4 ASPECTOS DE (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA EC 62/2009
A Emenda Constitucional nº 62, de 2009, como já dito, trouxe ao regime dos precatórios a terceira moratória instituída pelo constituinte, tratando-se de mora institucionalizada. Este foi o ponto crucial de toda a indignação em razão da sua edição, mas não foi o único.
Em seu discurso perante o Superior Tribunal de Justiça, na comemoração dos 20 anos do “Tribunal da Cidadania”, o então presidente da OAB, Cezar Britto, demonstrando evidente revolta com a aprovação do PEC nº 12 – projeto de instituição da Emenda em comento –, chamando-a de PEC do Calote, denunciou a sua aprovação, referindo que “a simples inclusão, no corpo da Constituição-Cidadã, de uma regra que estimula o calote já justificaria a sua não aprovação.”[13]
Tão logo foi aprovada a Emenda Constitucional nº 62/2009, o jornal O Estado de São Paulo publicou editorial, no dia 7 de dezembro de 2009, intitulado “A vergonhosa PEC do Calote”, onde, entre outras considerações, publicou artigo do ilustre jurista e professor Ives Gandra da Silva Martins[14], no qual atacou a aprovação do PEC nº 12, afirmando que:
O projeto de emenda constitucional aprovado no Senado tem, pelo menos, cinco inconstitucionalidades. Viola: o princípio da igualdade, pois tais fatores não são estendidos aos contribuintes credores; o princípio da dignidade humana, pelo tratamento humilhante que dá aos credores, confiscando-lhes o patrimônio; o direito à propriedade, com um acintoso “devo, mas não pago”; a coisa julgada, pelo desrespeito às decisões judiciais definitivas; o princípio da razoável duração do processo, já que, se os precatórios não são cumpridos, a prestação jurisdicional não é entregue.
Visto isto, é necessário então analisar sistematicamente o conteúdo da EC nº 62/2009, a ponto de saber-se que tipos de afronta à Constituição subsistem no seu texto.
4.1 (In)constitucionalidade Formal
A primeira inconstitucionalidade a ser apontada na Emenda Constitucional nº 62/2009 diz respeito ao aspecto formal, ou seja, às formalidades exigidas para sua criação. Esta inconstitucionalidade se revela sob dois prismas, o primeiro quanto ao descumprimento das formalidades normativas para reforma constitucional, uma vez que não foi respeitado o interstício mínimo entre os dois turnos de votação; e o segundo quanto às limitações materiais impostas às Emendas Constitucionais. Vejamos cada um deles.
4.1.1 Desrespeito ao interstício mínimo entre os dois turnos de votação
Inicialmente, cumpre referir que as duas votações que ensejaram a aprovação da Emenda Constitucional nº 62/2009 foram realizadas no Senado Federal no mesmo dia, em 02 de dezembro de 2009. Assim, vejamos que não houve respeito ao que estabelece o art. 362 do Regimento Interno do Senado Federal (RISF), que prevê um interstício mínimo de cinco dias úteis entre os dois turnos de votação quando se tratar de Emenda à Constituição.
Importante salientar que o art. 362 do RISF (Resolução nº 93 de 1970), está disposto em título que trata especificamente das proposições sujeitas a disposições especiais, referindo que o interstício entre o primeiro e o segundo turno será de, no mínimo, cinco dias úteis.
Desta forma, verifica-se que houve claro desrespeito ao devido processo legislativo, bem como ao que preceitua o art. 60, § 2º, da Constituição Federal de 1988, que prevê a discussão e votação em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos. Ainda que não haja previsão expressa na Constituição acerca da necessidade do interstício previsto no RISF, a maior parte da doutrina entende que este deve ser respeitado, tendo em vista que está intimamente ligado ao preceito constitucional do art. 62, § 2º, cuja interpretação deve ser feita de forma não literal, mas de acordo com a sua representatividade como norma reguladora do processo legislativo.
