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Concurso público: “Estudar, para quê?”

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Os malabarismos mentais dedicados à leitura superficial e aos estudos superficiais se traduzem em pensamento superficial: uma cabeça cheia de conhecimentos invisíveis que não deixam nenhum rastro.

“Mi habitación está llena de ángeles invisibles que no dejan ningún rastro”. A. J. AYER

Estudar é, sem lugar a dúvidas, um processo que implica grande esforço mental. Requer uma atividade cerebral custosa em tempo e também em consumo de energia, e a energia é um recurso limitado. Não se produz de forma automática, senão que exige profundidade, atenção dedicada, motivação, determinação e empenho intelectual: pensar resulta caro.

Por outro lado, a relevância atribuída à informação que se quer aprender é crucial. Tanto assim que quanto maiores são as exigências cognitivas derivadas da necessidade de aprender alguma informação, maior parece ser sua importância e dificuldade.

Daí que nos habituamos à (entranhada e ilusória) suposição de que uma informação relevante e difícil só pode ser adequadamente compreendida e assimilada quando é ensinada e/ou vem reforçada por alguma autoridade social. Um claro exemplo é o prestígio dos cursos preparatórios para concursos, cujo método de ensino, em uma época em que a virtude do esforço pessoal está lamentavelmente em declive, são as chamadas “aulas magistrais”.

Toda uma maquinaria desenhada para exaltar e perpetuar, manipulando nossas expectativas, a crença de que aprender consiste, fundamentalmente, em “tragar” os conhecimentos transmitidos por um professor, em aceitar sem discussão as opiniões alheias, em pensar sem fatiga com a cabeça dos demais. Com razão disse Delgado Ocando a respeito desse tipo de prática docente: “Al método catedrático [de tipo magistral] corresponde... la repetición papagayesca de lo que se dijo en la Cátedra. Pruebas de sentido crítico, de originalidad de pensamiento, de esfuerzo personal, de prontitud para resolver cuestiones nuevas... no se pueden exigir a quien durante mucho tiempo ha estado habituado a un tipo de formación precaria y deficiente, a un sistema de enseñanza memorístico y repetitivo”.

A regra é simples: quanto mais e mais rápido, melhor. Provavelmente para muitos isso não constitua nenhum problema. Solene insensatez. As condições alienantes a que conduz esse processo de aprendizagem já foram denunciadas desde muito tempo atrás: uma mostra inequívoca do modelo de “educação bancária” a que tão atinadamente criticava Paulo Freire.

Mas não somente isso. Essa prática de ensino tem algo não só profundamente antipedagógico, senão também imoral, vicioso e alienante. Não se reconhece aqui – e o que é pior, se potencia e incentiva - a profunda distância que há entre “estudar como um fim em si mesmo” (“estudar para saber”) e “estudar como um meio para” (“estudar para aprovar”).

E da mesma maneira que uma gota de água nos proporciona indícios sobre sua composição química, o descaso e/ou a ignorância deliberada da extraordinária diferença que existe entre estas duas formas de estudar oferecem signos interessantes dos sintomas de um problema que produz as mais graves consequências. Problema, sobra dizer, que constitui a principal causa das misérias que permitem e/ou facilitam a indiferença e o desapego por um aprendizado realmente significativo. O objetivo passa a ser o de encher a memória e deixar o entendimento e o raciocínio vazios.

Isso implica que com nossa incapacidade para perceber o gigantesco abismo que há entre “estudar para saber” e “estudar para aprovar” olvidamos que não é o ato de estudar (sem atributos) o realmente valioso, senão o que fazemos com ele, e nos acostumamos a viver no mundo da ditadura dos “livros de ocasião”, dos resumos e anotações, da sobredose de informações inconexas e fragmentadas, do estudo desvinculado, desinteressado e irreflexivo. E já sabem o que disse Abraham Maslow: “Se a única ferramenta que possuímos é um martelo, tudo começa a se parecer com um prego”.

