O direito à aposentadoria especial das policiais militares do Brasil

30/05/2014 às 14:11

Resumo:


  • A Lei Complementar nº 144 de 2014 reconheceu o direito à aposentadoria especial das policiais de todo Brasil, em reconhecimento à tríplice jornada destas mulheres.

  • A LC nº 144/2014 não fez menção expressa à atividade de risco, mas a inferência se depreende da exegese do Art. 40, § 4º, inciso II da CRFB.

  • A norma alterou a Lei Complementar nº 51/85, tratando da aposentadoria do servidor policial, e cabe aos Estados Membros legislar sobre a passagem do militar para a inatividade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Trata o presente artigo sobre a novel legislação(LC nº 144/2014) que modificou a LC nº 51/1985, e o direito das policiais militares do Brasil, em especial da Polícia Militar do Ceará, de serem contempladas com aposentação especial.

O Direito à Aposentadoria Especial das Policiais Militares do Brasil

                                                                                                              *Cícero Passos

           Com a sanção e publicação da Lei Complementar nº 144 de 15 maio de 2014 pela presidente Dilma Roussef, as policiais de todo Brasil tiveram grande e justa  conquista, uma vez que se reconheceu ao gênero feminino policial uma  condição especial de aposentação, em reconhecimento não só à atividade de risco, mas, sobretudo, à tríplice jornada destas mulheres, que inobstante à missão constitucional de exercer o munus policial no Brasil, ainda exercem o papel de donas de casa e de mães de família.

           Embora a LC nº 144/2014 não tenha feito menção expressa à atividade de risco, tal inferência se depreende da exegese do Art. 40, § 4º, inciso II da CRFB, vejamos:

Art. 1º A ementa da Lei Complementar nº 51, de 20 de dezembro de 1985, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Dispõe sobre a aposentadoria do servidor público policial, nos termos do § 4º do art. 40 da Constituição Federal."

 

           Ademais, embora não tenha o legislador abertamente tratado das policiais militares no texto da Lei Complementar em comento, posto que, como o projeto de lei data do ano de 2001(PL 275/2001), de autoria do então deputado Romeu Tuma, visando alterar o texto da LC nº 51/85, entendemos que tal restrição, ainda que possível, dada a sistemática constitucional, fere de morte o postulado da isonomia, como passaremos a expor neste singelo artigo.

           Tal norma, como dissemos, vem alterar a Lei Complementar nº 51, de 20 de dezembro de 1985, que trata da aposentadoria do servidor policial, senão vejamos o que diz o Art. 1º da referida lei com a novel redação introduzida pela LC nº 144/2014, verbis:

Art. 1º O servidor público policial será aposentado:

I - compulsoriamente, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, aos 65 (sessenta e cinco) anos de idade, qualquer que seja a natureza dos serviços prestados;

II - voluntariamente, com proventos integrais, independentemente da idade:

a) após 30 (trinta) anos de contribuição, desde que conte, pelo menos, 20 (vinte) anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial, se homem;

b) após 25 (vinte e cinco) anos de contribuição, desde que conte, pelo menos, 15 (quinze) anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial, se mulher. (NR)(grifei)

 

Não podemos olvidar que a LC nº 51/85 é anterior à Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988, e que tal norma foi recepcionada pela nova ordem constitucional, como se depreende do artigo do jurista Luciano Machado[1],  o qual menciona que na ADI 3817-DF(Ação Direta de Inconstitucionalidade), o Excelso Pretório reconheceu a recepção da LC nº 51/85 pela nova CRFB, vejamos:

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 3º DA LEI DISTRITAL N. 3.556/2005. SERVIDORES DAS CARREIRAS POLICIAIS CIVIS CEDIDOS À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA DA UNIÃO E DO DISTRITO FEDERAL: TEMPO DE SERVIÇO CONSIDERADO PELA NORMA QUESTIONADA COMO DE EFETIVO EXERCÍCIO DE ATIVIDADE POLICIAL. AMPLIAÇÃO DO BENEFÍCIO DE APOSENTADORIA ESPECIAL DOS POLICIAIS CIVIS ESTABELECIDO NO ARTIGO DA LEI COMPLEMENTAR FEDERAL Nº 51, DE 20.12.1985. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE.