O § 2º do art. 62 da Constituição estabelece a necessidade de dois turnos de votação, justamente para que se possam ser realizadas as ponderações adequadas aos dispositivos da reforma pretendida, através de debates e reflexões acerca da deliberação.
4.1.2 As limitações materiais do poder reformador
O art. 60 da CF/88, em seu § 4º, limita expressamente as matérias que podem ser objeto de deliberação mediante emenda à Constituição. Tratam-se, pois, de cláusulas pétreas.
Não obstante, a EC 62/2009 impôs sérias limitações a direitos e garantias individuais, bem como ao princípio da separação dos Poderes, suplantando a competência do poder constituinte derivado e desobedecendo as limitações materiais expressamente previstas no § 4º, incisos III e IV, do art. 60 da CF/88.
Assim, a EC 62/2009 incorre em vício de inconstitucionalidade formal também por violação às limitações materiais do poder reformador, que não detém competência para abolir direitos e garantias fundamentais, bem como não pode dispor sobre matéria abrigada por cláusula pétrea.
Neste sentido, cabe a importante lição de José Afonso da Silva[15] quando se referiu à impossibilidade de emenda constitucional ofender direito adquirido:
A reforma ou emenda constitucional não pode ofender direito adquirido, pois está sujeita a limitações, especialmente limitações materiais expressas, entre as quais está precisamente a de que não pode pretender abolir os direitos e garantias individuais, e dentre estes está o direito adquirido.
De outra parte, é importante referir que as deliberações parlamentares, ainda que passadas pelo controle preventivo de constitucionalidade, por si só, não se perfazem plenamente constitucionais, tornando-se imutáveis, pelo contrário, estão sujeitas ao controle repressivo de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário. Neste sentido, é o entendimento exposto no julgamento da Medida Cautelar em Mandado de Segurança nº 26.441-DF, pelo Relator Ministro Celso de Mello, da Suprema Corte nacional.
De igual sorte, este foi entendimento do Supremo Tribunal Federal no julgamento da Medida Cautelar na ADI 2.356, de relatoria do Ministro Néri da Silveira, cujo redator foi o Ministro Ayres Britto, na oportunidade em que restou apreciada a (in)constitucionalidade do art. 78 do ADCT, introduzido pela EC nº 30, de 2000.
No mesmo sentido, leciona o Eminente Ministro do STF, Gilmar Ferreira Mendes[16]:
Em qualquer hipótese, os limites do poder de revisão não se restringem, necessariamente, aos casos expressamente elencados nas garantias de eternidade. Tal como observado por Bryde, a decisão sobre a imutabilidade de determinado princípio não significa que outros postulados fundamentais estejam submetidos ao poder de revisão.[17]
O efetivo significado dessas cláusulas de imutabilidade na práxis constitucional não está imune a controvérsias. Se se entender que elas contêm uma "proibição de ruptura de determinados princípios constitucionais" (Verfassungsprinzipiendurchbrechungsverbot), tem-se de admitir que o seu significado é bem mais amplo do que uma proibição de revolução ou de destruição da própria Constituição (Revolutions Verfassungsbeseitigungsverbot). É que, nesse caso, a proibição atinge emendas constitucionais que, sem suprimir princípios fundamentais, acabam por lesá-los topicamente, deflagrando um processo de erosão da própria Constituição.[18]
Passemos então à análise da inconstitucionalidade material da Emenda Constitucional nº 62/2009.
4.2 (In)constitucionalidade Material
4.2.1 O Regime Prioritário Especial dos Precatórios Alimentícios
A EC 62/2009 instituiu o pagamento preferencial dos precatórios daqueles que contavam com 60 (sessenta) anos ou mais de idade e daqueles que são portadores de doença grave, visando assim sagrar princípio humanitário em virtude do efeito do tempo em relação a estes, bem como da redução da capacidade laborativa de ambos. Atitude louvável do legislador, pois tal benefício não existia anteriormente.