O que pretendemos dizer – e este é um assunto sobre o qual voltamos a insistir - é que “estudar” deixou de ser a busca virtuosa da própria excelência para converter-se em algo meramente instrumental, um meio ou um simples mecanismo pretendidamente “eficaz” e “seguro” para a autoafirmação e consagração profissional, ascensão e estabilidade socioeconômica, sem qualquer implicação com nossas atitudes pessoais e vitais, com nossa visão da vida e do mundo (como muitos grandes filósofos e mestres religiosos relataram ao largo dos séculos: “Tudo é vaidade.”).

Esta perspectiva sobre a tarefa de estudar, que em um primeiro momento parece adequada, correta e necessária (“sempre há algo de bem no pior mal e certa porção de mal no bem mais apreciado”), tem, contudo, um lado escuro. Não é suficiente e, ademais, é nefasta, na medida em que termina indicando o seguinte: tudo o que estudamos é algo “externo” a nossa pessoa, um simples utensílio para assegurar-nos a subsistência e um eventual status socioprofissional; nossos estudos não são e nem constituem nosso “eu”.

Dito de outro modo, somos algo distinto do estudado, aquilo que enfrentamos como inimigo, ou no melhor dos casos, como amigo ingrato. É unicamente um instrumento, como uma muleta que nos ajuda a caminhar melhor, mas que se encontra fora do nosso ser: não faz parte e nem integra nossa substância. Algo esquisito, estranho e distante da realidade de nossa própria condição e situação.

Por esta via, qualquer aprendizado se constitui em (e é vivido como) uma facticidade alheia, em um “opus alienum” à existência de quem aprende e sobre o qual não tem nenhum controle. É algo que eu faço unicamente por necessidade, que cultivo recorrendo a um apego romântico ao “sacrifício” ou a uma espécie de “sofrimento justificado”: um mal necessário, um “mal menor”[1]. Vida e estudo, vida e formação, são, assim, coisas diferentes; vetores que não se tocam, pontes que não se entrecruzam.

Isso significa que o estudar para aprovar implica não somente em transformar a tarefa de estudar em uma atividade hostil, senão também em concebê-la como algo que existe fora do indivíduo e com a qual há que enfrentar-se. Esta forma de estudo, que Minor Salas denomina de “concepção instrumental do saber”, ignora claramente que o estudo não é uma entidade que se encontra “out there”, em algum lugar fora do indivíduo, senão que é sua própria vida, sua personalidade, sua existência.

Assim as coisas, o “estudar de forma instrumental” (para “aprovar”) tem o mesmo valor e significado da frase “Mi habitación está llena de ángeles invisibles que no dejan ningún rastro”. Embora pareça revelar ou significar algo, carece de sentido e não contribui para fazer-nos melhores pessoas, para adquirir bom conhecimento, consolidá-lo e armazená-lo em nosso cérebro, a fim poder utilizá-lo no momento em que o necessitarmos; uma atividade deliberadamente banal e ineficaz, “una especie de mentira que te cuentas a ti mismo hasta casi creértela”. (N. Warburton)

O resultado é uma merma na qualidade do conhecimento, porque os malabarismos mentais dedicados à leitura superficial e aos estudos superficiais se traduzem em pensamento superficial: uma cabeça cheia de conhecimentos invisíveis que não deixam nenhum rastro.  

Em realidade, o saber, tal como se pratica hoje em dia, deixou de ser um “bíos theoretikós”, um mestre da vida, uma forma de como elegemos viver. E a separação ou dicotomia entre o que se “é” e o que se “faz”, entre o “estudar para saber” (“estudar como um fim”) e o “estudar para aprovar” (“estudar como um meio”), é a principal consequência dessa forma de alienação, a negação de realizar nosso ser “em situação”, o oposto de uma atividade autotélica[2].

Idealmente, não se estuda para outro, senão para si mesmo, para perceber, entender e viver melhor. Somos o resultado de nossos estudos e do que aprendemos, sua encarnação, sua consumação, seu corolário. Quando estudamos para saber, não somente interiorizamos os novos conhecimentos, fazemos nosso o que aprendemos e convertemos em familiares o estudado, senão que também alcançamos, ao final do processo, a excelência que transmite uma profunda satisfação pessoal de domínio e a confiança necessária em nossas próprias capacidades e possibilidades intelectuais: “Isso eu já sei!”.

