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A democracia brasileira enquanto estado de exceção

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20/06/2013 às 10:33
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Analisam-se, sob o ponto de vista da filosofia política e do Direito Constitucional, temas políticos atuais da nossa democracia, como as PECs do MP e do Judiciário, os protestos populares e as medidas provisórias.

Resumo: O objetivo do artigo é dialogar com as teorias políticas de Aristóteles, Thomas Hobbes e Giorgio Agamben sobre o nascimento e morfologia do Estado, com vistas a entender as diversas formas de governo e as suas degenerações, especialmente que a democracia comporta diversas variações, entre elas as formas impuras da demagogia e da tirania. Nas espécies degeneradas de democracia é que se verifica o fenômeno do estado de exceção, atualmente marcado pela superposição fática do Executivo, que se utiliza de mecanismos de manipulação da ordem jurídica para a imposição de seu poder, cujas principais ferramentas são a utilização de atos com efeitos legislativos fora das estritas hipóteses constitucionais e a manipulação da opinião pública.

Palavras-chave: Teorias políticas – democracia brasileira atual – estado de exceção


1. Introdução

O trabalho procederá a uma revisão crítica de várias vertentes políticas para identificar quais foram às adotadas pelos Estados contemporâneos, ditos democráticos, e verificar se efetivamente o projeto democrático resultou na implantação fática pelos governos dos países ocidentais, principalmente tendo em foco a situação brasileira inaugurada com a redemocratização marcada pela Constituição de 1988.

A opção pelas doutrinas políticas de Aristóteles (384 a.C.–322 a.C.), Thomas Hobbes (1588-1679) e Giorgio Agamben (1942-) justifica-se pela importância que cada um dos autores teve em sua determinada época, sendo o primeiro o criador da teoria política clássica, o segundo seu aprimorador em relação ao Estado moderno e defensor da monarquia absolutista, e o último um crítico da forma como o Estado transformou-se na contemporaneidade, intitulando-o de estado de exceção, forma que enxergamos na atual democracia brasileira, a qual também recolhe mecanismos de denominação nas outras duas teorias políticas.


2. A doutrina de Aristóteles

Foi Platão o primeiro filósofo a estudar o Estado e as formas de governo[1], de modo a tentar sistematizar o fenômeno político, intento que encontrou em Aristóteles, seu discípulo, maior aprofundamento, muito embora esse último, ao revisitar as teorias de sua época, tenha rechaçado as teses de seu mestre. Inclusive foi Aristóteles quem apresentou vários dos conceitos políticos originais e ainda atuais, entre eles as diversas formas de governo e os seus defeitos, mormente a degeneração da democracia, objeto específico da pesquisa. É preciso, no entanto, contextualizar a teoria aristotélica com a realidade histórico-cultural de seu tempo, a partir de quando se concluirá que a despeito de dividir as pessoas em classes, excluindo da vida política os escravos, as mulheres, as crianças e os trabalhadores, foram dele os primeiros avanços experimentados na filosofia política, aperfeiçoados pelos autores que se seguiram nos séculos seguintes.

A teoria aristotélica parte do pressuposto que o homem é um animal político, destinado a viver em sociedade, por imposição de sua própria natureza, disso seguindo que ele se agrupa nas famílias, as quais se agrupam em torno de uma cidade, “já que o Estado é uma reunião de famílias.”[2] Vivendo em sociedade, Aristóteles, então, assume a tarefa de investigar as diversas formas de governo existentes nas diversas cidades da antiguidade, bem como as pensadas pelos filósofos, almejando encontrar qual a mais adequada para reger a sociedade política de sua época. Contudo, é de se ressalvar a sua posição de que não existe uma forma de governo uniforme para todas as cidades, mas são as circunstâncias sociais de cada uma é que indicarão qual a melhor forma de governo a ser adotada, porque a felicidade é o fim buscado por todos. “Todos procuram a felicidade, cada qual a seu modo, e a diferença na vida dos indivíduos produz a diferença dos governos.”[3]

