A tutela penal da ordem econômica

06/05/2014 às 08:53
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Quando a tutela penal tem por objeto a ordem econômica, mostra-se imprescindível compreender as interações que o Estado pode empreender na realidade social e econômica.

A TUTELA PENAL DA ORDEM ECONÔMICA

 

1. Considerações iniciais

 

O presente estudo está inserido no âmbito do denominado Direito Penal Econômico. Estruturado sob dois enfoques, este artigo analisa, num primeiro momento, o conceito de “ordem econômica”, demarcando os seus contornos dentro do Estado Democrático de Direito brasileiro.

Uma vez delimitada a ordem econômica, esta passa a ser compreendida como um valor constitucional a ser protegido pelo Direito Penal, em outras palavras, como objeto de tutela pelas normas que compõem o ordenamento jurídico-penal. Dessa análise poderá ser visualizada a relação entre a intervenção do Estado na economia (regulação) e o bem jurídico tutelado pelo Direito Penal (ordem econômica).

 

2. O ESTADO E AS FORMAS DE INTERVENÇÃO NO DOMÍNIO ECONÔMICO

 

A intervenção do Estado nas relações sociais e econômicas vem se afirmando como um fenômeno observável na generalidade dos países. A necessidade da presença da figura estatal para intervir e orientar a direção dos mercados e da economia revelou-se indispensável no correr dos tempos.

Inicialmente, é preciso advertir que desde o surgimento do Estado moderno, a entidade estatal sempre esteve presente na realidade social. É comum afirmar-se que o Estado Liberal era caracterizado pela sua neutralidade e abstenção, não se admitindo a sua interferência nas relações privadas ou na “ordem natural” da economia.[1]A sua função residia, essencialmente, na produção do direito e na garantia da segurança.

Entretanto, a afirmação de que até o momento ¢intervencionista¢ o Estado limitava-se apenas à função de segurança (especialmente da propriedade) e produção das leis, não deve ser tomada em termos absolutos. Como observa EROS GRAU[2], “o Estado moderno nasce sob a vocação de atuar no campo econômico.” Assim, “passa por alterações, no tempo, apenas o seu modo de atuar, inicialmente voltado à constituição e à preservação do modo de produção social capitalista, posteriormente à substituição e compensação do mercado.”

Com efeito, com a passagem para o Estado Social, diante do esgotamento do modelo liberal-individualista, calcado na hiperautonomia privada, “revelou-se insuficiente garantia para a realização e proteção dos direitos e liberdades de todos os homens.”[3] As imperfeições do liberalismo, associadas à incapacidade de autorregulação dos mercados, conduziram à atribuição de novas funções ao Estado.[4]

As novas tarefas estatais acabam por constituírem-se na regulação do mercado por parte do Estado, como nos esclarece, mais uma vez, EROS GRAU[5]:

Evidente a inviabilidade do capitalismo liberal, o Estado, cuja penetração na esfera econômica já se manifestava na instituição do monopólio estatal da emissão da moeda – poder emissor –, na consagração do poder de polícia e, após, nas codificações, bem assim na ampliação na ampliação do escopo dos serviços públicos, assume nitidamente o papel de agente regulador da economia.

 

A intervenção do Estado no domínio econômico pode ser feita de forma indireta ou direta, conforme classificação hodierna. Pela primeira, o Estado exerce a sua competência legislativa e regulamentar para disciplinar o exercício de atividades econômicas, realizadas no âmbito privado e público, tendo como fundamento o artigo 174 da Constituição Federal.[6]

Por outro lado, a intervenção direta é “o desenvolvimento por meio de uma entidade administrativa de atividades de natureza econômica, em competição com os particulares ou mediante atuação exclusiva.”[7] A intervenção direta comporta duas vertentes, segundo MARÇAL JUSTEN FILHO[8], podendo configurar serviço público (art. 175, CF) ou atividade econômica propriamente dita (art. 173, CF).

Por fim, com base em MARÇAL JUSTEN FILHO, a regulação pode ser assim definida:

A regulação econômico-social consiste na atividade estatal de intervenção indireta sobre a conduta dos sujeitos públicos e privados, de modo permanente e sistemático, para implementar as políticas de governo e a realização dos direitos fundamentais.[9]

 

3. A ORDEM ECONÔMICA COMO BEM JURÍDICO PENAL

 

3.1. Aproximação ao conceito de ordem econômica

 

O conceito de “ordem econômica” é polissêmica e equívoca.[10]{C} Vital Moreira{C}[11] nos apresenta três sentidos diversos.

