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A prevenção e solução de litígios internacionais no direito penal internacional:

fundamentos, histórico e estabelecimento de uma corte penal internacional (Tratado de Roma, 1998)

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01/03/2002 às 00:00
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Capítulo III: Bases para o estabelecimento de uma corte penal internacional:
O direito penal internacional

1. O problema de um direito penal internacional [40].

De que trata, afinal, o direito penal internacional? Seria um ramo do direito internacional clássico ou simples aplicação extraterritorial de direito interno dos Estados? Existe um direito penal internacional?

Segundo SCHWARZENBERGER, o direto penal internacional, que trata dos chamados crimes internacionais cometidos por particulares, desenvolveu-se em sua técnica a partir dos conceitos e princípios de direito internacional clássico (law of nations), entre os quais se destacam o princípio da soberania, do qual decorrem, por exemplo, os mencionados princípios limitadores da competência internacional dos Estados (i.e. segurança, universalidade, nacionalidade, territorialidade e personalidade passiva).

Para os estudiosos que reconhecem a origem clássica do direito penal internacional, este pode ser considerado sob seis diferentes significados: como reflexo do escopo territorial do direito penal interno; como direito penal interno derivado de normas internacionais; como direito penal interno autorizado por lei internacional; como direito penal interno comum a todas as nações civilizadas; como cooperação internacional na administração da justiça penal interna e como direito penal internacional no sentido material da palavra.

Se entendermos o direito penal internacional como reflexo do escopo territorial do direito penal interno, então devemos considerá-lo como verdadeiro nascedouro de conflitos internacionais. De fato, é regra universalmente aceita a competência legal internacional do Estado para conhecer, processar e julgar os crimes cometidos em seu território. Contudo, tal como já tivemos a oportunidade de verificar, estas mesmas leis podem estender a competência do Estado sobre crimes cometidos por nacionais ou estrangeiros situados no exterior. É neste ponto que surgem os conflitos de competência concorrente, regra reconhecida no direito internacional.

A solução do litígio que então surge está na aplicação de princípios de direito internacional clássico de limitação da competência legal internacional dos Estados, bem como na negociação e conclusão de tratados internacionais onde estejam claramenta previstas os determinantes da competência legal internacional de cada um dos Estados envolvidos no conflito.

Como direito penal interno derivado de normas internacionais, o direito penal internacional surge de obrigações acordadas em tratados internacionais ou de deveres dos Estados decorrentes do direito internacional consuetudinário. Este é o caso do crime de pirataria, considerado o mais antigo ato reconhecido internacionalmente como crime, antes pelo direito consuetudinário e mais tarde por tratados internacionais [41].

Na concepção do direito penal internacional como um direito interno autorizado internacionalmente, temos duas categorias de crimes: a pirataria ius gentium e os crimes de guerra. Todo Estado tem o dever de combater a pitataria em seu território, dever que também se estende aos altos mares, em razão da aplicação da noção de ius gentium de que o mar é res comunes. No que se refere aos crimes de guerra, todo Estado deve punir toda e qualquer infração à regra de manutenção do bem-estar e paz internacionais. Nestes dois casos, o direito penal interno para persecução e punição dos violadores destes princípios surge por exigência do direito internacional, do direito penal internacional.

Em matéria de cooperação internacional na administração da justiça penal interna dos Estados, o quarto significado atribuído ao direito penal internacional, o já mencionado conflito de competências que frequentemente surge entre Estados, torna-se um dos principais fatores de impunidade e, consequentemente, de conflitos internacionais. Não são incomuns os casos que se tem a condenação de um indivíduo num Estado e sua absolvição por outro. Boa parte destes conflitos podem ser minimizados, com a predeterminação de regras de competência e jurisdição entre Estados, regras que podem e comumente ganham corpo em tratados de cooperação judicial.

Finalmente, no sentido material da palavra, direito penal internacional comporta todos os atos criminosos que atingem diretamente a sociedade internacional. É disciplina que tem origem no direito internacional clássico costumeiro, do qual se extrai uma clara e universal repulsa por atos reconhecidamente criminosos.

