A aplicação da pena criminal nos séculos passados sempre foi cercada de muitos abusos e rigor excessivo. E tal se deu, sobretudo, porque nem sempre vigoraram regras claras e minuciosas a respeito do tema.
Conforme nos lembra Basileu Garcia, “antigamente, o juiz dispunha de grande arbítrio, que era empregado de modo nocivo, porque propiciava a perseguição dos fracos e a proteção das classes privilegiadas”.1
As Ordenações do Reino, coletâneas de normas vigentes em Portugal a partir de meados do século XV e que, após o descobrimento do Brasil, foram os primeiros textos normativos a vigorarem na colônia portuguesa da América, caracterizavam-se pelo rigor das penas e pela arbitrariedade em sua aplicação.
Narra Basileu Garcia que “tão grande era o rigor das Ordenações, com tanta facilidade elas cominavam a pena de morte, que se conta haver Luís XIV interpelado, ironicamente, o embaixador português em Paris, querendo saber se, após o advento de tais leis, alguém havia escapado com vida”.2
Na verdade, vale salientar que das três Ordenações do Reino que tiveram vigência em Portugal – as Afonsinas (1446), as Manuelinas (15213) e as Filipinas (1603) – apenas esta última teve efetivamente aplicação no Brasil4.
As Ordenações Filipinas, cuja vigência se deu por lei de 11 de janeiro de 1603, eram compostas por cinco livros dos quais o último, que trazia as disposições em matéria penal, ficou famoso pelo terror que empregava aos castigos e pela confusão que fazia entre crime e pecado, características marcantes nas legislações penais da Idade Média.
A legislação que entrou em vigor no reinado de Filipe II (III, da Espanha) previa sanções que iam desde uma simples multa, passando pelo degredo, açoite e galés, até a pena de morte, que era executada mediante quatro formas, a morte civil, a morte simples, a morte atroz e a morte cruel.
A aplicação da pena, nesse diploma normativo, não trazia qualquer segurança jurídica, pois não vigorava à época o princípio nullum crimen nulla poena sine lege, chegando a prever que “para alguns delitos fosse cominada a chamada pena arbitrária, exatamente aquela que ficava ao talante do julgador, que a fixava como ‘lhe bem, e direito parecer, segundo a qualidade da malícia, e a prova que dela houver’ (Livro V, Tit. CXVIII, parágrafo 1º)”.5
Todavia, com o Código Criminal do Império editado em 1830, primeira legislação penal genuinamente brasileira, de inegável inspiração nas idéias liberais iluministas, a aplicação da pena começou a ganhar contornos mais definidos, com a previsão, inclusive, de circunstâncias agravantes e atenuantes, devendo o juiz fixar a pena entre os graus máximo, médio e mínimo.
A legislação penal do império, com a proclamação da República, foi substituída pelo Código Penal editado em 1890, que previa regras de aplicação da pena bastante curiosas, cujo procedimento é relatado por Basileu Garcia:
“Havia cinco graus de pena: máximo, submáximo, médio, sub-médio, mínimo. O máximo e o mínimo figuravam no Código, para cada crime. Para calcular o grau médio, o juiz extraía a média aritmética entre o máximo e o mínimo. Calculava o sub-médio, extraindo a média entre o mínimo e o médio. Calculava o sub-máximo, extraindo a média entre o médio e o máximo.
Se ocorriam contra o autor do crime circunstâncias agravantes, não havendo atenuantes, seria a pena imposta no máximo. Se só atenuantes, o mínimo. Se não existiam circunstâncias agravantes nem atenuantes, ou, existindo, se compensavam, era aplicada a pena no grau médio. Se, existindo atenuantes e agravantes, prevaleciam as atenuantes, o grau era entre o mínimo e o médio, isto é, o sub-médio; se prevaleciam as agravantes sobre as atenuantes, aplicava-se entre o médio e o máximo, isto é, o sub-máximo”.6
Interessante anotar que o primeiro estatuto penal do período republicano, em seu art. 66, já previa o que hoje denominamos de crime continuado e concurso formal de crimes, aumentando-se a pena de sexta parte no primeiro caso e impondo a fixação da pena mais grave em seu grau máximo na segunda hipótese.
