ENFOQUE DOUTRINÁRIO CONSTITUCIONAL
A preocupação com o meio ambiente remonta à antigüidade em vários ordenamentos jurídicos.
É sabido que já nas Ordenações Filipinas era previsto no Livro Quinto, Título LXXV, pena altamente severa àquele que cortasse árvore ou fruto, penas estas que vulnera o infrator ao açoite e ao degredo para a África pelo lapso de quatro anos, em caso de dano mínimo, ou, em sendo considerado de maior gravidade, persistiria o degredo para todo o sempre.
No Brasil, até a promulgação da Constituição de 1988, o tema da proteção do meio ambiente nunca havia sido motivo de tutela constitucional, tendo a atual Carta Maior constituído um marco histórico, na medida em que dedicou um capítulo para disciplinar o assunto.
Tal elevação ao status constitucional veio de encontro a uma tendência contemporânea com os interesses difusos, e, em especial com o meio ambiente, que deve ser saudável, equilibrado e íntegro.
José Afonso da Silva ao discorrer sobre a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica diz que "Cabe invocar, aqui, a tal propósito, o disposto no art. 173, § 5º, que prevê a possibilidade de responsabilização das pessoas jurídica, independente da responsabilização de seus dirigentes, sujeitando-as às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica, que tem como um de seus princípios a defesa do meio ambiente."
Os professores Celso Bastos e Ives Gandra Martins dizem que "a atual Constituição rompeu com um dos princípios "que vigorava plenamente no nosso sistema jurídico, o de que a pessoa jurídica, a sociedade, enfim, não é possível de responsabilização plena."
Preciso é sublinhar que a Constituição Federal também possibilita a responsabilização penal da pessoa jurídica em infrações cometidas contra o meio ambiente; contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.
Sem previsão específica no Código Penal Brasileiro, a sujeição criminal está na legislação extravagante, instando aqui também ser consignada a Lei de Engenharia Genética (Lei 8.974/95).
SINOPSE ALICERÇANTE DO PRINCÍPIO "SOCIETAS DELINQUERE NON POTEST"
-No sistema jurídico positivo brasileiro a responsabilidade penal é atribuída, exclusivamente às pessoas físicas, posto que a imputabilidade jurídico-penal é uma qualidade inerente aos seres humanos, cedendo, pois, espaço para o problema da incapacidade de ação da pessoa jurídica;
-O art. 26 do Código Penal trata de considerações da pessoa, que possui a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento;
-Admitir a responsabilização penal da pessoa jurídica arranha o princípio da personalidade da pena;
-É impossível admitir-se, ainda que com grande dose de benevolência, que a pessoa jurídica seja dotada de vontade e de consciência "pessoais";
-O afastamento da responsabilidade pessoal afronta o art. 5º, inciso XLV, da Constituição Federal, bem como o da legalidade dos delitos e das penas estampados no inciso XXXIX, do mesmo artigo da CF;
-As normas ditadas pela Lei Maior sobre a responsabilidade da pessoa jurídica são de caráter administrativo e não penal, posto que não se compatibilizam com a dogmática penal, em especial quanto à culpabilidade, aos fins da pena e ao direito penal mínimo, isto é, ao direito penal da ultima ratio, em especial quanto ao seu caráter fragmentário e subsidiário;
-Os bens jurídicos que se procuram tutelar já se encontram tutelados civil e administrativamente no ordenamento jurídico, com sanções em ambas as esferas, mais eficazes e de aplicabilidade menos burocráticas;
-A co-autoria ou participação, no campo penal, entre pessoas jurídicas ou entre a pessoa jurídica e a física é outro tema de difícil elucidação no aspecto prático, em face dos requisitos do concurso de agentes;
-O legislador penal de 1998 enunciou a responsabilidade penal da pessoa jurídica de forma extremamente simplista, cominando-lhes penas, sem, contudo, instituí-las. Faltam instrumentos hábeis e indispensáveis para a efetiva aplicabilidade;
-Não se deve recorrer ao Direito Penal sancionatório se existir a possibilidade de garantir uma eficiente proteção através de outros meios, de tal sorte que responsabilidade penal da pessoa jurídica fere o Direito Penal mínimo;
-Para o Direito Penal, para qualquer uma das teorias que se adote (clássica/causalista, finalista e social), deve a conduta corresponder a um comportamento humano voluntário, o que reflete o pensamento do clássico-causalista Nelson Hungria, do finalista Damásio de Jesus ou do socialista Miguel Reale Júnior;
-O concurso de pessoas exige a consciência entre os participantes de que estão cooperando para uma e comum ação, conforme preleciona Mirabete;
-A finalidade da pena é desvirtuada quando é aplicada para a pessoa jurídica, já que é sabido que a pena visa a intimidação do infrator e das demais pessoas a inibir a prática de condutas proibidas (Hungria, Fragoso, Damásio, Mirabete, etc.).