Em um primeiro, “é o modo de ser empírico de uma determinada economia concreta, não é conceito normativo ou de valor e exprime a realidade (...) do econômico como fato.”[12] Em um segundo significado, “designa o conjunto de todas as normas ou regras de conduta, qualquer que seja a sua natureza (jurídica, religiosa, moral, etc.), que regulam o comportamento dos sujeitos econômicos.”[13] Em um terceiro significado, representa “ordem jurídica da economia, sendo constituída pelo conjunto das regras jurídicas que regulam a vida econômica, isto é, a produção, distribuição, circulação e o consumo de bens.”[14]

A abordagem apresentada por EROS GRAU, que chama a atenção para a perniciosidade da expressão e o cuidado com a sua precisão, diferencia a ordem econômica como parcela da ordem jurídica (mundo do dever ser) e como a realidade econômica concreta (mundo do ser).[15]

 

3.2. A ordem econômica no Estado brasileiro

 

O Estado brasileiro, apresentado pela Constituição Federal como um Estado Democrático de Direito (art. 1º), revela uma forma estatal comprometida com a transformação social e econômica. Isso é evidenciado pelo conjunto de diretrizes, programas e fins, a serem realizados pelo Estado e pela sociedade, estampados no artigo 1º (trata dos fundamentos do Estado), no artigo 3º (objetivos) e no artigo 170 (ordem econômica). A Carta de 1988, portanto, é, indiscutivelmente, uma Constituição dirigente.[16]

A interpretação sistemática destes dispositivos reforça a ideia de que há uma congruência entre os fundamentos da ordem econômico-financeira e os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito[17]. Além disso, a previsão constitucional de uma “ordem econômica” (entendida como parcela da ordem jurídica[18]), marca uma transformação que afeta o direito, “operada no momento em que deixa de meramente prestar-se à harmonização de conflitos e à legitimação do poder, passando a funcionar como instrumento de implementação de políticas públicas.”[19]

Dessa forma, a Ordem Econômica e Financeira, constituída pelos princípios constitucionais que a informa, “compreende um núcleo valorativo (bem ou interesse) a ser juridicamente preservado; tornam-se, por meio de sua previsão constitucional, interesses jurídico-constitucionais.”[20] Assim, a “regular execução das respectivas políticas (cambial, fiscal, monetária etc.)” constitui o bem jurídico imediato.[21] Em arremate, destacam ANDREI Z. SCHMIDT e LUCIANO FELDENS[22]:

Nesse tom, tornam-se passíveis de sanção condutas atentatórias à regularidade na execução das políticas econômicas (...), cuja finalidade última coincide com os princípios e objetivos do Estado Democrático de Direito (arts. 1º e 3º da Constituição).

 

3.3. A tutela penal da ordem econômica e os crimes econômicos

 

Pelo que foi exposto nos itens anteriores, é fácil perceber que a regularidade da intervenção econômica pelo Estado, pela relevância na concretização da justiça social, pode ser valorada e constituir objeto de tutela pelo Direito Penal.

Neste caso, a legitimidade da intervenção penal, ao tutelar a ordem econômica, não quer simplesmente proteger um interesse específico do Estado (ou da Administração Pública), mas sim um interesse de toda a coletividade, revelando a natureza supraindividual do bem jurídico. Nesse sentido, esclarece ELA WIECKO “a ordem econômica (...) possui um caráter supraindividual e se destina a garantir um justo equilíbrio na produção, circulação e distribuição da riqueza entre os grupos sociais.”[23]

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Relacionado à “ordem econômica” está, pois, o conceito de crime econômico, entendido como “a infração penal que lesa ou põe em perigo a ordem econômica, assim considerada a regulação jurídica da intervenção estatal na economia de um país”[24] Com base em MUÑOZ CONDE, esclarece ELA WIECKO:

A ordem econômica não seria outra coisa senão a intervenção direta do Estado na relação econômica, como um sujeito de primeira ordem, impondo coativamente uma série de normas e planificando o comportamento dos distintos sujeitos econômicos [...] o objeto de proteção seria uma determinada forma de intervenção do Estado na economia, seja recolhendo impostos, seja disciplinando o mercado de capitais, as transações internacionais ou a formação de preços.