Tal preceito foi introduzido no Texto Constitucional pela alteração do § 2º do art. 100 da CF/88. Contudo, este mesmo dispositivo trouxe consigo regramento cuja constitucionalidade é de se questionar. O § 2º, do art. 100, da CF/88, criou a preferência – humanitária – do pagamento dos precatórios, entretanto, limitou-a àqueles “cujos titulares tenham 60 (sessenta) anos de idade ou mais na data de expedição do precatório”. Exatamente esta última expressão (“na data de expedição do precatório”) é que representa o primeiro questionamento acerca da (in)constitucionalidade do dispositivo.
Assim dispondo, a norma criada acabou por excluir da preferência os credores que na data da expedição do precatório não tinham alcançado ainda 60 anos, mas que posteriormente vieram a completar tal idade. Nesta lógica, uma pessoa de 60 anos de idade que teve seu precatório expedido recentemente, receberá o seu crédito muito antes de outra que, mesmo com idade mais avançada, espera há mais de 20 (vinte) anos para receber o que lhe é devido.
Por estes motivos, entendemos que a expressão “na data de expedição do precatório” é inconstitucional, pois viola os princípios da igualdade, da razoabilidade e da proporcionalidade.[19]
Há ainda que se observar que a preferência do § 2º, do art. 100, é dada somente para os credores de precatórios alimentícios, ficando excluídos, assim, aqueles credores nas mesmas condições de idade ou doença grave, cujos precatórios não são de origem alimentícia, não tendo estes qualquer prioridade no recebimento dos seus créditos.
Outro ponto a ser observado na redação do dispositivo em comento é a expressão “até o valor equivalente ao triplo do fixado em lei”. Esta limitação do pagamento dos precatórios de natureza alimentar até o valor equivalente ao triplo do fixado em lei – considerando-se para tanto, nos termos do § 3º, do art. 100, da CF/88, introduzido pela Emenda em comento, o valor das Obrigações de Pequeno Valor (OPV) fixado na lei do ente federado respectivo –, contraria à própria natureza do crédito alimentar, que devido à sua importância, deveria ser pago de forma integral.
Passou então a ser admitido pela parte final do § 2º do art. 100 da CF/88, introduzido pela EC 62/2009, o fracionamento do crédito para este fim, devendo o restante ser pago por meio da ordem cronológica de apresentação. Em razão disso, estaria o dispositivo retirando a eficácia e a autoridade da decisão judicial condenatória transitada em julgado[20].
Podemos entender ainda que este fracionamento do crédito implique em ofensa ao direito adquirido, à coisa julgada e à separação dos poderes, uma vez que o direito à prioridade no recebimento do crédito, por sua natureza alimentícia, é limitado, de forma que parte do crédito sairá do regime prioritário especial (prefiro chamá-lo assim, em razão de o regime preferencial puramente alimentício ser diferenciado) para a forma do regime preferencial simples (aqui me refiro ao regime preferencial dos precatórios de natureza alimentícia).
Há de ser observado que o regime instituído pelo § 2º, do art. 100, da CF/88, introduzido pela EC 62/2009, importou em um agravamento da situação dos credores de precatórios que foram emitidos antes da edição da Emenda, e que deveriam ser pagos em parcela única e de forma integral.
Com o advento desta regra, passaram a coexistir três regimes de ordem cronológica de apresentação dos precatórios para pagamento, quais sejam, o regime comum (dos precatórios não alimentícios) do caput do art. 100 da Constituição Federal de 1988, o regime preferencial dos precatórios de natureza alimentícia, do § 1º do mesmo artigo, e o regime prioritário especial, do § 2º do dispositivo citado.
Trata-se, pois, de tratamento antiisonômico instituído sob o manto da Constituição e nela inserido, em vias de afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade, razoabilidade e proporcionalidade - vetores do sistema Constitucional - e à própria natureza alimentar do crédito.
4.2.2 Obrigações de Pequeno Valor
Por sua vez, o § 3º, do art. 100, na redação da Emenda, estipula que as Obrigações de Pequeno Valor (OPV) estão excluídas do regime da ordem cronológica de pagamento, mantendo a regra trazida pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998.
