O direito como realidade complexa

23/10/2013 às 11:39
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No século XX, o direito surgiu como um conjunto complexo (sistema) de normas jurídicas e de regras sociais .

No século XX, o direito surgiu como um conjunto complexo (sistema) de normas jurídicas e de regras sociais (direito positivo e costumes) que atuam na normalização (normatização) das relações sociais e jurídicas, na vida comum do homem médio (controle social) e na organização do Poder Político (poder unificado), como expressão da soberania popular (Vontade Geral), e muitas vezes em desafio às discrepâncias sociais e jurídicas, ao antidireito, e a fim de se reafirmar a legitimidade e a perfectibilidade do Estado Racional (como utopia de direito passível de Justiça e não mera ficção).

1.SÉCULO XX: o direito no século XX movimentou-se em dois grandes sentidos, sob o controle do capital financeiro, mas igualmente como produto de resistência na forma do direito coletivo e difuso. O século XX ainda é um marco na passagem das tradições da modernidade clássica para o que se chamou de pós-modernidade (com o enfraquecimento do mesmo Estado gerador de direitos sociais).

2.DIREITO – resulta da luta política em torno da afirmação da soberania popular, muitas vezes contra o próprio Estado. O direito, portanto, equivale à transformação do dever de obediência em garantias e liberdades para se requisitar e conquistar outros direitos.

3.COMPLEXO (complexus) – designa uma rede, uma teia de relações ou de significados que se articulam em escala global.

4.SISTEMA – conjunto ordenado/sistematizado de regras e de normas coerentes entre si, eficazes (eficientes), abstratas, universais (gerais) e legitimadas pela vontade geral dos indivíduos/sujeitos de direito (individuais e coletivos).

5.NORMAS JURÍDICAS – são normas “autorizadas” (outorgadas ou promulgadas) pelo Estado a fim de que o direito seja positivo (para que o direito atue como meios reguladores, como filosofia de vida, em que o positivismo seja um caminho reto, positivo).

6.REGRAS SOCIAIS E JURÍDICAS – são regras do convívio, muitas limitadas ou instigadas pela moral prevalecente, em determinado contexto e de acordo com as características apoiadas pelo grupo social predominante ou hegemônico.

7.DIREITO POSITIVO – direito posto, como direito imposto pelo Estado. No Brasil, pela dicotomia muitas vezes notada entre o direito e a realidade social, o direito posto raramente é um direito interposto, em comunhão e de acordo com o consenso. Também pode ser o direito escrito “codificado”, salvo algumas exceções, como do direito administrativo e da CLT (que é uma Consolidação das Leis Trabalhistas).

8.COSTUMES – vem de ethos: padrões de convivialidade (ética). Interliga-se à cultura, mas não a substitui como sinônimo.

9.NORMALIZAÇÃO – tanto a norma social quanto a regra jurídica procuram afirmar o que o senso geral de convivência define como normal (padrão social), em oposição ao anormal (patologias sociais, como as psicopatias).

10.NORMATIZAÇÃO – imposição de regras jurídicas que seguem um padrão de normas comuns e aceitas por todos.

11.RELAÇÕES SOCIAIS – são relações que resultam da regularidade nas ações sociais (como ação em que o sentido subjetivo do indivíduo ou dos sujeitos está referido à conduta de outros indivíduos/sujeitos envolvidos pela relação jurídica). O afeto e a amizade podem ser exemplos de relações sociais, ao passo que o aperto de mãos indica uma ação social. Há uma nítida diferença de intensidade.

12.VIDA COMUM – chamado de o “mundo da vida” inclui os padrões habitualmente aceitos, além de todo o sistema de normas e de regras que surgem e se articulam a partir do Mundo do Trabalho (formal e informal), das relações familiares e privadas e do espaço público da política (no que se refere à política tradicional, às vezes oficial, mas também aos poros em que se articulam a insatisfação e a revolta).

13.HOMEM MÉDIO – aquele indivíduo/sujeito que atua, vive, colabora/participa do mundo da vida comum, quase que anonimamente, que expressa uma consciência mediana (senso comum) acerca do direito e do poder; mas, que está sob o alcance integral do Poder Político (do Estado que formula o direito que regula a vida das pessoas comuns e ao próprio Poder Público).

14.CONTROLE SOCIAL – relacionam mecanismos de organização social que impedem a desordem, a desarticulação social e que se verificam nas discrepâncias que ameaçam a estabilidade social.

15.PODER POLÍTICO – comumente, refere-se ao Estado como instituição por excelência. Contudo, o Poder Político é uma organização do poder de comando, sendo o Estado ou um conjunto de Estados (commonwealth) ou mesmo uma organização coletiva (a exemplo dos colegiados presentes nas comunidades primitivas).

16.PODER UNIFICADO – o poder assim definido, derivado do processo de laicização (como indutor do crescente Princípio da Tolerância, em função de maior isonomia e objetividade ou racionalidade das relações políticas), ainda se apresenta como resultado direto do Estado Laico; separando-se o poder secular do poder sagrado, obriga-se ao Estado não-diferenciar, negativamente, entre seus concidadãos[1].

17.SOBERANIA POPULAR – ao contrário da Teoria Clássica da Soberania que tem forte presença no pensamento de Hobbes (summa potestas – potestade[2]), a soberania popular pressupõe que o Estado, como Poder Político, seja exercido democraticamente, de acordo com os interesses sociais e populares, além de ser um poder regulado pelo direito democrático (este sentido é bem claro na expressão do legislador português, ao referir-se ao Estado de direito democrático).

