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Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas com base na teoria direta

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O STF E O MODELO DE APLICABILIDADE DIRETA            

 O problema da vinculação dos particulares a direitos fundamentais não é um tema que ocupa de modo explícito a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Isso não significa que casos que envolvam essa questão nunca tenham sido decididos  nesse Tribunal, mas, apenas, que o STF nunca se dedicou a desenvolver uma tese sobre o problema ou a aplicar algum modelo a tais casos. Nesse trabalho monográfico, serão apresentados dois julgamentos do STF envolvendo o tema.

·  RE 158.215 – DEVIDO PROCESSO LEGAL NAS RELAÇÕES ENTRA PARTICULARES

O STF se deparou com o seguinte caso: a Cooperativa Mista São Luiz, do Rio Grande do Sul, havia expulsado alguns de seus associados sem observar as regras estatutárias relativas a tal procedimento e, sobretudo, sem ter a eles garantido o direito a defesa previsto estatutariamente. A cooperativa alegou que a expulsão sumária decorria de um desafio nesse sentido, feito pelos próprios associados expulsos, na imprensa local.

À primeira vista, parece um caso corriqueiro de desrespeito a normas estatutárias de uma pessoa jurídica de direito privado e que, assim, poderia ter sido resolvido no âmbito do direito civil, foi encarado, pelos recorrentes no recurso extraordinário e também pelo Ministro Relator, Marco Aurélio Mello, como uma violação a um direito fundamental.

Segundo o Ministro, “ a garantia da ampla defesa está insculpida em preceito de ordem pública”, razão pela qual não pode ser desobedecido em nenhum âmbito. A aplicação direta do direito à ampla defesa no caso em questão conferiu um direito subjetivo aos associados expulsos da cooperativa a serem a ela reintegrados e serem julgados mais uma vez, respeitando-se, então, esse direito fundamental. O caso, originariamente um simples caso de direito privado, visto que houvera um desrespeito a uma norma estatutária da cooperativa, que previa um determinado procedimento para expulsão de associados, transforma-se, com as decisões de instâncias inferiores favoráveis à cooperativa, um caso envolvendo direitos fundamentais.

A seguir a ementa deste RE 158.215:

DEFESA - DEVIDO PROCESSO LEGAL - INCISO LV DO ROL DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS - EXAME - LEGISLAÇÃO COMUM. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito - o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais. COOPERATIVA - EXCLUSÃO DE ASSOCIADO - CARÁTER PUNITIVO - DEVIDO PROCESSO LEGAL. Na hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância ao devido processo legal, viabilizado o exercício amplo da defesa. Simples desafio do associado à assembléia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da cooperativa.

(RE 158215, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, SEGUNDA TURMA, julgado em 30/04/1996, DJ 07-06-1996 PP-19830 EMENT VOL-01831-02 PP-00307 RTJ VOL-00164-02 PP-00757)

· RE 161.243 – IGUALDADE NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Não muito diferente foi a decisão do RE 161.243, relativa ao necessário respeito, mesmo nas relações entre particulares, do direito à igualdade. O caso diz respeito a um funcionário brasileiro da Air France, ao qual não haviam sido estendidos alguns benefícios, que o plano de carreira da empresa previa, porque esse plano diferenciava entre franceses e não-franceses. O STF decidiu, sem grandes preocupações com a fundamentação, que o princípio da igualdade deve ser respeitado em qualquer relação, sendo vedada, consequentemente, qualquer relativização.

No entanto, ao afirmar que a “discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca  do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso(...) é inconstitucional, o Tribunal peca por assumir com uma tendência  geral e absoluta, pretendendo de uma vez só, resolver todos os problemas relativos ao desrespeito ao principio da igualdade nas relações entre particulares, sem levar em consideração as particularidades de cada caso concreto.

A seguir a ementa deste RE 161.243:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRABALHO. PRINCÍPIO DA IGUALDADE. TRABALHADOR BRASILEIRO empregado DE EMPRESA ESTRANGEIRA: ESTATUTOS DO PESSOAL DESTA: APLICABILIDADE AO TRABALHADOR ESTRANGEIRO E AO TRABALHADOR BRASILEIRO. C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput. I. - Ao recorrente, por não ser francês, não obstante trabalhar para a empresa francesa, no Brasil, não foi aplicado o Estatuto do Pessoal da Empresa, que concede vantagens aos empregados, cuja aplicabilidade seria restrita ao empregado de nacionalidade francesa. Ofensa ao princípio da igualdade: C.F., 1967, art. 153, § 1º; C.F., 1988, art. 5º, caput). II. - A discriminação que se baseia em atributo, qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o credo religioso, etc., é inconstitucional. Precedente do STF: Ag 110.846(AgRg)-PR, Célio Borja, RTJ 119/465. III. - Fatores que autorizariam a desigualização não ocorrentes no caso. IV. - R.E. conhecido e provido.

(RE 161243, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 29/10/1996, DJ 19-12-1997 PP-00057 EMENT VOL-01896-04 PP-00756)


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Primeiramente, quanto à expressão “Eficácia horizontal dos direitos fundamentais”, utilizada por grande parte da doutrina, podemos concluir que sua utilização não é adequada, pois é bastante evidente que nem sempre os particulares estão em situação paritária. Para tal constatação, não podemos restringir a idéia de relações privadas, como existente apenas entre pessoas físicas, visto que no conceito de particular, também está incluído grandes empresas privadas, Partidos políticos, sindicatos ou Associações.

Com relação à omissão da constituição Federal em não dispor expressamente sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, concluímos que esta eficácia é plenamente possível.