Trata-se, nessa hipótese, de execução direta, garantindo-se, desta forma, a eficácia das sentenças judiciais transitadas em julgado, em consonância com os princípios constitucionais vigentes.
O § 4º conferiu aos entes da Federação autonomia para editar leis próprias, fixando os critérios quantitativos para as Obrigações de Pequeno Valor, devendo ser respeito apenas o limite do valor do maior benefício do regime geral de previdência social.
Entretanto, esta lei deveria ser editada nos 180 (cento e oitenta) dias subsequentes à data de publicação da Emenda, conforme previsão do § 12, do art. 97, do ADCT. Logo, para os entes federativos que não editaram suas leis próprias no prazo estipulado, aplicam-se os valores previstos nos incisos I e II deste dispositivo, que estipulam como obrigações de pequeno valor para os Estados, 40 salários mínimos, e para os Municípios, 30 salários mínimos. Na esfera Federal, a definição de pequeno valor encontra-se na Lei 10.259/01.
A Constituição prevê ainda a possibilidade de o credor renunciar parte do seu crédito, que exceda o limite da OPV respectiva, para evitar o pagamento através do regime de precatórios e recebê-lo através do pagamento por Requisição de Pequeno Valor (RPV), nos termos dos artigos 86 e 87, parágrafo único, do ADCT.
É vedada, entretanto, a expedição de precatórios complementares ou suplementares de valor pago, bem como o fracionamento, repartição ou quebra do valor da execução para fins de pagamento na forma de RPVs[21].
A EC 62/2009 foi mais longe, estabelecendo no § 11, do art. 97, do ADCT, que, quando houver litisconsórcio de credores, não lhes será aplicado o regime de pagamento das RPVs.
4.2.3 Compensação compulsória
O § 9º, introduzido no art. 100 da Constituição Federal, criou regra de compensação dos créditos de precatórios com os débitos constituídos contra o credor pela Fazenda Pública, o que ocorre de forma compulsória, uma vez que a norma é auto-aplicável e independe de regulamentação, tratando-se de meio coercitivo para a cobrança de tributos. Essa obrigatoriedade de compensação acaba por privar o credor da disponibilidade sobre o direito reconhecido na sentença judicial.
Outro ponto que torna questionável a constitucionalidade deste dispositivo é que, quando da cessão do crédito do precatório, o cessionário não estaria resguardado de eventual débito do credor original, que inclusive pode vir a ser constituído posteriormente à cessão, podendo perder até a totalidade do seu crédito, o que violaria o princípio da segurança jurídica.
O texto do aludido artigo refere ainda que estão sujeitos à compensação os débitos inscritos ou não em dívida ativa e incluídas parcelas vincendas de parcelamentos, o que viola claramente os princípios da proporcionalidade e do devido processo legal substantivo.
Não obstante a morosidade no trâmite processual das demandas contra a Fazenda Pública, o credor ainda fica sujeito a outra espécie de obstaculização à satisfação do seu direito judicialmente reconhecido, estendendo ainda mais a discussão judicial, agora quanto ao crédito/débito, o que importa em violação ao princípio da duração razoável do processo.
Não bastasse tudo isso, o dispositivo ainda cria uma diferenciação desigual e desarrazoada entre a Fazenda Pública e o credor, uma vez que esta obrigatoriedade é aplicável somente desfavor dos contribuintes, mas nunca em desfavor da Administração Pública, e aí se configura mais uma violação constitucional, desta vez ao princípio da igualdade.
4.2.4 O Índice de Atualização dos Precatórios
A EC 62/2009, nos artigos 100, § 12, da CF/88, e 97, §§ 1º, II, e 16, do ADCT, adotou como parâmetro de atualização de precatórios, o índice oficial de remuneração da caderneta de poupança.
Como sabemos, o índice de atualização monetária serve para suprir a desvalorização da moeda ao longo do tempo. Desta forma, ao fixar um índice de atualização específico, a Emenda Constitucional acabou, em verdade, por fixar índice genérico de atualização, ou seja, que será sempre o mesmo, não interessando a época em que se lhe aplicará.