18.VONTADE GERAL – os clássicos da Teoria Política se referiam à soberania popular como Vontade Geral; porém, não se aplica como somatória das vontades particulares porque a lei (como direito positivo) é resultado do entrechoque entre vontades particulares (lobbies) – na arena política –, especialmente no Parlamento, e que atingem um grau de maturação – universalidade – graças à sublimação, depuração, abstração das próprias razões e motivos que originaram o projeto legal[3].

19.DISCREPÂNCIAS SISTÊMICAS E JURÍDICAS: todo sistema (por mais organizado que seja) precisa de oxigenação a fim de que se adapte às mudanças sociais e assim atenda às novas exigências coletivas. O que permite este movimento social são justamente as discrepâncias. Todavia, se a entropia é superior ao nível de acomodação e à capacidade de absorção, as mudanças (antes requeridas) transformam-se em distopias.

20.ANTIDIREITO – é preciso não esquecer que o antidireito nos leva direto para um tempo pretérito, para um passado meio sombrio, de pouca luz, como se estivéssemos em meio às trevas do Estado de (não)Direito. É preciso lembrar que o antidireito é sinônimo de antes do Direito, ou seja, o tempo, a fase ou o momento onde predominava o uso da força, com a negação veemente de muitas condições políticas – a exemplo das garantias que seriam prestadas aos adversários, mas que hoje, graças à negação dessas garantias, acabaram por transformar os dissidentes em inimigos. Pois bem, o antidireito e o direito positivo transparente – mas estanque na defesa do patrimonialismo – são exemplos da mais pura negação do Direito[4].

21.LEGITIMIDADE – aproximando-se do conceito/sentido expresso tanto na soberania popular quanto na ordem jurídica democrática, a noção de legitimidade do Estado preserva conteúdos complementares: 1) Sem a conotação social, o direito é instável e, portanto, gera-se uma insuperável insegurança jurídica; 2) Sem sociabilidade, o direito se reduz ao monismo de subsunção, o direito que provém do Estado tende a se identificar com o poder estabelecido; 3) Ao servir à Razão de Estado, o direito se desincumbe da obrigação de servir à sociedade.

22.PERFECTIBILIDADE – nenhum sistema é perfeito, mas como medium, o direito tende ao aprimoramento, à perfeição sistêmica, especialmente se observarmos no longo prazo, desde sua separação da moral, dos preceitos religiosos, e até se afirmar como regras gerais, abstratas.

23.ESTADO RACIONAL – a partir de Max Weber, entende-se como um processo de contínua e crescente racionalização da vida pública, o que implica em dizer que também o Poder Político não mais se isentará do alcance de regras igualmente racionais. Por fim, pode-se dizer que o Estado é um agente ativo do processo civilizatório, uma vez que o Poder Político é resultado do direito e, sob esse controle, produz novas leis.

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24.UTOPIA DE DIREITO - quando se busca a verdade e a Justiça, o Direito tem que ser muito mais do que uma figura de linguagem: por melhores que sejam as intenções, é preciso relembrar que o brilho cega, ou seja, a Justiça não pode ser substituída pela iconoclastia da Justiça. A utopia pode transformar a realidade, mas tem que ser uma utopia possível – a limitação da expressão está em que esse direito nuançado que temos hoje não consegue reduzir as mazelas sociais das classes menos privilegiadas, populares e ainda vemos o pensamento corrente de que há uma espécie de excesso de direitos. O que é contrassenso, senso comum, limitado às aparências, pois, se somos iguais perante a lei, não há direitos demais (a não ser que se tome isso por privilégios).

25.JUSTIÇA – por Justiça se entenda inicialmente o Princípio da Equidade (como equilíbrio social) em que os mais fracos são tratados/preservados dos riscos e das ações diretas daqueles que detém o poder: tratar os iguais, igualmente; os desiguais, desigualmente. Na regra geral há a isonomia, mas diante do desequilíbrio social, cabem recursos/instrumentos de recomposição sistêmica (como o discrímen: regras que discriminam para proteger os desafortunados).

26.FICÇÃO – o direito é uma ficção porque se trata de criação humana, é uma invenção (como intervenção no curso regular da vida social), um artificialismo que substitui as ações humanas não reguladas e regidas pelo direito, como a vingança privada.


Notas

[1] São princípios da soberania no Estado Atual: a exclusividade, universalidade, inclusividade

[2] Refere-se à soberania como o poder próprio, inerente, específico do Estado e que se apresenta como evidente supremacia sobre os indivíduos e as sociedades de indivíduos que formam sua estrutura social, e, a par disso, é independente de todos os outros Estados.

[3] A lei, resultado dessa abstração de realidade, após o longo processo de depuração/transformação em que se submete no Poder Legislativo, em seguida, será aplicada conforme o procedimento jurídico designado como subsunção: a norma eleva-se sobre a realidade que lhe deu origem, abstraindo-se de suas implicações históricas imediatas, formalizando-se a ação de uma norma abstrata, em direção ao mundo real.

[4] Infelizmente, no Brasil, o tom que prevalece é o pastel, ou seja, nem isso, nem aquilo, nem cá, nem lá, esse tom apagado que não encanta ninguém, essa aquarela liquefeita em demasia e que só permite o improviso: o máximo do improviso é a tal lei que não pega.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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