Um ensaio sobre a tragédia.

Ou: uma nota provocativa quanto ao surgimento existencial do princípio

29/10/2013 às 15:26
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Há que se ver, ante a face bruta do evento covarde, o desvanecimento das vaidades, no instante imediato em que o mesmo ataca-nos de maneira fulcral e certeira. Há que se ver o homem concertado à sorte jamais concebida ou imaginada, do restar simplesmente à mercê, do sólido existir fragilizado pelas circunstâncias tornadas absolutamente inóspitas. É quando a dignidade encontra o passo logo em frente ao precipício, quando titubeia no encalço da montanha mais alta, cujo índex é representado, a seu turno, pelo congelamento daquele momento na memória e, após, pela retomada da lembrança, num polissíndeto cansativo e fatigante.

Quisera o homem chorasse apenas quando do tempo das melhores alegrias, dos melhores prazeres, prolongados no estado gozoso de histórias agradáveis e sublimes. Porém, haveria então algo a mais a respeito da condição humana, senão um sentimento esguio de satisfação, ou uma ideia vulgar de tranquilidade? Penso que não. A hipótese é de considerarmos a problemática universal da existência, a qual, a bem da verdade, começa de única e inexorável assertiva: simplesmente existir já nos basta para acharmos a nossa própria tragédia e, com isso, todo princípio que nos interessa.

Aristóteles em sua Poética, disse que o trágico é a “imitação de acontecimentos que provocam piedade e terror e que ocasionam a purificação dessas emoções.” [1] Ocorre, destarte, que o trágico contemporâneo definitivamente acontece e sua imagem, sua imitação, trata somente dos resquícios que ecoam ao longo do tempo; a purificação é lenta se se toma o trágico como pedagogia, inobstante, mais acelerada, se o tomarmos como nosso, enquanto parte intrínseca do próprio viver. Ora, não se deve aqui confundir-se a imanência da tragédia com a fatalidade, usualmente traduzida como trágica. Esta o é no sentido mais pueril do vernáculo; aquela consubstancia o desafio mesmo do existir e, ainda mais, o desafio mesmo de transformar-se em vida vivida no mundo, e não como mero ator de um teatro experimental. Aristóteles informa-nos que o paradoxo da purificação da emoção trágica é basicamente o fato de termos que encará-la de frente, arrebatá-la face a face, enquanto sofremos com o desejo mundano de repeli-la.

É da tragédia como evento humano de paradoxo, como evento motivador para o necessário engajamento – caso contrário é a morte – que possibilita a raiz mais primitiva da dignidade. Só se cumpre o postulado da dignidade caso haja vida, caso esta exista como tal. O digno transita por cima do trágico e o solapa, tal qual uma inevitável avalanche em que o estar soterrado indica, com efeito, o achar-se a si mesmo mais substantivo, mais autêntico. Mas não são os fortes – os quais desta maneira alguns intitulam – os responsáveis por evidenciar tamanho fenômeno. Só a miséria feita em si mesma e interiorizada por uma experiência hermenêutico-existencial da condição humana permite uma vaga ideia, ainda, de uma outridade em flagelo; o fazer-se homem é mais difícil do que o fazer-se Deus.

É o que em Rimbaud soa da seguinte maneira:

Ah! voltar à vida! Jogar os olhos nas deformidades. E este veneno, este beijo mil vezes maldito! A minha fraqueza, a crueldade do mundo! Meu Deus, piedade, esconda-me, não sei me comportar! – Estou escondido e não estou. É o fogo que se levanta com seu danado.[2]

Não nos cumpre nem tanto o céu, nem tanto o inferno. Cumpre-nos a vivência. E é nesta que exsurge o princípio, legítimo e autêntico.