A primeira forma de governo estudada foi a monarquia, distinguida pelo traço de que uma única pessoa assume o comando da cidade e governa em benefício geral. Pode ser hereditária ou eletiva, conforme estabeleçam os cidadãos o modo de escolha do monarca, mas sempre limitada pela lei. Quando a monarquia desvirtua-se, devido ao foco mudar do interesse geral para o interesse pessoal do monarca, tem-se a tirania, a qual trás consigo o desrespeito ou suspensão da legislação. E é muito grande a chance das monarquias converterem-se em tiranias, isso porque é mais fácil um homem deixar-se dominar pela cólera ou outra paixão, quando o seu discernimento é alterado, do que tal vício ocorrer à toda coletividade; quando o poder pertence à multidão há a vantagem de ser ela menos suscetível à corrupção que um governante isolado. Resulta disso que “na maioria das vezes, a multidão é melhor juiz que um só indivíduo, qualquer que seja ele.”[4]; por tal razão é que Aristóteles classifica a tirania como a pior forma de governo.

Condenando-se a monarquia, cuja probabilidade de desvirtuar-se em tirania é muito grande, a questão passou a ser a escolha de uma forma de governo em que o conjunto dos cidadãos pudesse governar a cidade. Porém, novo dilema surgia: uns por serem iguais em alguma coisa, imaginam que o são em tudo; outros, por possuírem alguma vantagem justa de cunho pessoal, defendem a sua escolha para conduzir os destinos da cidade. O primeiro grupo defendia a democracia e o segundo a aristocracia, conforme participem os cidadãos do governo em igualdade de condições ou apenas um grupo formado pelos mais aptos.

A aristocracia é conceituada como a forma de governo em que um grupo de cidadãos mais aptos é escolhido para governar em nome de toda a multidão, tendo em foco o interesse geral da cidade. Na aristocracia a virtude é o critério para definição do grupo governante, mas possibilitando que todos os cidadãos possam demonstrar ser dignos da condição. Quando o grupo dos possíveis escolhidos é restrito a determinadas pessoas ou famílias, normalmente designadas pela sua riqueza, ocorre a degeneração da aristocracia em oligarquia, marcada pela característica de que o grupo busca apenas o interesse próprio. Para o autor o que garante que o grupo governante não desnature em oligarquias é a submissão deles à lei, na medida em que é melhor que seja a lei que ordene, antes que faça um cidadão ou grupo. O mesmo raciocínio exige que, sendo preferível confiar a autoridade a um número reduzido de cidadãos, como no gênero da aristocracia, que deles se façam servidores e guardiães da lei.

Observa ainda que nas oligarquias quando os detentores do poder ainda não têm força pra desconsiderar a lei e fazerem eles próprios soberanos, eles utilizam de mecanismos de manipulação da legislação. Com lucidez vaticina Aristóteles: “O poder assanha a ambição e multiplica a cobiça. E por isso que os ricos escolhem nas outras classes um certo número de cidadãos, que chamam para a administração, e não sendo ainda bastante fortes para mandar sem a lei, são-no, no entanto, para fazer promulgar a lei que lhes concede uma tal prerrogativa.”[5]

Havendo também algumas reservas ao modelo aristocrático, principalmente a possibilidade de o grupo dominante economicamente manipular a legislação com o intento de instalar uma oligarquia autoritária, buscando o interesse próprio, Aristóteles avança para desenvolver a teoria da democracia, forma de governo na qual o universo de cidadãos participa dos destinos da cidade. A sua primeira constatação de base para defesa da democracia é que as pessoas são diferentes em suas virtudes e defeitos, contudo iguais em direitos e obrigações perante a sociedade política.[6] Considerando a igualdade e a justiça de que todos participem dos destinos da sociedade em que vive, o ideal será a instituição de uma forma de governo onde o exercício do poder encontre limitação temporal bem definida por um acordo de vontades, sendo incompatível com a igualdade recíproca o exercício do poder por muito tempo ou a sua manutenção pela mesma parcela dos cidadãos, como na aristocracia e na monarquia.