1. Inexistência de afronta ao art. Art. 40, § 4º, da Constituição da República, por restringir-se a exigência constitucional de lei complementar à matéria relativa à aposentadoria especial do servidor público, o que não foi tratado no dispositivo impugnado.

2. Inconstitucionalidade formal por desobediência ao art. 21, inc. XIV, da Constituição da República que outorga competência privativa à União legislar sobre regime jurídico de policiais civis do Distrito Federal.

3. O art. 1º da Lei Complementar Federal n. 51/1985 que dispõe que o policial será aposentado voluntariamente, com proventos integrais, após 30 (trinta) anos de serviço, desde que conte pelo menos 20 anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial foi recepcionado pela Constituição da República de 1988. A combinação desse dispositivo com o art. 3º da Lei Distrital n. 3.556/2005 autoriza a contagem do período de vinte anos previsto na Lei Complementar n. 51/1985 sem que o servidor público tenha, necessariamente, exercido atividades de natureza estritamente policial, expondo sua integridade física a risco, pressuposto para o reconhecimento da aposentadoria especial do art. 40, § 4º, da Constituição da República: inconstitucionalidade configurada.

4. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.”

 

Teria o legislador, então, a partir da LC nº 144/14 esquecido da grande massa de policiais militares femininas, ou estaria o legislador agindo em conformidade com a sistemática constitucional, deixando aos Estados Membros legislar sobre tal matéria?

 

Seria razoável, que tais “servidoras”, a despeito de serem consideradas militares estaduais, e não servidoras policiais, ficassem de fora dessa condição especial de aposentação? Justamente àquelas que carregam, a nosso ver, o “encargo” mais pesado, mereceriam ficar de fora dessa condição especial?

 

Sobre a condição dos militares estaduais(policiais militares e bombeiros militares), a CRFB trouxe algumas peculiaridades, principalmente na Seção III, do Capítulo VII, do Título III, quando tratou dos “Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”, que veio através da Emenda Constitucional nº 18/98. Neste diapasão, o Art. 42 da Carta Política, em seu parágrafo 3º, com redação dada pela EC nº 20/98, diz o seguinte:

 

§ 1º Aplicam-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, além do que vier a ser fixado em lei, as disposições do art. 14, § 8º; do art. 40, § 9º; e do art. 142, §§ 2º e 3º, cabendo a lei estadual específica dispor sobre as matérias do art. 142, § 3º, inciso X, sendo as patentes dos oficiais conferidas pelos respectivos governadores.(grifei)

 

           De tal interpretação decorre a competência dos Estados Membros para legislar sobre a matéria constante do inciso X do § 3º do Art. 142, qual seja:

X - a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998). (grifei)

 

           A Constituição reservou para os Estados, através de lei estadual específica a regulação da matéria concernente à passagem do militar para inatividade. E qual seria, então, esta lei específica?

           Ora, é cediço que os militares estaduais são “servidores” estatutários, e regidos por lei própria, o que no caso dos militares estaduais do Ceará, tal regência se dá através da lei 13.729/06(Estatuto dos Militares Estaduais).

           A respeito do tema, no caso particular do Ceará, não podemos olvidar o que preconiza a Constituição Estadual do Ceará, a qual designa em seu Art. 176 os militares estaduais do Ceará como “servidores públicos militares”, inclusive inaugurando a seção III, do Capítulo IV, do Título VI, com este nomen juris. Trazemos, pois, o texto à baila, litteris:Art. 176. São servidores públicos militares estaduais os integrantes da Policia Militar e do Corpo de Bombeiros.”

Assim, pugna-se que tais militares, embora integrem a categoria de militares estaduais nos termos da CRFB, também são servidores públicos, pois sabe-se que o legislador não escreve palavras em vão.

