O processo

- ou como o Brasil atual poderia ser a pátria de Franz Kafka.

26/04/2014 às 14:23
Leia nesta página:

Texto literário ironizando os absurdos nossos de cada dia que, como advogados, vemos nas repartições públicas brasileiras.

Há vários dias uma folha seca de palmeira balança graciosamente num fio no final do calçadão da Rua Antonio Agu, próximo à esquina desta com a Rua Marechal Rondon, Osasco, SP. A foto da mesma pode ser vista aqui.

Passo pela cena sempre que desço o calçadão em direção a estação de trem ou ao Shopping. Sei como funciona a administração pública e, portanto, já conclui que ela ficará onde está até ser removida dali por um vendaval.

Se um comerciante pedir à prefeitura para retirar a mesma, um processo administrativo será aberto. Autuado o procedimento, o chefe da Secretaria que recebeu a reclamação eventualmente a encaminhará para outra Secretaria. Caso chegue a Secretaria correta após circular durante algum tempo, o processo será remetido a Secretaria de Negócios Jurídicos para parecer.

Suponho que um dos vetustos procuradores do município eventualmente dirá, usando linguagem técnica, que a palmeira foi plantada pelo Município. Portanto, a prefeitura teria o dever de limpar o calçadão caso a folha caísse no chão. Mas como ela está pendurado num fio, a competência para removê-la é da Eletropaulo, que detém os direitos sobre a rede elétrica e deve cuidar da mesma. O processo será arquivado após a intimação do cidadão que o iniciou.

Inconformado, nosso cidadão hipotético poderá fazer duas coisas: desistir ou reclamar na Eletropaulo, onde um novo processo será aberto. Após autuação e verificação das plantas elétricas do local, o funcionário da companhia elétrica eventualmente dirá que o fio em questão provavelmente pertence a Telefonica, recusando-se a realizar procedimentos num cabo que não pertence a Eletropaulo para não afrontar a competência de outra companhia. O cidadão poderá reclamar à Telefônica, mas correrá ainda o risco desta dizer que aquele cabo não é de telefone e sim de uma empresa de TV a cabo.

Conclusão: a folha de palmeira ficará plantada no fio por um bom tempo, a menos que o próprio cidadão coloque uma escada no local para a remover. Se ele fazer isto pode acabar sendo preso por policiais municipais que fazem a ronda pelo local. Ele será então conduzido de maneira bastante rude até a Delegacia mais próxima. E então o escrivão começará a lavrar o fragrante, mas terá que interromper seu trabalho para perguntar ao Delegado quem é a vítima naquele caso.

Saindo entediado de sua sala, o Delegado vem pessoalmente acompanhar a ocorrência. O escrivão lhe narra o que disseram os policiais municipais que efetuaram a prisão e o Delegado pergunta aos mesmos de quem é o fio. Eles não sabem responder. A mesma pergunta é feita ao suspeito e ele responde que a Prefeitura disse que é da Eletropaulo, a Eletropaulo disse que é da Telefonica, a Telefonica disse que é de uma empesa de TV a cabo, mas como não sei qual é a TV a cabo resolvi tirar pessoalmente aquela merda do fio na frente de minha loja.

O Delegado fica irritado com o linguajar do cidadão e o autua por desacato a autoridade com uso de palavrão. Depois, consulta seus códigos empoeirados e manda o escrivão colocar na ocorrência que a vítima da outra conduta criminosa do suspeito é indeterminada. Feito isto, o Delegado pergunta se aos policiais municipais se o réu foi preso antes ou depois de retirar a folha do fio. Eles respondem que ele estava com a mão na massa, ou seja, com a mão na folha quando recebeu o “alto lá cidadão”. Crime de dano tentado, dita o Delegado para o escrivão, que pergunta se o crime é de dano contra patrimônio público ou privado. O Delegado fica irritado e diz que quem terá que detalhar isto é o promotor, pois não se sabe ainda de quem é o fio onde a folha estava pendurada.

Caso encerrado? Não. Esta novela só acabaria depois que o promotor pedisse o arquivamento do caso ou denunciasse o réu após várias diligências para determinar quem foi a vítima do crime. Provavelmente o Inquérito ficaria balançando entre a Delegacia e o Fórum enquanto a folha de palmeira balançaria no fio até finalmente cair no chão por causas naturais impedindo a reconstituição do crime no local dos fatos.

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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