de Mello), de um típico direito de terceira geração que assiste, de modo subjetivamente indeterminado, a todo o gênero humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação que incumbe ao Estado e à própria coletividade – de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das presentes e futuras gerações, evitando-se, desse modo, que irrompam, no seio da comunhão social, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção da integridade desse bem essencial de uso comum de todos quantos compõem o grupo social (Celso Lafer, 1988: 131/132).

Ressalte-se a precisa lição ministrada por Paulo Bonavides (1993: 481), "verbis":

"Com efeito, um novo pólo jurídico de alforria do homem se acrescenta historicamente aos da liberdade e da igualdade. Dotados de altíssimo teor de humanidade e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos direitos de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Os publicistas e juristas já os enumeram com familiaridade, assinalando-lhes o caráter fascinante de coroamento de uma evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas relevantes do desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade".

Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas - acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade, consoante proclama autorizado magistério doutrinário (Celso Lafer, 1995: 239).

A preocupação com a preservação do meio ambiente – que hoje transcende o plano das presentes gerações, para também atuar em favor de gerações futuras – tem constituído objeto de regulações normativas e de proclamações jurídicas que, ultrapassando a província meramente doméstica do direito nacional de cada estado soberano, projetam-se no plano das declarações internacionais que refletem, em sua expressão concreta, o compromisso das Nações com o indeclinável respeito a esse direito fundamental que assiste a toda a Humanidade.

A questão do meio ambiente, hoje, especialmente em função da Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente (1972) e das conclusões da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro/92), passou a compor um dos tópicos mais expressivos da nova agenda internacional (Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, "O Direito Ambiental Internacional", in Revista Forense 317/127), particularmente no ponto em que se reconheceu ao Homem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao gozo de condições de vida adequada, em ambiente que lhe permita desenvolver todas as suas potencialidades em clima de dignidade e de bem-estar.

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Dentro desse contexto, emerge, com nitidez, a idéia de que o meio ambiente constitui patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido pelos organismos sociais e pelas instituições estatais, qualificando-se como encargo que se impõe – sempre em benefício das presentes e das futuras gerações – tanto ao Poder Público quanto à coletividade em si mesma considerada (Maria Zanella Di Pietro, "Polícia do Meio Ambiente", in Revista Forense 317/179,181; Luís Roberto Barroso, "A Proteção do Meio Ambiente na Constituição Brasileira", in Revista Forense 317/161, 167-168).

Na realidade, o direito à integridade do meio ambiente constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social.

O reconhecimento desse direito de titularidade coletiva, como é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, constitui uma realidade a que não mais se mostram alheios ou insensíveis, como precedentemente enfatizado, os ordenamentos positivos consagrados pelos sistemas jurídicos nacionais e as formulações normativas proclamadas no plano internacional (José Francisco Rezek, 1989: 223/224).

Dentro desse contexto, a proteção da flora e da fauna com a conseqüente vedação de práticas que coloquem em risco a sua função ecológica projetam-se como formas instrumentais destinadas a conferir efetividade ao direito em questão.

O dever que constitucionalmente incumbe ao Poder Público de fazer respeitar a integridade do patrimônio ambiental não o impede, contudo, quando necessária a intervenção estatal na esfera dominial privada, de promover, na forma do ordenamento positivo, a desapropriação de imóveis rurais para fins de reforma agrária, especialmente porque um dos instrumentos de realização da função social da propriedade rural – consoante expressamente proclamado pela Lei nº 8.629/93 (art. 9º, II e seu §3º) e enfatizado pelo art. 186, II, da própria Carta Política – consiste, precisamente, na submissão do domínio à necessidade de o seu titular utilizar adequadamente os recursos naturais disponíveis e de fazer preservar o equilíbrio do meio ambiente, sob pena de, em descumprindo esses encargos, sofrer a desapropriação-sanção a que se refere o art. 184 da Lei Fundamental.

A defesa da integridade do meio ambiente, quando venha esta a constituir objeto de atividade predatória, pode justificar reação estatal veiculadora de medidas – como a desapropriação-sanção – que atinjam o próprio direito de propriedade, pois o imóvel rural que não se ajusta, em seu processo de exploração econômica, aos fins elencados no art. 185 da Constituição claramente descumpre o princípio da função social inerente à propriedade, legitimando, desse modo, nos termos do art. 184 c/c art. 186, II, da Carta Política, a edição de decreto presidencial consubstanciador de declaração expropriatória para fins de reforma agrária.

Em conclusão: a propriedade em suas diversas manifestações é um direito subjetivo que tem seu exercício condicionado ao atendimento de sua função social, estabelecida conforme o seu objeto, na forma prevista em lei, esta devendo prever a respectiva sanção, no caso de descumprimento, concedendo, por conseqüência a faculdade expropriatória ao Poder Público.


BIBLIOGRAFIA

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Sobre o autor
José Barroso Filho

magistrado da Justiça Militar da União, professor universitário, doutorando em Administração Pública pela Universidad Complutense de Madrid (Espanha), mestre em Direito pela UFBA, especialista em Direito Público pela UNIFACS, pós-graduado pela Escola Judicial Edésio Fernandes/MG e pela Escola de Formação de Magistrados/BA, conferencista da Escola de Administração do Exército (ESAEX), diretor científico do Centro de Cultura Jurídica da Bahia (CCJB), membro do Núcleo de Ação Social (CORDIS), ex-juiz de Direito em Minas Gerais e Pernambuco, ex-promotor de Justiça na Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROSO FILHO, José. Propriedade:: A quem serves?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2453. Acesso em: 20 abr. 2024.

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