Em resumo, cada um dos seis significados atribuídos ao direito penal internacional revelam, de forma clara e objetiva, problemas que tocam menos ao reconhecimento e mais à efetividade do direito, a qual se traduz pela persecução e efetiva punição dos criminosos. Enquanto não se resolverem estas questões sobre efetividade, sobre procedimento penal, jamais se terá um rígido controle preventivo e dirimente sobre os litígios internacionais concernentes ao direito penal internacional. Mas, existe um direito penal internacional? Não há dúvidas quanto à relação direta entre o direito penal internacional e o direito internacional clássico. Os crimes internacionais já reconhecidos em tratados - tais como o genocídio, o sequestro de aeronaves, crimes de guerra, de discriminação racial, terrorismo - nada mais são que a consolidação de direito internacional costumeiro há muito tempo reconhecido como obrigatório por todas as nações.

Dispostos em tratados internacionais, os crimes internacionais ganham especial tratamento da comunidade internacional, especialmente quanto à prevenção e repressão. A primeira destas ações é realizada no âmbito do direito interno através da incorporação das regras do tratado aos ordenamentos nacionais; a segunda, além da atividade interna do Estado, conta com órgãos intergovernamentais especialmente criados para a repressão do crime, tal como a Interpol (International Criminal Police Organization).

Se existem crimes reconhecidamente internacionais, se existe um aparelhamento para sua prevenção e repressão, não se pode negar a existência de um direito penal internacional, ainda que este seja concebido, tal como declinamos há momentos, como um reflexo do direito penal interno dos Estados.

Evidência maior da existência de um direito penal internacional podem ser colhidas a partir do histórico das tentativas de estabelecimento de uma corte penal internacional, as quais serão objeto de análise em nosso próximo capítulo.

2. Terminologia, distinção, objeto e conteúdo do direito penal internacional [42].

2.1. Terminologia.

A terminologia usada para determinar o objeto do direito penal internacional é resultado da convergência de duas diferentes disciplinas legais que vêm se desenvolvendo de forma distinta e independente, mas atuando de modo complementar. A primeira destas disciplinas abrange os aspectos de direito penal do direito internacional (direito penal substantivo); a segunda, os aspectos internacionais do direito penal interno dos Estados (i.e. efeitos extraterritoriais das leis, Código Penal Brasileiro, art. 7º). Assim, um estudo da primeira destas disciplinas revela que esta trata essencialmente de direito penal internacional substantivo ou de crimes internacionais; a segunda, de sua vez, dos efeitos extraterritoriais das leis internas dos Estados.

Da conjunção das duas disciplinas surge o direito penal internacional, fundado na seguinte perspectiva: há determinada conduta tipificada no direito internacional como criminosa (crime internacional tipificado por disposição convencional, consuetudinária ou por princípios gerais de direito abrigados pelo direito internacional), ao mesmo tempo que, no direito interno, ocorre a coincidência do tipo internacional com o tipo doméstico e a conseqüente aplicação da lei interna. Quando a aplicação da lei interna passa a considerar para fins de conhecimento, processamento e julgamento, direta ou indiretamente, o crime internacional, afloram seus efeitos extraterritoriais.

Noutra vertente, estabelecendo-se uma distinção entre o direito penal internacional e o direito internacional penal, pode-se afirmar que a terminologia atribuída ao direito internacional penal não nega seu vínculo direto com o direito internacional convencional, de caráter público, cujo desenvolvimento, principalmente na área de "Direitos Fundamentais do Homem", proporcionou a construção, com fundamentos teóricos e empíricos, de dispositivos que possibilitam a responsabilização do Estado por atos de violação daqueles direitos [43].

A despeito das celeumas acadêmicas sobre os "aspectos penais" dos Atos de Estado, se existe ou não impropriedade na terminologia adotada por alguns autores, é correto pensar que os Estados podem ser submetidos a uma corte internacional para responderem por atos lesivos, omissivos ou comissivos, atentatórios aos direitos fundamentais do homem, especialmente os de primeira geração (i.e. direito à vida, à personalidade). Um exemplo é a Corte Interamericana de Direitos Humanos, criada pela Convenção de São José da Costa Rica, e a Corte de Estrasburgo, com semelhante competência no âmbito da Comunidade Européia.

