A força jurídica dos preâmbulos das constituições

25/02/2014 às 11:52
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Apesar de nem todas as constituições possuírem preâmbulo posto que nem seja elemento obrigatório para sua plena eficácia e para cumprir suas naturais funções.

Apesar de nem todas as constituições possuírem preâmbulo posto que nem seja elemento obrigatório para sua plena eficácia e para cumprir suas naturais funções[1].

A palavra preâmbulo na forma latina praembulus tem sentido de "que vai adiante". Onde o prefixo “prae” significa antes, ante ou diante, por causa de, e o "ambulus" significa andar, caminhar, passear ou transitar. Portanto, conclui-se que prae+ ambulo significa “o que caminha antes”.

De qualquer forma deve servir de guia para os intérpretes e executores da lei constitucional, principalmente quando diante de obscuros, ambíguos ou lacunosos teores que necessitem de aclaramento.

É comum que os textos fundamentais venham normalmente precedidos de um teor preparatório que cumpre a tarefa de introduzir solenemente os ditames constitucionais propriamente ditos.

Os preâmbulos passaram a existir desde os primórdios do constitucionalismo moderno, a começar pela Constituição dos EUA, com destaque para a Constituição de Virgínia de 1776, a Constituição norte-americana de 1787[2] e pela Constituição francesa de 1791.

A Convenção de Filadélfia também conhecida como Convenção Constitucional possuía comovente preâmbulo, fora uma reunião ocorrida entre 25 de maio a 17 de setembro de 1787 para resolver problemas nos EUA, após a independência do Reino Unido da Grã-Bretanha.

Convocada a Convenção da Filadélfia, que, em 1787, aprovou a primeira Constituição (jurídica e escrita) no sentido moderno do termo, aliás, a primeira e única constituição escrita que os EUA, como nação independente e soberana, que tiveram. Além disso, também por força do pacto constituinte de 1787, foi criada a primeira República Federativa e presidencialista no âmbito da evolução político-institucional da humanidade.

Apesar disso, fica o registro de que a Constituição americana de 1787 não fora o resultado de uma decisão prévia e planejada, mas sim, a forma encontrada pelos integrantes da Convenção da Filadélfia para resolver um problema concreto e imediato, qual seja, o da estruturação e organização interna do poder.  

Desta forma, considerando que o texto aprovado pela Convenção de 1787 foi, antes de entrar em vigor (o que veio a ocorrer em julho de 1788), submetido a um processo de ratificação pelos Estados que integravam a antiga confederação e que, portanto, renunciaram à sua soberania, é necessário destacar a importância, para tal ratificação, dos escritos de Alexander Hamilton James Madison e John Jay, publicados na imprensa de Nova York, entre outubro de 1787 e maio de 1788, sob o título de “O Federalista”, e que, juntamente com outras contribuições de destaque, ajudaram a formar, no seu conjunto, não apenas o substrato e a justificação teórica da nova ordem constitucional, mas também para a evolução constitucional posterior.

No caso brasileiro quase todas as nossas constituições foram acompanhadas de preâmbulo[3]. Jorge Bacelar Gouveia citado por Sarlet, Marinoni e Mitidiero aduz: “os preâmbulos de qualquer obra literária ou artística, estão antes e, por isso, não fazem parte do enredo que se vai relatar”.

A alta incidência do uso dos preâmbulos revela, por sua vez, que sua função não é (pelo menos não em todos os casos) meramente simbólica, ainda que não se atribua a força normativa própria, poderá se tratar de um momento privilegiado para o constituinte formular espécie de síntese e mesmo expressar quais valores e/ou a noção de direito e de justiça subjacente ao texto constitucional.

É verdade que a mensagem preambular informa de forma objetiva e prioritária que somos uma sociedade pluralista, fraterna e solidária em contraponto a uma sociedade monista, cujo Estado seja centralizador, ditatorial, arbitrário e opressor das liberdades públicas.