Como fundamento desta conclusão, deve ser ressaltado as diferentes funções atribuídas aos direitos fundamentais. Esses, além das funções fundamentadora e interpretativa, devem ser utilizados para suprir lacunas do ordenamento jurídico, nos casos onde há omissões. Dessa forma, diante da ausência de disposição da nossa constituição referente à aplicabilidade ou não dos direitos fundamentais nas relações privadas, o fundamento da dignidade da pessoa humana deve ser utilizado para suprir tal omissão.

Além disso, vale ressaltar que a constituição direciona-se não só para regular o poder político, pois deve reger também a conduta do povo que integra o território submetido à constituição.

Assim, se o Poder Constituinte estabeleceu que é fundamento do nosso ordenamento jurídico a proteção aos direitos fundamentais, isto significa que todos aqueles que estiverem sob o império do ordenamento jurídico brasileiro estão submetidos aos fundamentos deve, dentre os quais se encontra o respeito aos direitos fundamentais.

É fato que a própria constituição Federal impõe a observância de diversos direitos fundamentais pelos particulares, como aqueles previstos no Art.7º da CF. No entanto, não dispõe de forma clara que outros direitos fundamentais também podem ser aplicados às relações privadas.Porém, tal objeção não pode prevalecer.Como é sabido, o artigo 5º, § 2º da CF, determina o princípio da não-taxatividade dos direitos fundamentais, de maneira que “os direitos e garantias expressos na constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”.

Ora, mesmo que o Poder Constituinte tenha enunciado algum direito fundamental que, à primeira vista, poderia parecer se aplicar apenas às relações Poder Público-particular, não nos parece que o regime e os princípios adotados pela Constituição indiquem neste sentido. Como já dissemos, um dos fundamentos de nossa constituição é a estrita observância e respeito aos direitos fundamentais, de maneira que, ao menos implicitamente, todos os direitos fundamentais, desde que sua natureza seja apta a tanto, podem tangenciar as relações privadas, fazendo-se de observância obrigatória aos particulares.

Assim, não restam dúvidas de que os direitos fundamentais também se aplicam às relações privadas, apesar da omissão do texto constitucional.

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Em relação às teorias que enfrentam a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas – teoria mediata e imediata -, o que distingue uma da outra é a imprescindibilidade ou não de intermediação legislativa para a concretização dos direitos fundamentais às relações privadas.

Concluímos que a teoria mediata, apesar de possuir conceitos que devem ser observados pelo intérprete, não esgota e soluciona os problemas efetivamente relacionados à eficácia das normas de direitos fundamentais nas relações privadas.

Com relação à teoria imediata, entendemos que esta seja a mais apropriada para o enfrentamento da questão. Não nos curvamos diante dos argumentos contrários à esta teoria, quando afirmam que a sua utilização irá enfraquecer demasiadamente a autonomia da vontade, que deve nortear toda e qualquer relação entre particulares.

Tal argumento não possui substância necessária para afastar a aplicação da teoria imediata. Ora, nas relações entre particulares, todas as partes envolvidas são titulares de direitos fundamentais. Assim, se é verdade que a autonomia da vontade, como um direito fundamental está presente nas relações privadas, não é menos verdade que direitos como igualdade, dignidade da pessoa humana e devido processo legal, como exemplo, podem coexistir com aquele em uma mesma relação.

Assim, diante de um eventual conflito que venha a ocorrer entre tais princípios fundamentais, a solução estará na ponderação de direitos fundamentais a ser realizada, com base no caso concreto, a fim de extrair a solução mais adequada para o problema.

Podemos acrescentar, ainda, que toda norma constitucional, em virtude dos princípios da foca normativa da constituição e da supremacia, tem obrigatoriedade, seja dela destinatário o particular ou o Poder Público. A ausência de norma infralegal, dando inteira operatividade a preceito constitucional só terá repercussão prática nas normas constitucionais de eficácia limitada, não interferindo nas normas dotadas de aplicabilidade imediata.

Por fim, diante dos precedentes mencionados do STF, é possível afirmar que a nossa Corte Máxima já aplicou, em determinadas situações, os direitos fundamentais às relações privadas, indicando uma tendência que provavelmente se firmará, principalmente com vistas a assegurar, em sua máxima efetividade, o principio da dignidade da pessoa humana.

 


REFERÊNCIAS

ZOLLINGER, Márcia. Proteção Processual aos Direitos Fundamentais. 1. ed. Salvador: Juspodivm, 2006.

PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los derechos fundamentales. 8. ed. Madrid: Tecnos, 1984.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

SILVA, Virgilio Afonso da. A constitucionalização do Direito. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

VEGA GARCIA, Pedro de. Dificultades y problemas para la construccíon de um constitucionalismo de la igualdad( en caso de la eficácia horizontal de los derechos fundamentales). In: PEREZ LUÑO, Antonio Enrique (coord.). Derechos humanos y constitucionalismo ante el tercer milenio. Madrid: Marcial Pons, 1996.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1998.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Batista Machado. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.

SCHÄFER, Jairo. Classificação dos Direitos Fundamentais. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2005.   


Notas

[1] Uma decisão do Tribunal Constitucional Federal Alemão, proferida no caso que ficou conhecido internacionalmente  como “caso Lüth”, formulou, em caráter inovador, a tese de que os direitos fundamentais, como ordem objetiva de valores, produzem “efeito irradiação” sobre o direito privado.

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Sobre o autor
Thiago Mendes de Almeida Férrer

Advogado em Teresina (PI). Vice-Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/PI.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FÉRRER, Thiago Mendes Almeida. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas com base na teoria direta. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3719, 6 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25235. Acesso em: 22 nov. 2024.

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