À unificação do fluxo temporal da história dá-se o nome de vivência. Vivência é, pois, o instante puro de junção entre noese (subjetivo) e noema (objetivo), ainda que não se perceba lucidamente este fenômeno. Se digo que todo princípio essencial é um princípio de e, então, que princípio só é vida, dignidade e liberdade, logo, princípio de  é, a bem da verdade, vida de, dignidade de e liberdade de – o que preenche a fórmula apresentada é nada mais do que a vivência. Mas, se a vivência é o instante puro de junção, que conecta num só ato noese e noema então devo dizer que algo pode figurar ao ente privilegiado (homem) como já percebido (noema) e que esse algo já percebido deve ser deflagrado pela compreensão do eu, da subjetividade (noese)

A tarefa, portanto, é permitir que a noese trabalhe de maneira franca e espontânea, e que se manifeste engajada neste propósito. Assim, o princípio de aparece imediatamente espontâneo à realidade quando se lhe é retirado o véu que obnubila a memória; no entanto, não se trata de uma mera  memória, de sorte que lembrar-se do que constitui a si mesmo na verdade não é lembrança, mas sim “abrir os olhos”, simplesmente. Não recaímos então, no fundo, numa doutrina já pronta da essência do homem e, por conseguinte, de sentidos unívocos dos princípios essenciais? Penso que não.

Ora, o descobrimento do princípio a partir do ato existenciário de comover-se em si mesmo e através do outro na contemplação da realidade da natureza do espírito humano, não precisa partir de um pressuposto pronto e estanque, de sorte que apesar de se efetuar o processo de desvelamento de si e torná-lo, pois, algo percebido e, posteriormente, definitivamente assumido pelo ente (pois é preciso engajar-se no que se descobre por detrás das sombras) é a vivência que cumpre esse papel e, neste ponto, a vivência confunde-se com a própria existência e, sendo a vivência-existência, conexão em-si de uma história em que não se perde de vista o ponto onde se chegou, tampouco se perde de vista completamente o chão em que se pisa; meramente se permite vivenciar o princípio de no âmbito em que a substância da humanidade fora já definida – a de que não há possibilidade de outra coisa, à nível desta compreensão, isto é, do princípio de, que não aquela que assevera com todas as forças a integridade absoluta do ente, ou seja, a base irrefutável desse bondade ontológica primordial.

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Não se pode esquecer, portanto, que só há vivência se houver vida e, em havendo vida, não se pode concebê-la na qualidade de uma negação ou de um pessimismo; de tal maneira que independentemente do que se venha a descobrir sempre se parte da vida, seja se for para descobrir coisas boas ou más, sentimentos ruins ou alegrias inexplicáveis regozijantes; a possibilidade do princípio de é sempre a vida-vivência-existência e, assim, o princípio de não pode assumir outra forma a não ser a daquela de um ente que vive, vivencia e existe, no caminho do clareamento de si mesmo e do mundo; no caminho em que  somente há como alternativa o engajar-se como vida e como algo que favorece essa vida.

Se não fosse assim chamaríamos toda a ontologia aqui formulada de morte e, assim, a teríamos na base do filosofar. Porém, como não nascemos mortos, não posso realizar isto, o que seria um imenso paradoxo. Pode-se filosofar e criar essa teoria ontológica somente porque iniciamos com a vida e com ela, caro leitor, é que devemos nos preocupar e nos engajar.


Notas

[1] Poética, 6, 1449 b 23. 

[2] RIMBAUD, Arthur. Uma Estadia no Inferno. Trad. Daniel Fresnot. São Paulo: Martin Claret, 1972, p. 28, grifamos

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Sobre o autor
Luiz Felipe Nobre Braga

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas; Advogado; Consultor e Parecerista; Professor de Direito Constitucional e Lógica Jurídica na Faculdade Santa Lúcia em Mogi Mirim-SP; Professor convidado da pós-graduação em Direito Processual Civil e no MBA em Gestão Pública, da Faculdade Pitágoras em Poços de Caldas/MG. Autor dos livros: "Ser e Princípio - ontologia fundamental e hermenêutica para a reconstrução do pensamento do Direito", Ed. Lumen Júris, 2018; "Direito Existencial das Famílias", Ed. Lumen Juris-RJ, 2014; "Educar, Viver e Sonhar - Dimensões Jurídicas, sociais e psicopedagógicas da educação pós-moderna", Ed. Publit, 2011; e "Metapoesia", Ed. Protexto, 2013.

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