Esclarecendo ainda que o Brasil é um Estado de Direito, ou seja, onde as leis definem a autonomia e funcionamento do Brasil, que tem como forma de governo a república, sendo ainda uma federação como forma de estado, onde os Estados, Municípios e Distrito Federal estão unidos de forma indissolúvel.

É de conteúdo variável mas em sua grande maioria são caráter introdutório que acena com posturas valorativas, convicções, motivações e ideologias, de modo que se pode cogitar em notas filosóficas tecendo fragmentos de religião civil conforme lecionou Häberle[4] citado por Sarlet, Marinoni e Mitidiero[5].

Nesse diapasão os preâmbulos trazem esclarecimentos importantes sobre as circunstâncias e razões que justificam a normatização constitucional e também a explicação sobre a legitimidade, além de situarem a constituição no contexto da tradição jurídica, expondo os enunciados objetivos e promessas.

A legitimação democrática do processo constituinte está explícita no preâmbulo da vigente constituição brasileira e ainda a razão de ser do ato constituinte que é estabelecer o Estado Democrático de Direito que foi objeto solene referência.

O Estado de Direito como foi expressamente enunciado no preâmbulo que expõe a tábua de valores, assegurando o exercício de direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça[6] como canones supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e despida de preconceitos.

O Estado Democrático de Direito é, por sua vez, fundado na harmonia social e assume o compromisso (na ordem interna e internacional) com a solução pacífica das controvérsias.

Fechando o preâmbulo não obstante sermos um Estado laico, há a invocação de Deus[7] que à exceção das constituições de 1891 e 1937 sempre e de algum modo se fez presente nos preâmbulos das anteriores constituições brasileiras.

Já na fase inaugural do preâmbulo da Constituição Imperial de 1824 restou registrado que Dom Pedro I promulgou a Constituição “por graça de Deus”, na Constituição de 1934 “na confiança de Deus”, mas a própria origem do ato constituinte não foi atribuída à Deus[8] o que se repetiu nas constituições de 1946, 1967-1969 que a própria Assembleia Constituinte invocou a proteção divina.

A contradição em termos pelo fato do Estado estar fundado na separação entre a Igreja e o Estado não foi considerado um problema relevante. Porém, há quem enxergue nesta invocação aspectos positivos, desde que esta não resulte na erosão do Estado laico[9] e no tratamento preferencial de uma confissão religiosa, ou na prática de tolerância de discriminações em razão de religião ou credo, visto que o vínculo com Deus aponta para uma consciência e reconhecimento de que o Estado sendo uma obra humana, é limitado quanto ao seu poder e a sua atuação tem por fim a realização existencial humana.

A indagação a respeito da força jurídica das disposições contidas nos preâmbulos, não sendo possível dentro da evolução constitucional e do direito constitucional comparado, haver uma única resposta, sendo diversas alternativas. E, as possibilidades vão desde irrelevância jurídica até o reconhecimento simbólico, político, indo até a atribuição de eficácia jurídica direta e até mesmo similar às das demais normas constitucionais contidas no corpo permanente da lei fundamental.

Na primeira hipótese o preâmbulo possuiria valor meramente político ou mesmo moral, assumindo cunho propedêutico, de simples declaração, mas sem implicar qualquer vinculação no plano jurídico.

Apesar dessa compreensão, a tendência que verifica é a de atribuição de alguma força jurídica aos preâmbulos, destacando-se, neste contexto três alternativas:

a) força jurídica meramente legal portanto inferior à constituição[10];

b) força jurídica constitucional direta;

c) força jurídico-constitucional indireta[11].

No direito comparado é possível referir-se aos casos da Alemanha e França. No primeiro caso, o preâmbulo da Constituição de Weimar (1919) não tenha tido, por força da orientação dominante, sua relevância jurídica reconhecida, no âmbito da Lei Fundamental de 1949, o Tribunal Constitucional Federal e também expressiva doutrina atribuem eficácia direta ao preâmbulo, todavia não no sentido de ser fundamento autônomo para dedução de posições jurídicas (deveres concretos ou direitos subjetivos) mas servindo de parâmetro interpretativo para a aplicação do direito infraconstitucional; e para o controle de constitucionalidade.