Além da igualdade política também são princípios da democracia a liberdade, a alternância de poder e a resolução dos negócios do Estado – ou pelo menos os mais importantes – por uma assembléia geral dos cidadãos, havendo primado da legislação.

Decompondo a democracia, Aristóteles avança para indicar quatro de suas espécies. A primeira é a democracia majoritária (aritmética) em que a igualdade formal e a vontade da maioria são absolutas, ainda que haja sacrifício de direitos das minorias. A espécie seguinte é a República, a melhor forma de governo na visão do autor, a qual é uma simbiose de aspectos da oligarquia e traços da democracia majoritária.

Antes de defender o modelo republicano Aristóteles condena tanto a variante da democracia majoritária onde tudo é resolvido pela opinião da maioria como também a oligarquia, onde se considera justo apenas a opinião dos mais ricos e das classes dominantes. Há desigualdade e injustiça em ambos os sistemas. Havendo na oligarquia um único indivíduo que possua mais haveres que os outros ricos, só ele terá, em virtude do sistema oligárquico, o direito de mandar, convertendo-se em tirania. Também se for a vontade da maioria que decide aritmeticamente todas as questões da cidade, a classe majoritária não deixará de se apropriar, por confisco, dos bens e dos direitos dos mais fracos e das classes minoritárias. O ideal, então, é o sistema intermediário, republicano, no qual a vontade da maioria é soberana, mas os direitos dos mais fracos e das classes minoritárias são respeitados, o que é possível com o recurso à divisão proporcional dos cargos nos tribunais e nas assembléias em que se deliberem os negócios públicos.

Justificando a sua opção pela República como a melhor forma de governo, o autor recorre à uma metáfora: “Cada indivíduo, em uma multidão, tem a sua parte de prudência e virtude. Da reunião desses indivíduos faz-se, por assim dizer, um só homem que possui uma infinidade de pés, mãos e sentidos. O mesmo acontece em relações aos costumes e à inteligência. Aí está por que a multidão julga melhor as obras dos músicos e dos poetas; porque um aprecia uma parte, outro outra, e todos reunidos apreciam o conjunto.”[7]

Aprofundando sobre o modelo republicano, Aristóteles plantou as primeiras sementes da tese que, com Locke e Montesquieu, viria a ser a tripartição dos poderes. Para o autor homenageado o governo da cidade deveria ser composto de três partes, os magistrados ou executores[8], pelos cidadãos convocados para deliberar sobre os negócios públicos, inclusive a promulgação das leis, e pelos tribunais. O acesso aos cargos nas repúblicas deve observar um critério misto; para alguns cargos mais simples não se deve estipular requisitos, sendo nomeáveis todos os cidadãos, mas para outros cargos cuja atuação é mais complexa, é necessária a fixação de requisitos gerais de acesso, restringindo o universo dos potenciais ocupantes. Já na escolha final dentro do universo de potenciais ocupantes, devem-se valer dos critérios alternados de eleição e sorteio; a eleição possibilita que os cidadãos escolham os mais virtuosos, dando ao Estado bons administradores, e o sorteio concede a possibilidade de ascensão social e oportunidade de manifestação às minorias e aos mais pobres.

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São por essas razões que o modelo republicano repudia o acesso ao poder por critérios familiares, econômicos ou hereditários, exigindo, também, a alternância de poder e o seu controle por meio das leis. Por isso que no melhor modelo democrático que é a república é “importante tornar dependente o poder, e não suportar que aqueles que dele dispõem obrem segundo os seus caprichos, porque a possibilidade de fazer tudo o que se quer impede de resistir às más inclinações da natureza humana.”[9]

As duas formas sadias de democracia, que são a majoritária e a republicana, também podem degenerar-se em demagogia e tirania (ou totalitarismo, para falarmos com os autores modernos). Os modelos corrompidos de democracia são resultados de revoluções ou transformações e ocorrem por vários motivos, os quais podem ser resumidos em dois principais. A democracia corrompe-se quando existe um grupo privilegiado, com direitos e benefícios diferentes dos demais cidadãos, violando o princípio da igualdade. Também ocorre a degeneração quando uma parte do Estado ou uma classe social adquire um crescimento desproporcional, sobrepujando as outras.

