Antecipação terapêutica de parto de feto anencéfalo à luz do princípio da legalidade e da dignidade humana

14/05/2014 às 11:24
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Aplicação principiológica no caso de antecipação terapêutica de parto de feto anencéfalo

  1. DO ACÓRDÃO

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 54

DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO

REQTE.(S) :CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS

                      TRABALHADORES NA SAÚDE - CNTS

ADV.(A/S) :LUÍS ROBERTO BARROSO

INTDO.(A/S) :PRESIDENTE DA REPÚBLICA

ADV.(A/S):ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

          ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações.

           FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.

A C Ó R D Ã O

          Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em julgar procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, nos termos do voto do relator e por maioria, em sessão presidida pelo Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas.

Brasília, 12 de abril de 2012.

MINISTRO MARCO AURÉLIO – RELATOR

  1. DA ANÁLISE

2.1 A controvérsia

          Alega a parte impetrante, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, que os direitos fundamentais lesionados no caso em tela seriam o princípio da dignidade humana, da legalidade, da autonomia da vontade e outros relacionados à saúde. O Poder Público estaria lesionando esses direitos ao fazer leitura inadequada dos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal, inserindo a antecipação terapêutica no caso de feto anencéfalo no corpo desses artigos.

         Retratado por doutrinadores enquanto direito supremo, universal e inderrogável, o direito à vida constitui condição para exercício de outros direitos. No caso em questão, o confronto reside entre os princípios da legalidade, autonomia da vontade e dignidade humana da gestante e o direito à vida do feto. No caso de gestação de feto anencéfalo, porém, a proteção do direito à vida não se aplica, já que este detém uma vida biologicamente inviável.

        Há prevalência doutrinária no sentido de que o conceito de vida estaria atrelado à atividade encefálica. No caso de feto anencéfalo, a anomalia grave acarreta ausência e/ou deficiência nos hemisférios cerebrais, inexistindo propriamente vida.

 

  1. O princípio do devido processo legal

        No que tange a este princípio, cumpre apontar que o juízo de proporcionalidade não é previsto no ordenamento brasileiro. Porém, advém do princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV), de sua dimensão substantiva, isto é da razoabilidade. A dimensão formal, por sua vez, diz respeito à regularidade da abertura do processo formal.

        Tem-se que:

Esta garantia teve origem na Inglaterra, com um aspecto meramente formal (“procedural due process”, segundo o qual não é possível a condenação de alguém sem o devido processo legal) e se desenvolveu nos Estados Unidos com uma aspecto muito mais substantivo ou material (“substantive due process of law”) para permitir ao Judiciário investigar o próprio mérito dos atos do poder público, a fim de verificar se esses atos são razoáveis, ou seja, se estão conforme a razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia (CUNHA JÚNIOR, 2011, p. 227).

 

            Isso posto, para além de se analisar se o feto teve o direito ao contraditório respeitado – corrente dos que defendem a supremacia do direito à vida dos anencéfalos –, é necessário fazer um juízo de adequação. Perguntando-se qual direito deve prevalecer na coalisão entre o direito à vida, atribuído ao feto, e os direitos à saúde, liberdade, autonomia da vontade, dignidade da pessoa humana e proibição da tortura da gesante. É preciso que haja uma valoração do caso concreto,

 

  1. O princípio da legalidade

         Sendo o Princípio da Legalidade expressão maior do Estado Democrático de Direito, segundo Luis Roberto Barrroso, tem-se que:

"O Estado de Direito, desde suas origens históricas, evolve associado ao princípio da legalidade, ao primado da lei, idealmente concebida como ‘expressão da vontade geral institucionalizada’".(Luis Roberto Barroso, Princípio da Legalidade, Delegações Legislativas, Poder Regulamentar, Repartição Constitucional das Competências Legislativas, artigo extraído do siteInfojus, www.infojus.com.br ).

 

                Por sua vez, acrescenta Maria Sylvia Zanella de Pietro que:

"Este princípio, juntamente com o controle da administração pelo poder judiciário, nasceu com o Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos individuais. Isto porque a lei, ao mesmo tempo que os define, estabelece também os limites da atuação administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercícioDescrição: http://cdncache-a.akamaihd.net/items/it/img/arrow-10x10.png de tais direitos em benefício da coletividade" (Maria Sylvia Zanella di Pietro, Direito Administrativo, 7ª edição, Atlas, página 61).

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          Assim, ainda que em benefício da coletividade, a restrição de direitos só é admitida se prevista em lei – conforme consta no texto constitucional, em seu art. 5º, II, da CF.


        Na ADPF 54, a parte arguente alega que este princípio estaria sendo afrontado à medida que não é subsumível a interrupção da gravidez em caso de anencefalia no cerne das hipóteses de aborto. As imposições proibitivas, no caso, pois, seriam uma afronta à liberdade da mulher – ao ser obrigação não prevista em lei.