Na literatura estrangeira são contrários à possibilidade de ter a pessoa jurídica responsabilidade penal, entre outros, pode ser citado o jurista espanhol Barbero Santos. No território nacional o tema é defendido pelos juristas Renê Ariel Dotti e Cezar Bitencourt, Oswaldo Henrique Duck Marques, Luiz Vicente Cernecchiaro entre outros.
SINOPSE ALICERÇANTE DO PRINCÍPIO "SOCIETAS DELINQUERE POTEST"
-Em todo o mundo as legislações se preocupam com o fato de serem as pessoas jurídicas uma alavanca que facilita as atividades criminosas que devem, por isso, serem responsabilizadas não só civil e administrativamente, como também na esfera penal;
A pessoa jurídica é, no mais das vezes, mais nociva do que a grande esmagadora maioria das pessoas físicas dado seu poder econômico, poder este que facilita a cobertura de prática de delitos que, em não sendo a corporação responsabilizada, vulnera os hipossuficientes dirigentes às sanções individuais;
A resistência dos partidários da tese contrária reside nos clássicos conceitos de ação, culpabilidade e capacidade de pena, que se mostra ultrapassada para os dias atuais, na medida em que está centrada na idéia retributiva da pena, assim traduzida como sofrimento e tormento;
-A doutrina inglesa, holandesa e americana já avançaram a passos largos, passando a enxergar que se a pessoa jurídica é capaz de contratar, tem também capacidade para, criminosamente, descumprir o contratado;
-No Direito Penal Econômico há muito já se prevê crimes em que somente as pessoas jurídicas são responsabilizadas, exclusivamente;
-A argumentação de que a pessoa jurídica não pode agir é espancada pelo fato de que o ordenamento penal brasileiro prevê o concurso de agentes que é regido pelo princípio da comunicabilidade das circunstâncias, em que é estabelecida a solidariedade penal entre o agente pessoa física e a empresa em proveito da qual o crime foi praticado;
-A doutrina francesa está assim consolidada: "A pessoa jurídica coletiva é perfeitamente capaz de vontade; ela postula mesmo a vontade, porquanto nasce e vive do encontro das vontades individuais dos seus membros. A vontade coletiva que a anima não é um mito, caracteriza-se em cada etapa importante de sua vida, pela reunião, pela deliberação e pelo voto da assembléia geral dos seus membros ou dos seus Conselhos de Administração, de Gerência ou de Direção. Essa vontade coletiva é capaz de cometer crimes tanto quanto a vontade individual." (Roger Merle et André Vitu, Traité de droit criminel - Problèmes généraux de la science criminelle. Droit pénal général, Cujas, Paris, 6ª ed., 1998).
-É de José Marcello de Araujo Junior que se extrai o seguinte pensamento acerca da capacidade de culpa da pessoa jurídica:
"No agir de uma empresa que polui um rio ou obtém, ilicitamente, uma subvenção, reconhece-se, sem qualquer dificuldade, a existência de uma conduta que não está privada de um caráter ético ou moral. Desse atuar resulta uma responsabilidade que não é igual à chamada responsabilidade cumulativa, que nasce da soma das responsabilidades individuais, nem está fundada numa responsabilidade por fato de outrem. Trata-se de uma responsabilidade originária da empresa, de fundamento social, pois a empresa, do pondo de vista ético ou moral, possui uma responsabilidade por autuar dentro da sociedade da qual extrai o seu ganho e a sua existência."