A demagogia – “a arte ou poder de conduzir o povo” – verifica-se quando na democracia os governantes aparentemente buscam o bem comum, mas na essência o objetivo é a proteção dos interesses pessoais ou do seu grupo político, utilizando como mecanismo de sustentação a manipulação da opinião da multidão. É característica das demagogias também a desconsideração paulatina da legislação, a partir do expediente de utilização de atos com efeitos normativos em substituição a legislação.

Com antecedência espantosa do que viria a ocorrer na contemporaneidade, Aristóteles resumiu sua tese ao defender que nos governos democráticos onde a lei é senhora, não há demagogos, mas uma vez perdida a soberania da lei, surge então uma multidão; livram-se do jugo da lei e tornam-se déspotas. Essa espécie de democracia é no seu gênero o que a tirania é para a monarquia. De ambas as partes, a opressão dos cidadãos de bem; aqui, os decretos; lá, as ordens arbitrárias. E avança: “os demagogos são a causa de a autoridade soberana repousar nos decretos, e não nas leis, pelo cuidado que eles tomam de tudo conduzir ao povo; disso resulta que eles se tornam fortes, porque o povo é senhor de tudo, e eles próprios são senhores da opinião da turba, que só a eles obedece.”[10] Tal governo é uma demagogia, uma espécie deturpada de democracia, e não uma república; porque não existe genuína república onde as leis não reinem. É preciso, para o autor, que a autoridade da lei se estenda sobre todos os objetos para evitar a demagogia. “Por conseguinte, se a democracia deve ser contada entre as formas de governo, é claro que um tal estado de coisas, no qual tudo se regula por decreto, não é mesmo, para bem dizer, uma democracia. Porque um decreto jamais pode ter uma forma geral como a lei.”[11]

Se a demagogia é marcada pela paulatina substituição da lei pelos decretos, no modelo mais degenerado de democracia que é a tirania ou totalitarismo o detentor do poder desconsidera totalmente os limites impostos pela legislação, convertendo-se a democracia baseada na lei em governo absoluto, administrado por atos de exceção.

Aristóteles também já havia fixado a tese de que a desigualdade social leva a instituição de formas de governo autoritárias, nas quais o grupo detentor das riquezas e do poder político impõe os seus interesses em detrimento do bem comum. Para evitar as formas impuras de governo é “uma grande felicidade que os cidadãos só possuam uma fortuna média, suficiente para as suas necessidades. Porque, sempre que uns tenham imensas riquezas e outros nada possuam, resulta disso a pior das democracias, ou uma oligarquia desenfreada, ou ainda uma tirania insuportável, produto infalível dos excessos opostos. A tirania nasce comumente da democracia mais desenfreada, ou da oligarquia.”[12] Por essa razão é que para o nosso filósofo os governos demagógicos têm interesse em manter uma má distribuição de renda, conjugada com a prática política de distribuir aos mais carentes pequenos benefícios financeiros.

Em uma república que possua rendimento, é preciso não fazer o que fazem hoje os demagogos, isto é, distribuir aos pobres as sobras das despesas, nelas tomando também a sua parte. Estes mal acabam de receber a auxílio que lhes é prestado, recaem nas mesmas necessidades; fazer liberalidades aos pobres é o mesmo que verter num barril furado. No entanto, o legislador verdadeiramente devotado ao povo deve prover a que a multidão não caia numa indigência excessiva, porque essa é uma das causas que perdem a democracia. É preciso, ao contrário, imaginar todos os meios que possam garantir ao povo uma abastança durável, no próprio interesse dos cidadãos abastados, fazer uma massa geral do excesso de rendas do Estado, acumulá-las e reparti-la depois entre os pobres, principalmente se a parte que lhes toca pode servir à aquisição de algum pedaço de terra, ou pelo menos formar um capital com que possam montar um pequeno comércio ou um método de cultura.[13]

Aristóteles, então, vaticina que “Como o Estado se compõe de uma multidão de indivíduos, conforme dissemos, é pela educação que convém trazê-lo à comunidade e à unidade.”[14], revelando a razão pela qual é tido como o maior de todos os filósofos.


