“Alguns homens veem as coisas como são e dizem ‘Por quê’? Eu sonho com as coisas que nunca foram e digo ‘Por que não?’”
Bernard Shaw
Foi-se o tempo em que a única preocupação do Direito era a criação legislativa. De certo modo, pode-se dizer que esta herança dogmática ainda persiste, sobretudo no cenário brasileiro, no entanto, o influxo teórico sofrido a partir da segunda metade do século XX proporcionou uma explosão no interior genético do ordenamento, de modo que ao invés das regras e normas, abrolham agora os princípios, os direitos fundamentais, isto é, os preceitos indicativos do humano e da humanidade. Tal característica é a responsável pela formação de um pensamento mais proativo e otimista no campo do direito constitucional, cujo alto lócus – entre nós – foi a promulgação da Constituição da República em 1988. Afora as críticas que se faz ao texto em si, deve-se reconhecer que a então chamada Carta Magna ou Carta Fundamental, passou a englobar uma séria de normas com nítido e explícito conteúdo principiológico. Quando não, aliás, os expressa de maneira autêntica, mediante o asseguramento (ou declaração de inviolabilidade) imediato dos princípios da vida, igualdade, liberdade, dignidade, etc.
Tudo, afinal, gira no entorno da pessoa, tida, no atual modelo, enquanto destinatária direta da tutela estatal – leia-se – do Direito. Todavia, o constitucionalismo principiológico não visa resguardar apenas e tão-somente a pessoa, como se fosse uma carta de proteção das subjetividades, como visa promover um ambiente, pautado na democracia deliberativa, onde seja possível empreender a transformação destas mesmas pessoas destinatárias quanto ao reconhecimento plural umas das outras. Quer dizer que não basta que o sujeito de direitos reste protegido e seus direitos e garantias restem resguardados pela ordem jurídica; é preciso ir além, é preciso fazer mais, à medida que enquanto se é titular de direitos, se é, ao mesmo tempo, e em contrapartida, titular de obrigações e deveres sociais, da solidariedade à caridade, da comoção ao afeto e à felicidade, da busca pessoal da livre predicação ao reconhecimento intersubjetivo das outridades.
Existe, assim, uma carga profunda no interior das estruturas principiológicas fundamentais, as quais tencionam o ente à harmonização do mundo da vida com o mundo apriorístico da potência ou, como já disse em poesia, das quereretudes do espírito.[1] Porque o homem não é algo lasso, preguiçoso, movido pelo ócio. Há neste aí que deveras significa o próprio lançamento do homem e o próprio lançar-se nos projetos da vida, um elemento cuja indexabilidade acha-se voltada à comunhão recíproca do espírito universal de humanidade. Quer-se com isto dizer que o prazer gozoso dos princípios, vertidos nas possibilidades ratificadas jurídica e socialmente de ir e vir conforme suas potências e vontades conscientes, não pode bastar por si mesmo, como se a vida fosse um mero estado errático de apreciação lúdica e de gáudio das frivolidades de uma qualquer matéria vagueada. Que aceitar tal premissa é a derradeira sucumbência da coragem! Não, não com isto se prestam os esforços dos que já transcenderam as fronteiras do hercúleo, porque talvez nem Hércules ou Dworkin sustentariam algumas posições se confrontados com as últimas consequências possibilitadas por suas assertivas teóricas. É preciso ter cuidado com as posições assumidas, de modo que para o pensador menos versado na arte da retitude e da necessária distância entre a defesa das propriedades universais da humanidade e as configurações rudimentares do querer ôntico, muito mais fácil ser pego de surpresa quando lhe contam que uma conclusão possível de sua teorética é, para ele, na verdade, motivo do mais brutal repúdio.
Mas, devemos voltar para dizer nitidamente que o dever principiológico surgido quando do prestígio público acerca do Estado Democrático de Direito ou, se se preferir, do Estado Constitucional de Direito, é tão denso e proeminente quanto as cores que enfeitam e designam as flores. Pois, com efeito, a assunção de um dever ou a aceitação de um papel nunca simplesmente o é por dever de ofício ou labuta, conquanto ausente no ator a separação entre pessoa e personagem. Não há personagens no mundo da vida.
A interpretação aqui difere da cênica de tal maneira que não é dado ao sujeito em si descolar-se dos atributos com os quais compartilha, em que pese ser-lhe assegurado o direito à figuração, como que uma árvore cujo valsear acompanha somenos o ritmo dos ventos que lhe são soprados na copa. Porém, nem mesmo a árvore contraria os ventos, não porque afinal não lhe é conferida a liberdade ou porque os deveres do movimento são tão penosos que mais fácil é o deixar-se fluir, mas porque, ao revés, tendo-lhe sido outorgada a vida, dançar com o estado das coisas exsurge muito mais como um presente ou uma dádiva para a apreciação da diversidade, à medida que cada vento sopra autêntico, do que uma irresignação cômoda de um existir sem projeto.
Ah! Porque, então, o reconhecimento dos deveres de humanidade é o primeiro empreendimento com a caridade, ou deveria ser. Algo de inevitável que nos ronda a todo tempo e que não podemos escapar, sob pena de a demagogia constranger-nos a tal ponto que no instante final do suspiro derradeiro termos tão-só os lamentos e os arrependimentos do tempo esgotado. Como é difícil, no entanto, devemos dizê-lo! Não somos seres perfeitos, angelicais, inacabados, em cujos limites estão já todos os horizontes abertos, repletos de virtudes e paixões sublimes. Somos um aí, isto é, a essência no movimento da vida; e é no movimento que descobrimos a impossibilidade de caminhar sozinhos. Porque ao lado do direito de estar sozinho parece haver um dever que impulsiona ao outro. Ao outro que já nos circunda antes de o percebermos. Ao outro que é o eu, sempre assim para um qualquer alguém.