-A visualização da culpabilidade como um conceito normativo faz desaparecer o obstáculo que poderia impedir a responsabilização penal da pessoa jurídica;
-A tese sustentada de que a pessoa jurídica não é capaz de pena é facilmente debatida ante o fato de que não se mostra razoável, em pleno terceiro milênio, manter-se a mesma concepção teórico-penal. Não tem mais o Direito Penal a finalidade de fazer justiça, compensando-se a culpa com a pena. "O Direito Penal de uma Estado Democrático, laico, não se vincula a finalidades teológicas ou metafísicas, mas sim destina-se a fazer funcionar a sociedade." Sob este prisma, pouco importa que o violador da norma seja uma pessoa física ou jurídica;
-O sistema penal vigente, por intermédio das penas alternativas, possibilita a punição da pessoa jurídica, a exemplo das penas alternativas, como as de multa.
Na literatura estrangeira é defensor da possibilidade de ter a pessoa jurídica responsabilidade penal, entre outros, o professor alemão Klaus Tiedemann. A doutrina nacional tem como favoráveis os professores Salomão Shecaria, João Marcello de Araújo Júnior, Paulo Affonso Leme Machado; Antônio Herman V. Benjamin; Vladimir e Gilbrto Passos de Freitas e Damásio Evangelista de Jesus (que anunciou seu posicionamento no 3º Congresso Brasileiro de Direito Ambienta ocorrido em 03.06.98).
QUESTIONAMENTOS QUE O TEMA DESENCAIA
1. Por Luiz Regis Prado: O rompimento do clássico princípio do societas delinquere non potest, com a criação da responsabilidade penal da pessoa jurídica para os crimes ambientais seria a resposta correta no contexto da própria lei e do ordenamento jurídico brasileiro?
2. Por José Carlos de Oliveira Robaldo: Em sendo o infrator da lei penal pessoa jurídica de direito público, a sociedade pagaria duplamente pela infração?
3. Por José Carlos de Oliveira Robaldo: A aquisição ou transporte de madeira constitui, em tese, o delito tipificado no artigo 46 da Lei 9.605/98, cuja pena é de detenção mais multa. Questiona-se: como se aplicar a sanção? Aplicaria a detenção, e logo a substituiria pela restritiva de direitos ou multa?
4. Em se aplicando sanção às corporações, como se exigirá que um ente fictício sinta-se intimidado com o caráter sancionatório?
5. Alberto Silva Franco: A lei do meio ambiente trata-se de "verdadeiro besteiro jurídico". Mas será que a maneira diferente de definir crimes representa retrocesso que viola as garantias fundamentais do indivíduo?
6.Luis Paulo Sirvinskas: As penas contidas nos tipos penais da parte especial da Lei Ambiental são as privativas de liberdade. Não constam nos tipos penais as penas aplicáveis às pessoas jurídicas, mas só para as pessoas físicas. "Assim, como se aplicar as penas contidas na parte geral da lei às pessoas jurídicas? Como fazer a integração da parte geral à parte especial? Como fazer a dosimetria da pena?
CONCLUSÃO:
A idéia de imputar sanção não só aos autores materias da ação penalmente tutelada pelo Estado como também à pessoa jurídica significa um avanço que vai de encontro às mutações contemporâneas exigidas por uma série de fatores, que modernamente vem sendo traduzido como globalização.
Por mais que hajam divergências sobre a manutenção no sistema jurídico do princípio societas delinquere non potest, é fato que praticamente todos os países do mundo, com exceção da Espanha, aceitam como necessária a criação de medidas sancionatórias para as pessoas jurídicas. Se dentro da órbita penal ou administrativa, esta é uma discussão paralela que não afasta a necessidade de punição para as corporações.
A efervescência que o tema da responsabilização penal da pessoa jurídica provoca não é de tudo infundada.