3. A doutrina de Thomas Hobbes

Hobbes tornou-se clássico pela obra O Leviatã, porém foi em Os elementos da lei natural e política que desenvolveu os conceitos utilizados na obra célebre, motivo que justifica o nosso estudo basear-se nessa última. Ela é dividida em dois livros sobre a natureza humana e o corpo político, integrando a primeira parte os conceitos de que os homens são animais racionais que permanentemente estão em busca de poder, de modo que a felicidade dos homens não consiste em ter prosperado, mas em prosperar; a reverência que alguns alcançam deriva do seu poder para lesar ou fazer o bem.

Antes da formação do poder político todas as pessoas viviam no estado de natureza, onde cada um procurava preservar o seu corpo e sua vida, sendo que todos têm iguais direitos a todos os bens disponíveis, não existindo propriedade privada. Tais características geravam a eterna desconfiança nos outros, mantendo as pessoas em permanente estado de guerra. Foi quando resolveram por intermédio de um contrato ou pacto social transferir parcela de seu poder para um órgão político, criando a sociedade civil. E o poder político pode organizar-se de diversas formas, quando Hobbes retomou a classificação aristotélica de monarquia, aristocracia e democracia para aprofundar as suas teses[15], fazendo a sua opção pela monarquia absolutista.

Diferentemente de Aristóteles que defendia a democracia republicana como a melhor forma de governo, Hobbes posiciona-se ceticamente quanto a questão, pois defende que a democracia, na prática, converter-se-á em aristocracia e, no limite, em monarquia, isso porque tanto os melhores oradores tendem a impor seus interesses como também a multidão desiste de comparecer nas assembléias para deliberar, como exige o modelo democrático.

Na democracia o direito de soberania está na assembléia, que corresponde idealmente ao corpo inteiro, mas acaba recaindo sempre em um homem particular ou em um pequeno número deles o uso desse direito, porque tal como em todas as grandes assembléias, nas quais cada homem pode entrar como lhe aprouver, não há meio de deliberar sobre o que fazer, senão por longos e complicados discursos, pelos quais cada homem pode esperar mais ou menos influenciar a assembléia em favor de seus próprios objetivos. Portanto, em uma multidão de oradores, onde sempre alguém sobressai sozinho, ou um pequeno número de homens sobressai em relação ao resto, esse homem ou esse grupo reduzido deve necessariamente influenciar o todo, de modo que “uma democracia de fato não é mais do que uma aristocracia de oradores, interrompida às vezes pela monarquia temporária de um orador.”[16] A opinião de Hobbes é que a democracia degenerar-se-á naquilo que Aristóteles denominou de demagogia ou em tirania, conforme o poder de convencimento da multidão esteja em um grupo ou em um único orador, que manipulam a opinião do povo em defesa de seus interesses.

Também ocorre a transformação da democracia em aristocracia e monarquia quando os membros da sociedade se cansam de comparecer às assembléias, ou por residirem muito longe ou por estarem ocupados com seus negócios privados, quando eles se reúnem para formar uma aristocracia, examinando e elegendo aqueles que deverão constituir o grupo que governará em nome e no interesse de todos. Da mesma forma a democracia evolui em monarquia, pela decisão da multidão de transferir a soberania para um homem aprovado e nomeado por todos. O que também justifica a tendência dos governos em converterem-se em monarquia é a tendência humana de serem governados por uma só voz, como ocorre no governo único de Deus sobre os homens e dos pais sobre os seus filhos.

Consciente de que a monarquia era a forma de governo que se imporia pelas tendências humanas, Hobbes avançou para estudar os deveres daqueles que detém o poder e quais os motivos que ocasionam o fim do governo. Entre os deveres o primeiro é o de garantir a liberdade e a riqueza dos cidadãos, não se proibindo alguém a alguma coisa que lhe era lícita pela lei de natureza sem uma razão justificada para a restrição, como também regulando o bom funcionamento do comércio, a obtenção de trabalho e a proibição de consumo supérfluo de comidas e vestuário.