Um indivíduo que se cultiva (a si mesmo) em uma área de conhecimento humano acaba assumindo por completo o controle de sua formação, além de adquirir uma espécie de autoconfiança e motivação que não demande nem prometa nada que não possa cumprir as exigências de cada dia. Em lugar de dedicar-se a aprender de memória o conteúdo do objeto estudado ou aceitar e contentar-se sem exame com as palavras do vizinho, interroga, pede razões, busca os conceitos, os fundamentos, os “porquês”, o “como” e o “para quê” das coisas. Revisa suas debilidades e dificuldades e as corrige até estar seguro de haver superado e compreendido completamente o assunto estudado. Estuda porque quer aprender para saber e com um compromisso de eficácia, nobreza e aperfeiçoamento pessoal (e não somente para superar, por exemplo, as provas de um concurso qualquer).    

A tarefa que desenvolve (estudar) passa a ser uma práxis vital, uma forma de viver, uma ética pessoal. Aprende a desfrutar daquilo que faz e a lograr uma personalidade autotélica: de um indivíduo capaz de estabelecer suas próprias metas e cuja vontade e disposição faz com que a atividade de estudar valha a pena fazê-la por si mesma, se valore por si mesma, independentemente de suas consequências ou de qual seja o resultado desejado. É a plena convicção de estar desfrutando muito mais da atividade enquanto a realiza e aprendendo muito mais sobre o que estuda, do que quando o faz de forma desapaixonada e/ou descomprometida[3].

É deixar-se levar por uma corrente que concentra toda nossa atenção em um arrebato de energia harmônica, uma sensação de controle sobre nossas atividades e objetivos que eleva-nos por encima de nossas ansiedades e abulia, e em que tudo sucede de forma serena, equilibrada, sem problemas ou sacrifícios. É sentir entusiasmo por formar parte do “processo” daquilo que se está fazendo; de, por meio de sua instrução, definir-se e adquirir certos hábitos espirituais e certa visão da vida e do mundo (B. Russell).

Esta prática sólida e rigorosa de saber, que incide na orientação de nossas vidas, é o resultado da inefável sensação (i) de assumir o esforço, a dedicação e a perseverança como uma força positiva e construtiva, e não como uma enorme e pesada carga, e (ii) de pensar “siempre en cuán lejos hemos llegado, no en cuán lejos tenemos que ir” (W. Bligh). Um tipo de conhecimento que, transformando-nos, convertemos em “substância própria” (Epicteto).

Se um indivíduo, com toneladas de determinação e autêntica tenacidade, estuda realmente porque deseja aprender, se entende o que quer e quer o que faz, se tem esse objetivo que considera como próprio e ao que quer dedicar-se por si mesmo (e não somente por seu valor instrumental), então esse estudo passa a ser parte integral de sua personalidade, a ser sua própria pessoa, sem correr o risco de perder-se nos desvarios de uma mente vagabunda.

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E todo o conhecimento adquirido - o qual, repitimos, não é possível sem interesse, esforço, concentração e motivação -, uma vez incorporado dentro de um marco geral de valores pessoais, não somente não será olvidado ou descartado do horizonte de quem o possui, senão que seguramente afetará e influirá os mecanismos cerebrais que definem em essência quem somos e quem seremos.

Enfim, que a experiência de estudar para saber, recuperando velho lema dos humanistas florentinos da “Virtú vince fortuna”, praticando a tradição do cultivo de si mesmo, exercendo nossas melhores capacidades autotélicas e dando o melhor de nós mesmos para chegar a ser o melhor que podemos chegar a ser, é a maneira mais poderosa para lograr a “autonomia do espírito” a que se referia Kant e para fazer com que o conhecimento obtido adquira um sentido verdadeiramente transcendente: não somente uma manifestação do que somos capazes de aprender e saber, senão de tudo aquilo que devemos esforçar-nos por chegar a aprender e saber.