2.2. Distinção.

Algumas distinções entre direito penal internacional e direito internacional penal podem ser desde logo extraídas das próprias dintinções terminológicas apresentadas no tópico anterior, as quais podem se somar outras, que abrangem a própria aplicação de uma ou outra disciplina.

Em breve resumo, veja-se a tabela prática a seguir sobre as distinções entre direito penal internacional e direito internacional penal:

DIREITO PENAL INTERNACIONAL

DIREITO INTERNACIONAL PENAL

SUJEITO ATIVO

Indivíduo

Responsabilidade do Estado

SUJEITO PASSIVO

Indivíduo

Indivíduo

TRIBUNAL

Ad hoc (i.e. Nuremberg, Tokio, ex-Iugoslávia e Ruanda) e Tribunais Nacionais.

Corte Internacional de Direitos Humanos (Convenção de San José da Costa Rica); Corte Internacional de Estrasburgo (CE).

LEGITIMIDADE

ATIVA

Estados e outros órgãos com personalidade internacional

(exceto indivíduos)

Estados (modernamente tem se admitido indivíduos)

2.3. Objeto [44].

O objeto das prescrições normativas do direito penal internacional é delimitar as condutas específicas que se consideram atentatórias a um interesse social que transcende a órbita interna do Estado, cuja proteção necessita a aplicação de sanções impostas pelos Estados, através de uma atuação não somente a nível nacional, mas também internacional, coletiva e de cooperação.

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Segundo BASSIOUNI [45], existem 22 tipos de crimes internacionais: agressão, crimes de guerra, uso ilegal de armas, emprego ilegal de armas, crimes contra a humanidade, genocídio, discriminação racial, escravidão e crimes conexos, experimentos médico ilegais, pirataria, sequestro de aeronaves, uso de força contra pessoas internacionais protegidas, tomada de civis como reféns, tráfico de drogas, destruição ou roubo de tesouros nacionais, crimes contra o meio ambiente, roubo de material nuclear, uso ilegal dos correios, tráfico de publicações obscenas, interferência com cabos submarinos, falsificação ou contrafação de símbolos nacionais e o suborno de oficiais públicos estrangeiros.

A base legal de alguns destes tipos tem como fonte o direito consuetudinário e princípios gerais de direito, ao passo que outros já contam com previsão expressa em tratados internacionais.

A análise destes tipos e das convenções internacionais das quais foram extraídos (feita por BASSIOUNI) permite concluir que existem dez características penais que nelas se repetem com maior frequência: 1. reconhecimento explícito de que o ato é um crime internacional, ou um crime regulado por direito internacional, ou simplesmente um crime; 2.reconhecimento implícito da natureza penal de um ato pelo estabelecimento de um dever de proibir, prevenir, processar e punir; 3. criminalização de determinada conduta; 4. direito ou dever de processar criminosos; 5. dever ou direito de punir determinada conduta prescrita; 6. dever ou direito de extraditar; 7. dever ou direito de cooperar no processo e punição (inclusive assistência judicial em procedimentos penais); 8. estabelecimento de bases jurisdicionais penais (ou teoria de jurisdição penal ou prioridade em jurisdição penal); 9. referência à necessidade de estabelecimento de uma corte penal internacional; 10. eliminação da possibilidade de recursos a órgãos superiores; características presentes, inclusive, no Estatuto da Corte de Roma.

2.3.1. Sistemas de execução no direito penal internacional [46].

O direito penal internacional tem evoluído através de dois sistemas de execução: um direto outro indireto. O primeiro detém-se sobre a aplicação direta do lei internacional sobre o indivíduo, o que somente será possível a partir de uma corte internacional de controle direto e, conseqüentemente, de um aparato institucional judiciário. Contudo, a incapacidade da comunidade internacional para encontrar um consenso político na criação de uma corte internacional tem sido suprida pelo sistema de execução indireta, onde o Estado, e não o Direito Internacional, de acordo com normas internacionais, promove a proibição, prevenção, processamento e punição do criminoso.

