1. A “separação” dos poderes
O autor inicia destacando que a separação dos poderes constitui um dos mitos mais eficazes do estado liberal, coroado no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, de que “qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição”.
Ressalta também que a “separação dos poderes” é, em Montesquieu, um mecanismo imediatamente voltado à promoção da liberdade do indivíduo; para os federalistas norte-americanos, diversamente, ela está imediatamente voltada à otimização do desempenho das funções do Estado, fundando-se no princípio da divisão de trabalho.
Para o autor, Aristóteles ensaia princípios análogos àqueles sobre os quais, posteriormente, se apóia a doutrina do equilíbrio entre os poderes, ao afirmar a existência, no governo, de três partes. Aristóteles, creio seja assim, está imediatamente atento às funções, e não aos poderes do Estado.
Afirma ainda o autor em comento que Locke discorre no capítulo XII de sua obra, sobre os Poderes Executivo, Legislativo e Federativo. E continua Locke, sobre este último: “Aí se contém, portanto, o poder de guerra e de paz, de ligas e alianças, e todas as transações com todas as pessoas e comunidades estranhas à sociedade, podendo-se chamar “federativo”, se assim quiserem”.
Nas palavras de Locke, o Poder Executivo compreende a execução das leis naturais da sociedade, dentro dos seus limites, com relação a todos que a ela pertencem. O Poder Federativo, a gestão de segurança e do interesse do público fora dela. O Poder Legislativo é o que tem o direito de estabelecer como se deverá utilizar a força da comunidade no sentido da preservação dela própria e de seus membros.
O autor destaca que no pensamento de Locke surge perfeitamente delineado o princípio da separação dos poderes. De toda sorte, observa-se que, embora visualize três tipos de poder, a separação que surge como conveniente e viável é a que se operaria entre o Legislativo, de um lado, e o Executivo e o Federativo, de outro. O que Locke propõe é uma separação dual – e não tríplice – entre os poderes que descreve.
Para Montesquieu tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse os três poderes que idealizou: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes e as divergências dos indivíduos. É certo, todavia, que Montesquieu não sustenta a impenetrabilidade, um pelos outros, dos poderes que refere.
O autor frisa que na construção do pensamento de Montesquieu, o fato que não se cogita uma efetiva separação de poderes, mas sim uma distinção entre eles, que, não obstante, devem atuar em clima de equilíbrio.
Da exposição de Montesquieu, no entender do autor, importa enfatizar que resulta a distinção entre Poderes Executivo e Legislativo, de um lado, e função executiva e legislativa, de outro. Para ele, o Poder Executivo deve estar dotado de funções executivas e – pela titularidade da faculdade de impedir (poder de veto) – também de parcela das funções legislativas. Da mesma forma, entende deva o Poder Legislativo, em casos excepcionais, estar dotado de funções jurisdicionais.
O autor classifica as formas de intervenção do Estado no domínio econômico, distinguindo: i) a intervenção por absorção ou participação; ii) a intervenção por direção, e iii) a intervenção por indução. A atuação interventiva por direção é a parte exercida mediante a dinamização, por órgãos e entidades da Administração, de atividade normativa cujo exercício lhes tenha sido autorizado pela lei.
O autor ensina ainda que, segundo von Ihering, em sua teoria organicista, o direito necessita, como todo organismo vivo, estar em constante mutação, impondo-se a superação do descompasso existente entre o ritmo de evolução das realidades sociais e a velocidade de transformação da ordem jurídica.
Á esta potestade normativa através da qual essas normas são geradas, dentro de padrões de dinamismo e flexibilidade adequados à realidade, é que o autor denomina de capacidade normativa de conjuntura. No exercício da capacidade normativa de conjuntura, nada mais faz a Administração senão atender às demandas do sistema econômico, provendo a fluência da circulação econômica e financeira.
O autor recorda também que Montesquieu, além de jamais ter cogitado de uma efetiva separação dos poderes, na verdade enuncia a moderação entre eles como divisão dos poderes entre as potências e a limitação ou moderação das pretensões de uma potência pelo poder das outras; daí porque, como observa Althusser, a “separação dos poderes” não passa da divisão ponderada do poder entre potências determinadas: o rei, a nobreza e o “povo”.
O autor afirma também que pela análise da obra de Montesquieu pode-se concluir que, em rigor, ele nos coloca diante de dois poderes, o Executivo e o Legislativo, o que leva a afirmar, no capítulo XXVII do livro XIX de O espírito das leis, que a Constituição que concebe não prevê senão “dois poderes visíveis – o Legislativo e o Executivo”. Montesquieu não considerava o poder de julgar como um poder no sentido próprio, mas, “por assim dizer, invisível e nulo”.
O autor refere-se ainda a um novo poder, que já existia à época da formulação de Montesquieu e que existe até hoje, apesar de não se dar importância, que é o poder (função) empalmado pelo Estado, de implementar políticas públicas.
2. Poder e função
O autor inicia sua exposição destacando a distinção existente entre poder e função. A classificação mais frequentemente adotada dessas funções, é a que concerne aos ofícios ou às autoridades que as exercem. Trata-se da classificação que se chama orgânica ou institucional. Segundo ela, tais funções são a legislativa, a exectiva e a jurisdicional.