A decisão a favor da democracia adotada pelo povo alemão em virtude de sua existência política encontra expressão no preâmbulo ("O povo alemão estabeleceu para si esta Constituição").

No caso da França, o preâmbulo[12] é considerado parte integrante do texto constitucional e do assim denominado bloco constitucional ou de constitucionalidade juntamente com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão[13], de 1789, e do Preâmbulo da Constituição de 1946 operando a orientação pelo Conselho Constitucional, servindo de parâmetro do controle de constitucionalidade das leis.

No Brasil, o valor jurídico do preâmbulo segue mobilizando a doutrina embora na esfera jurisprudencial do STF tenha negado[14] tal valor refutando o seu caráter normativo e força obrigatória.

A decisão do STF partiu da premissa de que apenas os princípios contidos no bojo da Constituição Federal possuem força normativa própria[15].

Em julgado do HC 94163, DJ 23/10/2009 o STF pontificou que no âmbito da interpretação e aplicação, os valores e objetivos expressos no preâmbulo servem se invocados de reforço argumentativo mas sempre em conjunção com os preceitos normativos do texto principal da Lei Magna. Constata-se que majoritariamente em doutrina admite-se a eficácia normativa indireta e não autônoma.

Vital Moreira e Canotilho concordam que: "O preâmbulo não é juridicamente relevante”. Faz parte do documento constitucional e foi aprovado juntamente com a constituição. O seu valor jurídico é, no entanto subordinado. Funciona como elemento de interpretação e, eventualmente de integração das normas constitucionais.

Os constitucionalistas portugueses referem-se à intenção socialista presente na Constituição Portuguesa de 1976 que deixou de encontrar correspondência no texto constitucional desde a segunda revisão constitucional ocorrida em 1989, porém, os intérpretes lusitanos não são partidários da posição doutrinária da irrelevância jurídica do preâmbulo.

Pelo contrário, sustentam que não é juridicamente irrelevante, fazendo parte do documento constitucional tanto que fora aprovado juntamente com a Constituição. Também são contrários a qualquer procedimento revisor do preâmbulo posto que seja uma certidão de origem, um título de legitimidade e um bilhete de identidade, sem o que não teria sentido passar por novação constitucional.

Sarlet e Marinoni partilham que o valor normativo do preâmbulo não pode ser pura e simplesmente enquadrado num único modelo, considerando a própria heterogeneidade de seus enunciados, seja por sua função, seja em razão a sua maior ou menor densidade normativa.

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Uadi Lammêgo Bulos destaca que o preâmbulo não possui eficácia normativa, não vale como norma jurídica, mas possui inegável importância como vetor interpretativo sendo utilíssimo para se entender as linhas gerais da manifestação constituinte originária. No preâmbulo o constituinte declara tudo que se pretende na Constituição, mas não deve ser tomado isoladamente.

Embora que para os defensores de sua normatividade apontem no preâmbulo o espírito da constituição, com a missão de estabelecer o seu roteiro básico, sendo princípio norteador na captação semântica das expressões e terminologias utilizadas nas disposições constitucionais.

Mas no preâmbulo apesar de ausente o caráter normativo, reconhece-se que lá residem princípios diversos bem como valores e objetivos formulados pelo constituinte que em grande parte reproduzidos pelo menos em similar normatividade do que àquela atribuída aos princípios contidos na parte permanente da constituição.

O caráter subsidiário desses princípios decorrentes de estarem sediados no preâmbulo não poderia retirar-lhes sua força jurídica, inclusive como parâmetro de controle de constitucionalidade e mesmo com a eficácia derrogatória da norma anterior e incompatível com seu sentido.

Também não importa em negar-lhe força jurídica direta[16], já que exista a possibilidade de se declarar a inconstitucionalidade de disposição legal com base no preâmbulo implica na extração de efeitos pela jurisdição.