 

A ideia de crime econômico abrange diversas modalidades de delitos, variando conforme o posicionamento dos autores. Apesar disso, apresentamos o seguinte rol de crimes abrangidos pela categoria geral crimes econômicos[25]: a) crimes falimentares; b) crimes tributários; c) crimes de concorrência desleal; d) crimes contra as restrições à liberdade de comerciar (mercadorias proibidas, controle de abastecimento e controle de câmbio); e) crimes contra o consumidor.

4. Considerações finais

A intervenção do Estado no domínio econômico é uma atividade indispensável à realização da justiça social, tarefa assumida pelos Estados Democráticos de Direito, como o é o Estado brasileiro. Não é por acaso que o desenvolvimento nacional, a promoção do bem de todos e a consequente redução das desigualdades estão previstas nos artigos iniciais da Constituição.

A relevância dessa tarefa é tamanha que, em reforço, recebe a proteção (ou auxílio) do Direito Penal. Dessa forma, a tutela penal da ordem econômica nada mais significa que a criminalização de condutas que lesem (ou exponham a perigo) a regularidade da produção, circulação e consumo de bens e serviços, cuja natureza supraindividual resta evidente.

Referências bibliográficas

BATISTA, Nilo. Introdução critica ao direito penal brasileiro, 11ª ed, Rio de janeiro: Revan, 2007.

__________; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito Penal Brasileiro, 3ª ed, Rio de Janeiro: Revan, 2003.

CASTILHO, Ela Wiecko de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional: Lei 7.492, de 16/6/86. Belo Horizonte, 1998.

FORNAZARI JUNIOR, Milton. A legitimidade do crime de evasão de divisas como norma penal em branco e sua legislação integradora. Jus Navigandi, Teresina, ano 14n. 2131[2] maio [2009]. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12688>. Acesso em: 22. out. 2012.

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 1, 9ª ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal, 3ª ed, Rio de Janeiro: Forense, 2009.

RODRIGUES, Fabíola Emilin. Tutela penal ambiental: eficácia da norma penal em branco. Disponível em: http://www.sapientia.pucsp.br//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1676. Acessado em: 15/10/2012.

SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Tipicidade penal e sociedade de risco. São Paulo: Quartier Latin, 2006.

SCHMIDT, Andrei Zenkner. FELDENS, Luciano. O crime de evasão de divisas: a tutela penal do sistema financeiro nacional a perspectiva da política cambial brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

TIEDEMANN, Klaus. La ley penal em Blanco: concepto y cuestiones conexas. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan.-mar./2002, vol. 37.

ZAFFARONI, Eugenio Raul. BATISTA, Nilo. ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

 

 


{C}[1]{C} Eros Grau, p. 16.

{C}[2]{C} Idem, p. 17.

{C}[3]{C} Elías Diaz. Estado de Derecho y sociedad democrática, 1983, p. 39-40, apud Gilmar Ferreira Mendes, Curso..., p. 46.

[4] Eros Grau, op. cit., p. 20.

[5] Eros Grau, op. cit., p. 24.

[6] Marçal Justen Filho. Curso de direito administrativo. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 571.

[7] Idem, p. 572.

[8] Idem, p. 572.

[9] Ide, p. 562.

[10] Ela Wiecko V. de Castilho. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional :   lei n. 7.492, de 16 de junho de 1986. Belo Horizonte, MG :   Del Rey,   1998. P. 82.

[11] apud Ela Wiecko V. de Castilho, p. 82.

[12] Idem, p. 82.

[13] Idem, p. 82.

[14] Idem, p. 82.

[15] Op. cit., p. 173.

[16] Eros Grau, op. cit., p. 173.

[17] Andrei Z. Schmidt e Luciano Feldens, p. 6.

[18] Eros Grau diferencia a ordem econômica enquanto mundo do ser e enquanto mundo do ser. Em detalhes, op. cit., p. 68.

[19] Idem, p. 13.

[20] Andrei Z. Schmidt e Luciano Feldens, p. 7.

[21] Idem, p. 7.

[22] Idem, p. 7.

[23] Ela Wiecko, op. cit. P. 79.

[24] Ela Wiecko, op. cit., p. 70.

[25] Idem, p. 69.

Sobre o autor
Ricardo Bastelli

Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie. Especialista em Ciências Penais e Bacharel em Direito pela PUC-RS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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