Se, porém, pretendermos classificá-las segundo o critério material, teremos a função normativa – de produção das normas jurídicas (= textos normativos); a função administrativa – de execução das normas jurídicas; a função jurisdicional – de aplicação das normas jurídicas.
Para o autor o poder é expressão de uma capacitação para efetivamente realizar para efetivamente realizar ou impor a realização de um determinado fim. Nesse sentido é que Alessi menciona poder estatal: o poder, no ordenamento estatal, se traduz em uma função – mas a idéia de função envolve a consideração de poder desde o seu aspecto material. Fixadas estas noções, verificamos que na menção aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário estamos a referir centros ativos de funções – da função legislativa, da função executiva e da função jurisdicional. Essa classificação decorre da aplicação de um critério subjetivo; estão elas assim alinhadas não em razão da consideração de seus aspectos materiais.
O autor ensina: entenda-se por função estatal a expressão do poder estatal, enquanto preordenado às finalidades de interesse coletivo e objeto de um dever jurídico – tomada a expressão poder estatal, no seu aspecto material.
Por fim, o autor, afastando o critério tradicional, fixa a seguinte classificação para os poderes (funções) estatais:
i)função normativa – de produção de normas jurídicas;
ii)ii) função administrativa – de execução das normas jurídicas;
iii)função jurisdicional – de aplicação das normas jurídicas.
3. Norma jurídica
O autor inicia a exposição sobre este tema afirmando que a função normativa supõe a colocação de duas premissas: 1ª) a norma jurídica constitui um elemento essencial do ordenamento jurídico; 2ª) a norma jurídica consubstancia inovação de preceito primário no ordenamento jurídico.
Na seqüência o autor se preocupa em ter bem definido a noção de ordenamento jurídico, explicando que esta é geralmente fixada na afirmação de que o conjunto das normas jurídicas, consideradas umas em relação às outras, o constitui.
Diante destas breves considerações o autor conceitua norma jurídica como o preceito, abstrato, genérico e inovador – tendente a regular o comportamento social de sujeitos associados – que se integra no ordenamento jurídico. Outra característica da norma jurídica, como enfatiza Alessi, além do fato de não poder ser considerada de forma isolada, mas em um complexos de outras normas relacionadas entre si, é a de constituir um preceito primário, no sentido de que se impõe por força própria, autônoma.
E continua o autor, afirmando que os ordenamentos jurídicos são referidos como primários porque se impõem, aos grupos sociais a que respeitam, por virtude própria, isto é, por força primária – tal como ocorre com as normas. Assim, se o caráter inovador da norma a peculiariza, seus reflexos, em termos de inovação – para que existam como tais -, penetram o próprio ordenamento. Por isso que a norma configura inovação no ordenamento jurídico e, daí, é de ser definida como preceito primário. A característica da inovação está subsumida na primariedade da norma.
O autor assevera que por função normativa deve entender-se aquela de emanar estatuições primárias – isto é, operantes por força própria – contendo preceitos abstratos. A função normativa, como demonstra o autor, adotando a exposição de Alessi, não se confunde com a função legislativa, uma vez que aquela é mais ampla, abrangendo a função regulamentar e a função regimental.
4. Função normativa e função legislativa
Aos órgãos que constituem o Poder Legislativo resulta confiada a tarefa de emanar estatuições primárias, isto é, que valem por força própria. Mas, segundo Alessi, ao Poder Legislativo está atribuída também a emanação de certos atos que não estão efetivamente voltados à integração do ordenamento jurídico, albergando, portanto, diverso conteúdo e diversa finalidade. Cumpre mencionar, neste passo, os atos legislativos que se refere como lei em sentido apenas formal. Trata-se de estatuições primárias, na medidas em que emanadas do Poder Legislativo, ainda que sem conteúdo normativo; leis, embora não possam ser caracterizadas como normas jurídicas.
O autor busca em Alessi a distinção entre lei e norma. Para ele, norma seria todo preceito expresso mediante estatuições primárias, ao passo que lei é toda estatuição, embora carente de conteúdo normativo, expressa, necessariamente com valor de estatuição primária, pelos órgãos legislativos ou por outros órgãos delegados daqueles. A lei não contém necessariamente uma norma.
A partir desta exposição de Alessi, é possível referir-se à função legislativa como aquela de emanar estatuições primárias, geralmente – mas não necessariamente – com conteúdo normativo, sob a forma de lei.
Desta forma, o autor conclui que a distinção entre função normativa e função legislativa impõe a manipulação de critérios distintos: a noção de função normativa pode ser alinhada desde a consideração de critério material; a de função legislativa apenas se torna equacionável na consideração do critério formal. O autor, por fim, assevera que poderemos (e deveremos) libertarmos da forma tradicional de classificação e adotarmos a perspectiva material, donde a seguinte taxionomia: função normativa – a de produção de normas jurídicas (= textos normativos); função administrativa – a de execução das normas jurídicas; função jurisdicional – a de aplicação das normas jurídicas.