No Brasil em face do caráter analítico da constituição e, ainda pelo fato de praticamente todas as disposições (especialmente os valores e objetivos nestas mencionados) firmarem a reprodução direta ou indireta no corpo constitucional, verifica-se que uma posição mais tímida, reservando ao preâmbulo um papel menos central, é sustentável, mas não constitui a única alternativa disponível.

Apesar da decisão da Suprema Corte brasileira, não havemos de consentir que seja o preâmbulo mero ornato apenas compondo formalmente o texto constitucional. Reduzi-lo a mero enunciado ideológico seria transformá-lo numa fórmula vazia e nula, o que seria inconcebível principalmente por ser cláusula emanada do Poder Constituinte. Tendo o STF reconhecido sua força interpretativa do para as demais normas constitucionais. Pois enfim, o preâmbulo representa uma síntese sumária dos grandes fins da Constituição.

Referências:

AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do Estado. 42.ed. São Paulo: Ed. Globo, 2002.

BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 9.ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da república portuguesa anotada. 3.ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993.

COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. 2.ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2003.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Editora Saraiva, 1994.

FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Interpretação e estudos da Constituição de 1988. São Paulo: Editora Atlas, 1990.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional - A Sociedade Alberta dos Intérpretes da Constituição. Contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição. Trad. de Gilmar F. Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, 2002.

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Guanabara, 1934, v.1.

_____________________________________ Comentários à Constituição federal de 10 de novembro de 1937. Rio de Janeiro: Pongetti, 1938. v.1.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. v.4 Coimbra: Coimbra Editora, 1994.

PEIXINHO, Manoel Messias. A interpretação da Constituição e os princípios fundamentais: elementos para uma hermenêutica constitucional renovada. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2000.

SARLET, Ingo W.; MARINONI, Luiz G. Bittencourt; MITIDIERO, Daniel F. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 6.ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1990.

TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 10.ed. são Paulo: Ed. Malheiros, 1993.


[1] Nelson Nery e Rosa Maria Nery resumiram como funções do preâmbulo em três níveis: a de síntese, pois resume uma política de decisão fundamental do povo, chefe do Poder Constituinte. A segunda função é a de afirmação ideológica já que explicita os princípios fundamentais do perfil ideológico de determinado regime político. E, o terceiro engloba uma função simbólica opaca e que se converte em fator de integração nacional, pois revelam o sentimento do povo representado pelo Poder Constituinte.

[2] Lê-se o preâmbulo da Constituição norte-americana: “Nós, o povo dos Estados Unidos, para formar uma União mais perfeita, estabelecer a justiça, garantir tranquilidade doméstica, fornecer para a defesa comum, promover o bem-estar geral e seguro as bênçãos da liberdade para nós mesmos e nossa posteridade, ordenar e estabelecer esta Constituição para os Estados Unidos da América.”.

[3] O preâmbulo significa uma diretriz geral, carta de intenções para melhor compreensão da Lex Mater. É uma proclamação de princípios, porém não possui força normativa, sendo despido de qualquer obrigatoriedade. Seu objetivo foi assegurar valores supremos: direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, igualdade e justiça.

[4] Peter Häberle estudou direito em Tübingen. Bonn, Freiburg im Breisgau e Montpellier. Há uma interessante entrevista dada pelo jurista alemão, vide em: http://www.conjur.com.br/2011-mai-29/entrevista-peter-haberle-constitucionalista-alemao onde aliás revelou ser um admirador de nosso STF e do ministro Gilmar Mendes que é um constitucionalista líder no Brasil.

[5] Para Peter Häberle, os preâmbulos são pontes no tempo, exteriorizando as origens, os sentimentos, os desejos e as esperanças que palmilharam o ato constituinte originário.

[6] Da leitura do preâmbulo podemos destacar os princípios-mestres da constituição brasileira que são: liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça.

[7] Bulos entende que o Deus citado nas constituições de quase todo mundo refere-se a um Deus ecumênico, irrestrito, não pertencendo a esta ou àquela religião em particular. Há os que afirmem que a invocação à divindade é garantia constitucional de liberdade de expressão religiosa, conforme bem determina o art. 5º, inciso VI da CF/1988.