De sua vez, o direito internacional penal tem como objeto a preservação de valores e princípios universalmente reconhecidos pelos Estados de atos praticados diretamente por Estados. Entre estes valores estão, por exemplo, os mencionados Direitos Fundamentais do Homem, que se identificam pela universalidade e pelo caráter absoluto de preservação da própria identidade do ser humano. Um Estado pode ser chamado a responder por atos atentatórios a direitos humanos (aniquilação de minorias, a exemplo do relativamente recente massacre dos curdos no Iraque) ou por omissão na repressão a estes crimes.

2.4. Conteúdo [47].

Como se disse, os aspectos penais do sistema de direito penal internacional compreende uma série de disposições internacionalmente estabelecidas por via consuetudinária, por princípios gerais de direito ou por tratados, incriminadores de determinada conduta. Seu conteúdo pode ser extraído a partir da regulação internacional de pelo menos, quatro matérias: 1. Controle de Guerra; 2. Regulamentação de conflitos armados; 3. Persecução de infrações das leis de guerra de sua iniciação e desenvolvimento; e 4. Delitos comuns de interesse internacional.

É importante destacar que o desenvolvimento das disposições integrantes de cada uma destas matérias tem sido progressivo e, de modo geral, tem seguido um modelo: o surgimento de um conjunto de obras doutrinárias que contituem base teórica mais específica, as quais, de sua vez, impulsionam a assunção de alguns compromissos internacionais, seguidos da formulação de proibições normativas específicas e a articulação de dispositivos sancionadores. Estas normas podem ser consolidadas em modelos ou projetos de convenções internacionais para estabelecimento de cortes penais internacionais, responsáveis pela persecução e punição de criminosos.

Para fins de an;alise no presente artigo, destacam-se entre aquelas quatro matérias de direito penal internacional os delitos atentatórios aos interesses comuns dos Estados.

3. Delitos comuns atentatórios de interesses dos Estados (crimes internacionais).

No âmbito das matérias objeto do direito penal internacional mencionadas no título anterior, BASSIOUNI [48] considera existirem duas formas básicas de tipificações penais, que resultam na identificação de crimes internacionais: tipificações penais destinadas ao Estado e as não destinadas ao Estado.

As tipificações destinadas aos Estados, geradas no âmbito das Nações Unidas, como obrigação internacional decorrente da própria Carta da ONU para a persecução e punição, no direito interno, de crimes universalmente reprováveis, tais como o genocídio, a segregação racial e a tortura.

Noutra vertente, as tipificações penais não destinadas aos Estados compreende o resultado da evolução progressiva nas obrigações, por via convencional entre os Estados, de processar e punir crimes como a pirataria aérea e apoderamento ilícito de aeronaves, escravidão, tráfico de mulheres e crianças, terrorismo e sequestro de pessoas internacionais protegidas; tipificações que também podem ser resultado da evolução progressiva nas obrigações por via consuetudinária, a exemplo do Convênio Internacional para Repressão de Circulação de Publicações Obscenas - 1923; do Convênio Internacional para Repressão de Competência Fraudulenta, abordando o dever de extradição; e do Convênio de Berna sobre envio de correspondência perigosa.

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Sobre o autor
Rodrigo Fernandes More

advogado, professor em São Paulo,mestre e doutor em direito internacional pela USP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORE, Rodrigo Fernandes. A prevenção e solução de litígios internacionais no direito penal internacional:: fundamentos, histórico e estabelecimento de uma corte penal internacional (Tratado de Roma, 1998). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2819. Acesso em: 7 mai. 2024.

Mais informações

Texto originalmente publicado em "Solução e Prevenção de Litígios Internacionais", v. 2, organizado por Araminta de Azevedo Mercadante e José Carlos de Magalhães, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 317.

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