De fato, existem dificuldades de dogmática penal, prestigiadas e de vulto, é bom que se frise, que impedem os contrários à tese da adoção da responsabilidade da corporação de se filiarem ao princípio da societas delinquere potest.
Para esta corrente, os dogmas tradicionais da escola penal estão extremamente arraigados, residindo suas inquietações à ação, que está sempre ligada a um comportamento humano pela exegese de nosso vigente diploma penal.
Nesta esteira, bem reflete o pensamento de Cezar Roberto Bitencourt, que defende que não pode o Direito Penal, sob nenhum pretexto, abrir mão de conquistas históricas que se consubstanciam em garantias destacadas como fundamentais.
Entretanto, como bem destaca ninguém menos do que Sérgio Salomão Shecaria, monografista no assunto, a responsabilidade penal da pessoa jurídica é fato. Está ela consubstanciada na Constituição da República, o que, por si só, impõem o tracejar de outras reflexões dogmáticas.
Não é o caso de se desprezar o já consagrado tripé penal: intervenção mínima, subsidiariedade e fragmentariedade, e sim, repensar o sistema penal tradicional diante dos novos ditames da Carta Maior.
Também não se deseja, e nem seria razoável, sufocar a dogmática penal que a reserva como ultima ratio.
O posicionamento simplesmente contrário ao princípio da societas delinquere non potest, incondicionado, não parece, data venia, apropriado para o momento em que se vive num mundo globalizado, devendo ser destacado, no entanto, s.m.j., o posicionamento daqueles que são contrários à responsabilização por conta de estar o sistema jurídico-penal reclamando profundas mudanças com o intuito de ser adaptado e instrumentalizado para a efetiva responsabilização nos moldes instituídos pela Lei Maior.
A professora Maria Celeste Cordeiro Leite Santos propõe uma sedutora substituição do substrato antropológico do direito penal em que se alterariam seus pressupostos fundantes para melhor se possibilitar a aplicação de sanção à pessoa jurídica: "implica na ampliação de atuação do Direito Penal, ou na sua bifurcação em dois braços perfeitamente diferenciados: 1) aquele relativo às pessoas individuais, cimentado sobre os dogmas conhecidos de um lado; 2) o do Direito Penal das corporações, construído sobre uma realidade distinta, regido por princípios distintos, que encerram o gérmem de uma possível solução. Seus desígnios são em parte alheios ao Direito Penal que conhecemos."
Schecaria, a contrario sensu, diz não haver necessidade de previsão no Código Penal de tipos específicos para a pessoa jurídica, eis que assim discorre: "A introdução da referida responsabilidade far-se-á em lei extravagante, apenas para os casos específicos previstos na Constituição, o que dispensa qualquer modificação de nosso Código Penal".
É a lei do meio ambiente uma realidade e não um projeto de lei em fase de discussão. O legislador ordinário nada mais fez do que concretizar o imperativo constitucional.
A título de finalização, traduz-se em grande valia para as reflexões relativas ao tema o assinalado por E. Bacigalupo Zapater, em sua obra La posición de garante en el ejercício de funciones de vigilância en el ámbito empresarial, citado em artigo de autoria de William Terra de Oliveira: "Na verdade, se lançarmos um rápido olhar sobre as linhas seguidas pelo sistema penal tradicional, percebemos que a dogmática clássica não demonstrou, até um passado relativamente recente, uma preocupação profunda sobre a problemática da responsabilidade penal individual no âmbito empresarial ou coletivo."
Conclui-se, por todo o exposto, que se tem dentro da realidade jurídico-penal que está instalada com a introdução de citados dispositivos legal, que a inércia legislativa mostra-se contrária ao molde criminal que está firmando-se neste terceiro milênio, sendo, pois, imperiosa a adequação da legislação penal com o fim de poder de dar ampla e irrestrita aplicabilidade à responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Rui Barbosa, através de seu célebre pensamento eternizou que: "Não há, numa Constituição, cláusulas a que se deve atribuir meramente o valor moral, de conselhos avisos ou lições. Todas têm força imperativa de regras, ditadas pela soberania nacional ou popular aos seus órgãos. Cabe, pois, ao legislador, disciplinar a matéria."
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