[8] No máximo com seu preâmbulo estabelece-se de que o Brasil é um estado teísta, que defende a existência de Deus, sem pender para qualquer lado. O fato mereceu a ADI por omissão de 2076 movida em face do Estado do Acre, por meio do Partido Social Liberal, pelo motivo de não ter este Estado, no preâmbulo de sua Constituição mencionado a palavra Deus. Não obstante os fundamentos lançados pela inconstitucionalidade por omissão eventualmente realizada pelo Estado do Acre, o STF por unanimidade decidiu que tal omissão não ofendia o princípio da parametricidade, eis que da palavra Deus não se retiraria qualquer princípio central inerente à CF, restando completamente respeitados, tanto o art. 25 da CF quando o art. 11 dos ADCT.

[9] Apesar de o Brasil ser um Estado leigo posto que com a Proclamação da República, o país deixou expressamente de adotar qualquer religião oficial, de modo que desde então, todas as demais Constituições brasileiras não mais ousaram reduzir liberdades em razão de crença religiosa, sendo certo que apenas duas constituições brasileiras não mencionaram a palavra “deus” em seu preâmbulo, que foi a Constituição republicana de 1891 e a chamada Constituição Polaca (a de 1937).

[10] Kelsen em sua clássica obra "Teoria Geral do Direito e do Estado" apontou que o preâmbulo é uma solene introdução que expressa as ideias políticas, morais e religiosas que a constituição pretende promover. Mas não estipula quaisquer normas definidas para a conduta humana e, assim, carece de conteúdo juridicamente relevante. Possuindo antes um caráter mais ideológico do que jurídico.

[11] Sobre a natureza jurídica do preâmbulo existem três posicionamentos doutrinários: a) a tese da irrelevância jurídica (portanto situa-se no domínio da política); b) tese da plena eficácia (tem a mesma eficácia que qualquer outro dispositivo da constituição); c) a tese da relevância jurídica indireta (que é uma posição intermediária, pois reconhece o preâmbulo integra o texto constitucional, mas não tem força normativa, apesar de vir do mesmo poder constituinte originário que elaborou a Lei Maior).

[12] O preâmbulo da Constituição francesa de 1958(a quinta republicana) declarou: "O povo francês proclama solenemente sua adesão aos Direitos Humanos e aos princípios da soberania nacional tais como foram definidos pela Declaração de 1789, confirmada e complementada pelo Preâmbulo da Constituição de 1946 e os direitos e deveres como definidos na Carta para o Meio Ambiente de 2004. A Constituição francesa não exibe um catálogo de direitos humanos. Havendo previsão em outros textos e fora do bojo constitucional.

[13] DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS - Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo; Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum; Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão; Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações; Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla; Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades; Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso.

[14] Quando o guardião da Constituição optou por retirar do preâmbulo sua força normativa, realizando notória diferenciação entre texto de lei e a norma, em nada prejudicou os direitos e garantias fundamentais, que já constam de forma pródiga no bojo da Constituição. Reconheceu o STF que o preâmbulo não tem força normativa, não podendo servir de parâmetro ao controle de constitucionalidade, seja via de ação ou por via de exceção.

[15] O conteúdo do preâmbulo não tem propriamente relevância jurídica, não cria direitos ou obrigações, não vigendo qualquer espécie de cogência, contudo serve como diretriz interpretativa das normas constitucionais, em face dos objetivos e finalidades constitucionais vigentes. Possui valor simbólico por refletir a crença do povo brasileiro, dessa forma transcende a pura análise técnica da questão.

[16] O STF já expressamente reconheceu que não possível conviver com duas Constituições num mesmo país, pois cada uma exterioriza uma ideia própria de Direito e uma concepção político-ideológica de mundo (com exceção do art. 34, caput do ADCT da CF/88 que conferiu vigência parcial da eficácia temporal de alguns dispositivos da CF/1967). Conclui-se então que enquanto o preâmbulo não possui força normativa conforme confirma a jurisprudência do STF, o ADCT tem natureza de norma constitucional contendo portanto obrigatoriedade.

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Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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