E é por isso que os deveres caminham lado a lado com os direitos, isto é, não são, a bem da verdade, de faces de uma mesma moeda, porém lados opostos de um mesmo rosto, dados de uma mesma face, cujo movimento do mostrar-se somente ocorre mediante um ato consciente e deliberado de compreensão e reconhecimento. Por isso que o dever principiológico é antes a postura do humano que reconhece e compreende outra humanidade, e consigo suas inerentes misérias, do que um simples comando, um imperativo ou uma ordem que se deve seguir simplesmente em contrapartida ao fato de já ter usufruído de tudo o que os princípios permitem no campo da subjetividade. O dever principiológico, em sua tessitura ontológica fundamental, vai querer dizer, e deveras pressupõe, um estado anterior ao objeto do dever, porquanto consiste no ato de colocar-se em movimento, de mostrar-se no reconhecimento e na compreensão do outro, enquanto um ímpeto volitivo que afeta tão-só os com este optam; nunca é uma obrigação ou uma ordem; não há coerção.
E é aí, justamente aí, prezado leitor, que os princípios essenciais nos transmitem, pelo ensinamento hermenêutico primordial, a origem mais sublime, a doce faceta da caridade humana. Porque o dever principiológico respeita muito mais à entrega do que a resignação. Se se pensasse por tais vias, aliás, seria do entendimento comum que, por exemplo, os direitos humanos, nas situações limites coevas às tragédias humanas e da humanidade, são nuclearmente mais próximos da caridade, da entrega, da abnegação do que propriamente próximos da vingança, da usurpação desmedida de direitos fundamentais; afinal, da esperança que, de um modo geral, a vaidade oriunda do trágico busca solapar e extirpar daqueles, sobretal, ancorados na idêntica esguelha que nós mesmos, enquanto juízes arbitrários em razão da dor e do desespero.
O ato da caridade surge, então, com esta reviravolta; nada há de externo ou de marginal – o princípio é humano, bem como seu direito e dever; são lados de um mesmo rosto, a ganharem a dadibilidade, no agir do mundo da vida, por um ato espontâneo, malgrado importantíssimo, algo sublime que já nos fora ensinado há tempos, como que Cristo no ensinamento, “Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mt. 5:39).
No Estado de Princípios somos levados a concluir que o eu, enquanto dimensão de autorreferência da pessoa em relação ao Direito, traduz a ideia de uma tal liberdade de viver consoante o ímpeto situado de sua dignidade, ao passo que o tu, enquanto dimensão trans-referente do eu-tu, é o dever de reconhecer ao outro, similar e formalmente, as prerrogativas da liberdade já detidas na consciência individual. Cuida de um traço característico pré-político do dever principiológico. Por que não, afinal, o Direito não pode mobilizar os deveres principiológicos? Nem sempre, caro leitor, há que se exigir bilateralidade para um ato de compaixão, porquanto, com efeito, aquela só é de fato íntegra, na unilateralidade, tal qual uma doação pura, livre de encargos e sobrepesos.
Aprecio a solidariedade, v.g., no Direito das Famílias, mas aqui tratamos, em verdade, de um Direito Existencial das Famílias e não posso abrir mão de considerar a abnegação em favor do outro, apesar de todas as circunstâncias, como uma oportunidade concreta de efetivação dos princípios essenciais, dos direitos fundamentais, no fundo, da compaixão e da caridade – caridade da entrega, a caridade do outro.
Que tão mais benéfica seria a decisão de um juiz tal de permitir que os filhos, acionados na justiça por seu velho pai, muito embora não tenha tido este qualquer relação afetiva ou de cuidados materiais com aqueles, arcassem com seus alimentos, afugentando a interpretação restritiva da solidariedade, como se dependesse apenas de uma contraprestação. Solidariedade não é negócio, não tem nada de comutativo! Perguntem aos salesianos, perguntem à Dom Bosco se por acaso esperava algo dos jovens que lho entusiasmavam à vocação! Perguntem-no, afinal de contas, se um jovem qualquer, que lhe tivesse escarrado na face, não o teria, por bem da solidariedade, da compaixão e da caridade, tomado pelos braços, lhe dado o que comer, o que vestir, o que brincar, o que sonhar – lhe dado um abraço, apesar de tudo, porque, enfim, o tudo não é absolutamente nada para quem busca a compreensão da entrega. Mas não perguntem apenas para os santos, perguntem para a gente, a gente comum, gente de qualquer lugar, que certamente encontrar-se-ão variados exemplos, infinitos exemplos, de que à solidariedade não correspondem os produtos da exação de César!
Ei-lo, um modelo pós-convencional que na espécie ora se acha vertido ao Direito Existencial das Famílias, mas por que não noutros tantos ramos e vielas da regência jurídica? Que viva o bastante para ver o Direito das Famílias assumir o ônus idiossincrático dos princípios essenciais que lho dão suporte e guarida; que o transformam em Direito Existencial! Porque não há neste mundo, nem no próximo, direito de princípio que não principie, ipso facto, de dever de princípio. Só ao que é meramente dado é conferido o louro irretorquível do ócio, da espera. Nós, do contrário, devemos persistir na pesquisa, redescobrir o dito, burlar as defesas do não-dito. Porque, caro leitor, já se disse: “Não há coisa oculta que não haja de manifestar-se, nem coisa escondida que não haja de saber-se e vir à luz” (Lc., 8, 16).
[1] Cf. BRAGA, Luiz Felipe Nobre. Metapoesia. Curitiba: Protexto, 2011, passim.