Esta nova forma de atualização de valores dos precatórios acaba por criar, em determinado espaço de tempo, uma desvalorização ou valorização excessiva do crédito, incorrendo assim em enriquecimento sem causa (pelo credor ou pelo devedor) ou decréscimo do valor devido em prejuízo do credor.
Neste sentido, as palavras de Henrique Nelson Calandra[22]:
Independentemente do critério fixado pela sentença condenatória transitada em julgado, a atualização do valor da condenação após a expedição do precatório e até o efetivo pagamento da dívida deverá ocorrer pelo índice oficial de remuneração da caderneta de poupança. Com isso, esvazia-se o conteúdo decisório e, por via de conseqüência, a autonomia e a autoridade da decisão judicial em manifesta quebra do Princípio da Separação dos Poderes.
Assim, não se justifica a adoção desta espécie de correção, por ser regra desarmônica com os princípios constitucionais vigentes.
4.3 O art. 97 do ADCT e o Regime Especial de Pagamento dos Precatórios
O § 15, inserido pela EC 62/2009 no art. 100 da Constituição Federal, possibilitou que Lei Complementar venha a ser editada para fins de estabelecer regime especial para pagamento de crédito de precatórios de Estados, Distrito Federal e Municípios, dispondo sobre vinculações à receita corrente líquida e forma e prazo de liquidação.
Não obstante, a mesma Emenda inseriu no ADCT o art. 97, que estabeleceu regime próprio de pagamento dos precatórios enquanto não for editada a referida Lei Complementar. Assim, de forma antecipada, o art. 97 do ADCT acabou por criar o chamado “Regime Especial de Pagamento dos Precatórios”, fixando regramento amplo e específico para o pagamento dos precatórios pendentes ao longo dos seus dezoito parágrafos.
Logo, podemos chegar à conclusão lógica de que esta Lei Complementar, regulatória do regime de pagamento dos precatórios, jamais será criada, seja por desnecessidade – em razão do Regime Especial do art. 97 –, seja por falta de vontade política.
Este caráter permanente do Regime Especial do art. 97 do ADCT, foi bem observado por José Afonso da Silva[23], quando concluiu que:
O que, desde logo, é possível prever é que essa lei complementar nunca vai ser criada; pois para quê, se o regime já está devida e pormenorizadamente definido nesse art. 97, de modo a garantir todos os interesses das entidades devedoras – interesses, esses, que se contrapõem aos direitos dos credores? O certo é que essa disposição transitória vai acabar se transformando em permanente.
Este regime especial de pagamento desdobrou-se na possibilidade de escolha pelos Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por outros dois regimes, quais sejam: o regime de pagamento mensal e o regime de pagamento anual, conforme disposição do § 1º, do art. 97, do ADCT.
O primeiro – regime de pagamento mensal –, previsto no inciso I do § 1º, e complementado pelo § 2º, determina o depósito mensal em conta especial criada para tal fim, 1/12 (um doze avos) do valor calculado percentualmente sobre as respectivas receitas correntes líquidas. Este percentual variará entre 1,5% e 2% para os Estados e para o Distrito Federal, e entre 1% e 1,5% para os Municípios, de acordo com o previsto nos incisos I e II, e alíneas, do § 2º.
Vejamos então a antijuridicidade desta fixação de valor exato e invariável a ser pago por cada ente federativo, tendo em vista que este poderá, ao passar do tempo, aumentar consideravelmente o seu passivo, tornando-se impagável mesmo no extenso prazo de 15 (anos) que permite o § 14, o que torna impraticável esta forma de pagamento como meio de quitação da dívida pública.
Pode-se ainda cogitar no dispositivo aludido hipótese de ofensa ao pacto federativo, haja vista que trata de forma desigual os entes da federação, impondo forma mais gravosa para uns e menos gravosa para outros.