Esta é a única forma de estudo que dinamiza, enobrece e enriquece o autoconhecimento, a firmeza do espírito, a integridade pessoal e o domínio de si mesmo, “que es donde reside verdaderamente la virtud”. (Montaigne)


[1] Não deveríamos olvidar com tanta rapidez que: 1) quem escolhe o “mal menor” está escolhendo o mal (H. Arendt); 2) o conceito de mal menor é um dos mais relativos, pois, enfrentados “a un peligro mayor que el que antes era mayor, hay siempre un mal que es todavía menor aunque sea mayor que el que antes era menor; todo mal mayor se hace menor en relación con otro que es aún mayor, y así hasta el infinito” (A. Gramsci).

[2] Atividade ou ação autotélica é uma atividade livre, voluntária e não motivada por interesses de outra ordem ou forçada por uma circunstância, posição ou necessidade pessoal; uma atividade que traz a recompensa em si mesma, nos próprios meios ou no processo de sua execução; uma atividade que compensa a quem a realiza e que, por isso mesmo, proporciona inestimáveis retribuições internas. Estas são as atividades ou ações que se valoram por si mesmas, que vale a pena fazê-la por si mesma, independentemente de suas consequências, e nas quais a típica relação meio-fim com que se soe descrever a ação humana não vige: a ação autotélica traz a recompensa em si mesma, nos próprios meios. O processo é o que conta, o caminho é a meta ou parte da meta (a meta só é um estado mental). Um exemplo importante – ademais de clássico – é o do trabalho: o jovem Karl Marx condenava a alienação do trabalho sob os regimes econômicos de propriedade privada precisamente porque impediam que fosse uma atividade autotélica – portanto, livre e voluntária, e não trabalho forçado -; e não há modo de dar sentido a essa condena da alienação no marco de uma perspectiva puramente instrumental do saber.

[3] As pessoas que desfrutam daquilo que fazem, que não deixam de aprender e melhorar suas capacidades, que estão tão decididas a alcançar seus objetivos (por difíceis que sejam) e que são capazes de afrontar as adversidades e obstáculos com essa implicação e entusiasmo, são as que logram uma personalidade verdadeiramente autotélica: pessoas dedicadas a uma atividade que vale a pena fazê-la por si mesma, porque vivê-la é sua principal finalidade. Uma personalidade que permite um estado de concentração ou atenção sem esforço e tão profundo que perdem seu sentido de tempo e de si mesmos, e olvidam seus problemas. Este “fluir”, segundo M. Csikszentmihalyi, separa nitidamente as duas formas de esforço: a concentração em uma tarefa e o controle deliberado da atenção. Em um estado de fluir (próprio de uma personalidade autotélica), no qual se mantém a atenção concentrada em uma atividade que nos absorve, não se requer exercer qualquer tipo de autocontrole, pois se liberam espontaneamente os recursos (cognitivos e emocionais) precisos para a tarefa. E ainda que esse tipo de personalidade não garanta que tudo sairá bem, seguramente servirá para desfrutar muito mais da atividade enquanto a realizamos e para aprender muito mais sobre o que estudamos do que quando o fazemos de forma desapaixonada ou visando apenas o resultado. Há que aprender a deleitar-se do “processo” e não cultivá-lo como um apego romântico ao “sacrifício necessário” ou encará-lo como um esquizofrênico  “sofrimento justificado”. Dito de outro modo, em nossos momentos de estudo há que tentar praticar essa capacidade de “ser” e “estar”, nada mais; ou, como diria Montaigne: “Quando bailo, bailo; quando durmo, durmo”.

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Sobre os autores
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Marly Fernandez

Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Cognición y Evolución Humana pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Teoría del Derecho pela Universidad de Barcelona- UB (Espanha). Pós-doutorado (Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica) pelo Laboratório de Sistemática Humana- UIB (Espanha). Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB pelo Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog (Espanha). Membro do Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB) do Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB (Espanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa ; FERNANDEZ, Marly. Concurso público: “Estudar, para quê?”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3969, 14 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28475. Acesso em: 5 nov. 2024.

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