O autor considera que um crítico menos atento poderia sustentar que o próprio Alessi, ao referi a função legislativa, dá a entender que, aos órgão do Poder Legislativo estando confiada a tarefa suprema de construir (integrar) o ordenamento jurídico, mediante a emanação de estatuições primárias, a eles – órgãos do Poder Legislativo – incumbiria o exercício da função normativa; pelo quê, em conseqüência, o exercício da função normativa pelo Executivo dar-se-ia em virtude de delegação. Não é esse o seu entendimento (de Alessi) como se observa do exame de sua exposição sobre os regulamentos. Os regulamentos são estatuições primárias ainda que não emanados de um poder originário. Por isso se apresentam como derivados, no sentido de que devem fundar-se sobre uma atribuição de poder normativo contida explícita ou implicitamente na Constituição ou em uma lei formal.
Em uma tentativa de conciliação de critérios, o autor aduz que a função normativa (material) compreende a função legislativa e a função regulamentar (institucionais) – mais a função regimental, se considerarmos a normatividade emanada do Poder Judiciário.
Sobre este ponto, conclui o autor que teremos que entender, efetivamente, que na atribuição de função normativa (regulamentar) ao executivo não há derrogação dele, visto como aí não decorre delegação de função legislativa, uma vez que se trata de função que lhe é própria.
5. Os regulamentos e a legalidade no direito brasileiro
Segundo autor, apenas cabe referirmos a delegação de função legislativa quando o Executivo a desempenhe (ela, função legislativa, como ocorre nas hipóteses dos arts. 62 e 68 da Constituição de 1988).
O autor ensina que a maioria dos nossos publicistas classifica os regulamentos em quatro tipos: i) os regulamentos executivos (ou de execução); ii) os regulamentos delegados; iii) regulamentos autônomos, e iv) regulamentos de urgência ou necessidade. A doutrina nacional sustenta que, entrenós, o sistema constitucional vigente só admite a existência dos regulamentos de execução. Não é este, porém, o entendimento do autor, que no contexto desta exposição, tratará apenas dos três primeiros (acima listados), uma vez que os considera existentes ou possíveis de existir no ordenamento jurídico brasileiro, excluindo, então, apenas os regulamentos de urgência e necessidade. Quanto a estes três tipos de regulamentos, o autor assim os classifica, segundo suas características peculiares:
i) regulamentos executivos ou de execução – são os que decorrendo de atribuição do exercício de função normativa explícita no texto constitucional (art. 84, IV, in fine), destinam-se ao desenvolvimento da lei, no sentido de deduzir os diversos comandos nela já virtualmente abrigados;
ii) regulamentos autorizados[1] – são os que, decorrendo de atribuição do exercício de função normativa explícita em ato legislativo, importam o exercício pleno daquela função – nos limites da atribuição – pelo Executivo, inclusive coma criação de obrigação de fazer ou deixar de fazer alguma coisa;
iii) regulamentos autônomos ou independentes – são os que, decorrendo de atribuição do exercício de função normativa implícita no texto constitucional, importam o exercício daquela função pelo Executivo para o fim de viabilizar a atuação, dele, no desenvolvimento de função administrativa de sua competência; envolvem, quando necessário, inclusive a criação de obrigação de fazer ou deixar de fazer alguma coisa.
6. As “leis-medida”
Sobre esta tema o autor ressalta que a lei torna-se vaga nos seus enunciados, imprecisa nos seus pressupostos de aplicação e elástica em sua determinação; de outro lado, contudo, passa a disciplinar diretamente interesses de segundo grau, mostrando-se imediata e concreta tal qual um procedimento administrativo especial. Na primeira hipótese, a lei se realiza através da prática de um ato administrativo; na segunda, é, em s mesma, um ato administrativo especial.
O autor recorda que Forsthoff observa que a fronteira entre ação administrativa e ação legislativa desaparece quando (i) o Legislativo habilita o Executivo a legislar, quando (ii) o legislador passa à ação e não edita mais regras abstratas e gerais, desenvolvendo medidas de execução, e quando (iii) o legislador se abstém de qualquer regulamentação, deixando tudo, em relação a determinada matéria, à liberdade da Administração. Daí operar-se, modernamente, o declínio do conceito clássico de lei: o legislador não se limita mais a editar comandos gerais e abstratos; a aparência da generalidade de uma lei é só uma questão de formulação lingüística.
Para o autor as leis-medida configuram ato administrativo apenas completável por agente da Administração, mas trazendo em si mesmas o resultado específico pretendido ao qual se dirigem. Daí por que são leis apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material.
Por fim, o autor destaca que a interpenetração de funções deixa bem evidenciada, neste passo, a face real da exposição de Montesquieu, atinente ao equilíbrio e não à separação de poderes.
7. Bibliografia
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
[1] O autor prefere chamar de regulamentos autorizados o que a maior parte da doutrina denomina de regulamentos delegados. Isso porque, segundo ele, não ocorre nenhuma delegação de função legislativa ao executivo, mas apenas uma complementação da lei regulamentada. Nas palavras do autor: “...o que se atribui ao Executivo é o exercício de função normativa, e não de função legislativa; logo, não há, no caso, qualquer delegação”.