Para garantia da liberdade e riqueza é preciso regulamentar a propriedade, a terra e os bens dos cidadãos, como base nos quais eles possam exercer o trabalho. Segue a necessidade de dividir proporcionalmente os encargos e custos do Estado, conforme a capacidade de cada um, por meio de contribuições a serem fixadas. É necessária para a paz interna a justiça devidamente executada, com os magistrados cumprindo o seu dever, ao mesmo tempo em que o Estado garanta um meio aberto de se apresentar queixas àquele que detêm a autoridade soberana. As medidas justificam-se porque a violência deve ser punida logo quando cometida e a violência procede de controvérsias entre os homens, que tratam do meu e do seu, do certo e do errado, do bom e do mau, entre outras, coisas que os homens costumam avaliar de acordo com seu próprio interesse, por isso que “compete também ao poder soberano estabelecer e tornar conhecida a medida comum a partir da qual cada homem saiba o que é seu e o que é do outro, o que é bom e o que é mau, o que deve e o que não deve ser feito, bem como lhe compete ordenar a observância disso. E essas medidas das ações dos súditos são aquilo que os homens chamam de leis políticas ou civis.”[17], em relação aos quais o soberano não se submeteria, estando apenas subjugado por Deus.

Hobbes reconhecia os inconvenientes da monarquia, mas defendia que eram potencializados na aristocracia e tornavam-se ainda maiores na democracia. O primeiro inconveniente é confiar um poder tão grande a um único homem, mas o inconveniente não estaria no poder em si, mas no mau uso que as paixões pessoais podem acarretar, porém como a aristocracia e a democracia real, enquanto governo de alguns oradores, também são compostas de homens, as paixões do grupo são mais violentas ainda. O segundo inconveniente da monarquia é que o monarca, além das riquezas necessárias para a defesa da cidade, poderia tomar muito mais dos súditos, para enriquecer seus filhos, seus parentes e seus favoritos, inconveniente muito maior na aristocracia, pois se trata de muitos que têm filhos, parentes e amigos para promover. O outro inconveniente da monarquia é o poder de omitir-se na execução da justiça em relação à sua família e amigos do monarca, que poderiam cometer ultrajes impunemente contra o povo, mas tal também ocorre na aristocracia, “porém, não é apenas um, mas muitos os que têm o poder de livrar os homens das mãos da justiça; e nenhum homem deseja que seus parentes ou amigos sejam punidos peles seus deméritos. Desse modo, eles se entendem entre si sem dizer mais nada, como em um pacto tácito.”[18]

Na passagem que trata das providências que o monarca deve tomar a fim de evitar o colapso do governo, o autor recomenda que se deva extirpar da consciência da população as opiniões que justifiquem as ações revoltosas, por exemplo, dissipando a ideia de que quem detém a soberania deva também sujeitar-se às leis civis. Hobbes diz que as opiniões adquiridas pela educação tornam-se habituais, não podendo ser tiradas à força e de maneira súbita, por isso segue-se que elas devem, portanto, ser tiradas também com o tempo e pela educação, o que pode ser feito com o ensino da doutrina da lei natural, do corpo político e da natureza geral da lei nas universidades, pois os jovens que lá chegam o fazem vazios de preconceitos, cujas mentes são capazes de qualquer instrução, quando “mais facilmente as receberiam e em seguida as ensinariam ao povo, por meio de livros e outras formas, contrariamente ao que se faz agora.”[19]

Sobre o autor
André Araújo Molina

Doutorando em Filosofia do Direito (PUC-SP), Mestre em Direito do Trabalho (PUC-SP), Especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual Civil (UCB-RJ), Bacharel em Direito (UFMT), Professor da Escola Superior da Magistratura Trabalhista de Mato Grosso e Juiz do Trabalho Titular na 23ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOLINA, André Araújo. A democracia brasileira enquanto estado de exceção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3641, 20 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24758. Acesso em: 5 mai. 2024.

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