É preciso destacar, neste ponto, que, com o nítido escopo de impedir as incertezas das decisões judiciais que as legislações do período colonial proporcionavam e visando tolher do juiz qualquer margem de discricionariedade em suas decisões, o Código do Império de 1830 e o Código Republicano de 1890 não permitiam a fixação da pena fora dos critérios nem das balizas previstas na lei. Tal sistema, muito embora tivesse o nítido intuito de trazer segurança jurídica, impondo amarras à liberdade do julgador, conduzia, evidentemente, a grandes injustiças.
Esse modelo de aplicação de pena, por meio do qual ao aplicador das normas não era permitido interpretá-las, mas simplesmente verificar objetivamente a ocorrência de alguma circunstância prevista em lei, fazendo-as incidir, é, de certa forma, mantido nas legislações posteriores, ressalvado o acréscimo de expressões influenciadas pela Escola Positiva, cujo conteúdo subjetivo permite ao magistrado valorá-las discricionariamente, mas sempre dentro das balizas legais, da pena máxima e mínima.
O Código Penal de 1940, editado no período ditatorial do Estado Novo, e inspirado nas idéias positivistas de Enrico Ferri, trouxe grandes inovações em matéria de aplicação da pena. Em sua redação original, a imposição da sanção penal operava-se em etapas, devendo o juiz fixar a pena inicial, dentro dos limites legais, atendendo aos antecedentes e à personalidade do agente, à intensidade do dolo ou grau de culpa, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime.
A forma de aplicar a quantidade de pena, todavia, era motivo de grande divergência entre dois juristas integrantes da Comissão revisora do projeto que deu origem ao Código de 1940. Para Roberto Lyra, a aplicação da pena deveria seguir o sistema bifásico, segundo o qual as circunstâncias judiciais deveriam ser analisadas juntamente com as agravantes e atenuantes, em uma única fase, para, posteriormente, incidirem as causas de diminuição e aumento de pena. Já para Nélson Hungria, a dosagem da pena deveria seguir um modelo denominado trifásico, justamente por separar a análise das circunstancias judiciais e das legais.
No ano de 1984, a parte geral do Código Penal sofreu significativa reforma, sendo integralmente revogada, trazendo alteração nas regras de aplicação da pena.
No tocante ao cálculo da pena de prisão, adotou-se expressamente o sistema trifásico idealizado por Nélson Hungria, em que a fixação do quantum de pena atribuída ao condenado é realizada em três momentos distintos, quais sejam, a pena-base, a pena provisória e a pena definitiva.
Atualmente, as regras previstas no Código Penal precisam ser interpretadas à luz dos princípios estabelecidos pela Constituição da República, a fim de se evitar violações aos direitos e garantias individuais do cidadão.
Conhecer a evolução histórica da legislação brasileira sobre a aplicação da pena nos permite evitar abusos e retrocessos na interpretação da atual sistemática do tema, e nos permite também buscar sempre aperfeiçoar as regras sobre a dosimetria da reprimenda penal.
Bibliografia
GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. vol. I, tomo II. 6ª ed. São Paulo: Max Limonard, 1982.
GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. vol. I, tomo II. 2ª ed. São Paulo: Max Limonard, 1952.
PIERANGELI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. 2ª ed. 2ª tiragem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
Notas
1 Instituições de direito penal, vol. I, tomo II, p. 468.
2 Instituições de direito penal, vol. I, tomo I, p. 126.
3 Embora em 1514 tenha sido editada a 1ª edição completa das Ordenações Manuelinas, o certo é que ela “não satisfez a expectativa de D. Manuel que, por tal razão, mandou inutilizar todos os exemplares, com exceção daquele encontrável na Torre do Tombo. Em seguida, o monarca nomeou nova comissão para a elaboração da coletânea”, que foi publicada em 11 de março de 1521. (José Henrique PIERANGELI, Códigos penais do Brasil, p. 54).
4 Ensina PIERANGELI que “as Ordenações Afonsinas nenhuma aplicação tiveram no Brasil, pois quando em 1521 foram revogadas pelas Ordenações Manuelinas, nenhum núcleo colonizador havia se instalado no nosso país” e “o Direito empregado, no período das capitanias hereditárias, na prática, era quase o arbítrio dos donatários” (op. cit. p. 61).
5 José Henrique PIERANGELI, Códigos penais do Brasil. p. 58.
6 Instituições de direito penal, vol. I, tomo II, p. 469.