        Decorrente do Princípio da Legalidade, o Princípio da Reserva Legal é dito possuidor de maior severidade na preservação de direitos individuais e limitação do poder estatal sobre o cidadão. Nesse sentido, trata-se da limitação do poder estatal sobre a autonomia da vontade da gestante, que diante de uma gravidez sabidamente de alto risco, deve decidir sobre seu corpo.

 

  1. A dignidade da pessoa humana

        Segundo Rizzato Nunes,  

    "É ela, a dignidade, o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarda dos direitos individuais. A isonomia serve, é verdade, para o equilíbrio real, porém visando concretizar direito à dignidade. É a dignidade que dá a direção, o comando a ser considerado primeiramente pelo intérprete. Coloque-se, então, desde já que, após a soberania, aparece no Texto Constitucional à dignidade como fundamento da República brasileira."

           A parte requerente, no tangente à fundamentação, alega que haveria ofensa à dignidade da pessoa humana da gestante (art. 1º, III, CF), já que a aplicação de dispositivos referente a aborto no caso representaria imposição de sofrimento físico e moral à mulher, sujeita a risco e a inafastável morte do gestado, em situação equiparável à tortura.

          Conclui-se que impedir gestante de feto anencéfalo a interromper essa gestação incorreria em ferir o princípio da dignidade humana.

 

  1. O direito à saúde

          Por fim, evoca-se o direito à saúde da gestante, tendo em vista que, não podendo ser feito nada pelo feto, sua retirada seria a única indicação terapêutica à gestante. A retirada do feto por médico seria antes de tudo uma antecipação terapêutica do parto e não um tipo penal de aborto previsto pelo Código Penal – neste a morte seria de feto viável em vida extrauterina – já que fatidicamente não há vida extrauterina para fetos anencéfalos.

       Assim sendo, seria violar o direito à saúde (arts. 6º e 196 da CF) da gestante, comprometendo seu bem-estar físico, mental e social devido à exposição a maiores riscos físicos e a agravos psicológicos. A retirada do feto é apresentada como única forma de preservar a saúde da mulher – devendo esse tratamento ser escolha pessoal.

 

  1. Dos votos

         A maioria dos votantes acompanharam o relator – julgando a insconstitucionalidade da interpretação mediante a qual a interrupção de gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e inscisos I e II do artigo 128, todos do Código Penal. Dentre outros alegaram os seguintes motivos:

  1. A incompatibilidade do feto anencéfalo com a vida;
  2. O não interesse de tutela de uma vida que não se desenvolverá socialmente;
  3. Quando da redação dos artigos do CP sobre aborto, o legislador não previa a possibilidade de identificação da anencefalia ainda na gestação; sendo, pois, uma questão de saúde pública.
  4. A inviabilidade de desenvolvimento de vida extra-uterina por feto anencéfalo.
  5. Equiparação do tolhimento à liberdade da mulher neste caso à tortura.
  6. A procedência da ação fundamenta-se no texto da Constituição, nos tratados internacionais e nas leis da República; não sendo aborto como a lei estabelece, já que o feto anencéfalo não estaria vivo e sua morte não decorreria de práticas abortivas.

 

  1. Crítica

           É de todo acertada a leitura realizada acerca dos princípios acima elencados – principio da legalidade e da dignidade humana da gestante. No entanto, há de se reconhecer que a procedência da ação se dá mediante negação da tipificação enquanto aborto – prática estatisticamente corrente.

            O Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional do Aborto, ao completar 40 anos cerca de uma em cada cinco (mais exatamente, 22%) das mulheres já fez um aborto e, ainda, contrariamente a uma idéia muito difundida, o aborto não é feito apenas por adolescentes ou mulheres mais velhas. Na verdade, cerca de 60% das mulheres fizeram seu último (ou único) aborto no centro do período reprodutivo, isto é, entre 18 e 29 anos, sendo o pico da incidência entre 20 e 24 anos (24% nesta faixa etária apenas) ¹. Isto posto, embora a procedência da APDF 54 tenha se dado, é preciso admitir que o Brasil persiste negando que aborto legal e seguro é questão de saúde pública. Enquanto isso, outras mulheres têm suas autonomias da vontade feridas e são expostas a uma série de violações ao princípio da dignidade da pessoa humana; outras são também penalmente imputadas; muitas falecem expostas a procedimentos de péssimas condições de salubridade.

 

BIBLIOGRAFIA

BARROSO, Luis Roberto. Princípio da Legalidade, Delegações Legislativas, Poder Regulamentar, Repartição Constitucional das Competências Legislativas, artigo extraído do www.infojus.com.br

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. Salvador: JusPodivm, 2011.

DINIZ, Debora. MEDEIROS, Marcelo. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Ciênc. saúde coletiva vol.15  supl.1 Rio de Janeiro jun. 2010

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 7ª edição, Atlas, página 61.

NUNES, Rizatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Página 45.

 
 
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Sobre o autor
Ingrid Gomes Martins

Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Membro do Grupo de Ensino Tutorial PET Direito UnB. Membro da comissão de Extensão, Pesquisa e Academia do Centro Acadêmico de Direito da UnB.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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