De outra parte, o segundo regime de pagamento trazido pelo art. 97 do ADCT – o regime anual de pagamento –, permite aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios que dispunham do prazo de 15 (quinze) anos para pagar os precatórios devidos, através do depósito anual, na conta especial, de valor corresponde ao saldo total dos precatórios devidos, dividido pelo número de anos restantes no regime especial de pagamento. Restou ainda pela disposição do § 4º, do artigo em apreço, atribuída ao Tribunal de Justiça local a administração das contas especiais de que tratam os §§ 1º e 2º.
Este parcelamento do saldo total de precatórios devidos em até 15 anos é injustificável no Estado Democrático de Direito, pois mascara certa desídia do Governo, descaracteriza a garantia do acesso à justiça e ofende a separação dos poderes, à medida que retira a eficácia da sentença judicial, quando permite ao governante que escolha como quer pagar.
A moratória criada pelo art. 97 ofende o princípio da separação dos poderes, na medida em que torna o poder executivo imune às decisões do judiciário, tirando deste a autonomia e a autoridade de suas decisões[24].
Por força do § 15 do art. 97 do ADCT, aplica-se também o regime especial aos precatórios parcelados na forma do art. 33 ou do art. 78, pendentes de pagamento. Essa regra ofende diretamente os princípios do direito adquirido e do ato jurídico perfeito.
4.3.1 A opção pela disposição de 50% dos recursos dos §§ 1º e 2º e o regime do § 8º
Os § 6º do art. 97, do ADCT, instituiu que pelo menos 50% (cinquenta por cento) dos recursos de que tratam os §§ 1º e 2º, serão utilizados para pagamento de precatórios em ordem cronológica de apresentação, e o § e 8º complementou estabelecendo que a aplicação dos recursos restantes dependerá de opção a ser exercida por Estados, Distrito Federal e Municípios devedores, por ato do Poder Executivo. Criou-se deste modo, outra possibilidade de livre escolha dos governantes pelo regime que adotarão para pagar a dívida pública.
Dentre estas opções estão: o pagamento dos precatórios por meio de leilão; o pagamento a vista; e o pagamento por acordo direto com os credores.
4.3.2 Pagamento dos precatórios através de leilão ou acordo direto com os credores
Na forma de pagamento dos precatórios através de leilão, o credor que oferecer o maior deságio será aquele beneficiado com o pagamento, tendo preferência diante dos demais. Ato contínuo, todos os demais credores têm seu pagamento preterido.
Tal regra afronta diretamente diversos princípios constitucionais. Viola a coisa julgada, pois mesmo havendo sentença condenatória obrigando a Fazenda Pública ao pagamento, o credor tem que abrir mão de parte do que lhe é devido para que possa ver satisfeito o seu direito. Retira a efetividade da jurisdição, porquanto o valor fixado na sentença judicial transitada em julgado não será pago na sua integralidade, podendo o credor optar por pagar ou não o débito de forma integral. Viola o princípio da isonomia, pois aquele que tem maiores possibilidades financeiras é que poderá oferecer o maior deságio, e assim terá preferência no pagamento do seu crédito, ficando aquele que vive em condições mais desfavoráveis, por possuir condições financeiras mais limitadas, preterido na ordem de pagamento dos precatórios.
Vale aqui transcrever a crítica que fez José Afonso da Silva[25]:
É inacreditável que tenhamos chegado a uma tal situação, ou seja: as Fazendas Públicas Estaduais, Distritais e Municipais são condenadas a pagar seus credores, mediante decisões transitadas em julgado – feita, pois coisa julgada, que é uma garantia constitucional (CF, art. 5º, XXXVI) -, e, em vez de liquidar o débito, como é dever de todo devedor, o que se faz? Vem uma Emenda Constitucional e submete o pagamento a longo prazo e a processo do tipo deste caracterizado, aqui, como leilão.
Não se justifica, portanto, no sistema constitucional, a adoção deste sistema de pagamento de precatórios. Pelos mesmos motivos, a regra do pagamento por acordo direto com os credores também não está em harmonia com os princípios constitucionais, haja vista que relativiza a coisa julgada, o direito adquirido e a efetividade da justiça.