           E quanto aos direitos garantidos às servidoras policiais civis, seriam estes estendíveis às policiais militares, “servidoras públicas militares”, nos termos da Constituição Alencarina? Entendemos ser possível a aplicação do § 13 do precitado artigo da Constituição do Estado do Ceará, vejamos:

§13 Aos servidores militares ficam assegurados todos os direitos garantidos, nesta Constituição, aos servidores civis, ressalvados aqueles, cuja extensão aos militares colida com a Constituição Federal.

 

Nessa esteira, se as servidoras públicas policiais civis do Estado do Ceará serão contempladas pela Lei Complementar nº 144/2014; não há dúvidas, pois a Lei quis albergar a profissional policial, sem fazer distinção entre servidor público federal e estadual, uma vez que tal norma tem abrangência nacional, e não apenas restrita às servidoras públicas policiais federais.

A questão é saber se o direito pode ser estendido às policiais militares do Ceará, ou se há colisão com a Constituição Federal.

 

Temos de acrescentar ao debate a atual legislação dos militares estaduais do Ceará, a Lei 13.729/06(Estatuto dos Militares do Estado do Ceará), que em seu artigo 181 trata das condições objetivas que devem estar preenchidas para que o militar, indistintamente do gênero, possar solicitar a reserva remunerada(aposentadoria dos militares), senão vejamos:

 

Art. 181. A transferência para a reserva remunerada, a pedido, será concedida, mediante requerimento do militar estadual que conte com 53 (cinqüenta e três) anos de idade e 30 (trinta) anos de contribuição, dos quais no mínimo 25 (vinte e cinco) anos de contribuição militar estadual ao Sistema Único de Previdência Social dos Servidores Públicos Civis e Militares, dos Agentes Públicos e Membros de Poder do Estado do Ceará – SUSPEC.

 

Esta é a regra geral da aposentadoria dos militares do Estado do Ceará, embora o próprio legislador estadual tenha dado tratamento diferenciado aos próprios militares dentro do próprio estatuto, a depender da época do ingresso, da idade limite, ou mesmo do posto, senão vejamos:

 

Art. 183. A idade de 53 (cinquenta e três) anos a que se refere o caput do art. 181 e as alíneas “b”, “c” e “d” do inciso II, do artigo anterior, será exigida apenas do militar que ingressar na corporação a partir da publicação desta Lei.(grifei)

 

           Neste mesmo sentido, a norma de aposentadoria(ingresso na inatividade) do próprio Comandante Geral da Polícia Militar do Ceará, permite que este, com apenas 20(vinte) anos de serviço possa alcançar essa condição,  alteração esta, que foi feita pela Lei Complementar estadual nº 93/2011, vejamos:

Art.182. A transferência ex officio para a reserva remunerada verificar-se-á sempre que o militar estadual incidir em um dos seguintes casos:

[...]

VI - deixar o Comando-Geral das Corporações Militares do Estado, desde que possua 20 (vinte) anos de tempo de contribuição, com direito, em tal caso, a proventos integrais.(grifei)

 

           Assim, entendemos ser constitucional, e possível, a adequação do Estatuto  dos Militares do Estado do Ceará, para conformar a condição das policiais militares à norma de regência nacional, uma vez que estas “servidoras”, como dissemos, carregam um fardo muito pesado na Segurança Pública para ficar de fora da benesse estatal, sem desmerecer, é claro, às demais profissionais.

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           Quanto à possibilidade de aplicação direta da regra de aposentadoria especial com base na LC nº 144/14, entendemos, em que pese posições contrárias, caber a aplicação direta do art. 186, § 13 da Constituição do Estado do Ceará; norma de eficácia plena e de aplicação imediata, por se tratar do postulado da igualdade, conforme a lição ilustrada de Felipe Costa Queiroz[2], vejamos:

“Conclui-se, portanto, que o princípio constitucional da igualdade, exposto no artigo 5º, da Constituição Federal traduz-se em norma de eficácia plena, cuja exigência de indefectível cumprimento independe de qualquer norma regulamentadora, assegurando a todos, indistintamente, independentemente de raça, cor, sexo, classe social, situação econômica, orientação sexual, convicções políticas e religiosas, igual tratamento perante a lei, mas, também e principalmente, igualdade material ou substancial.”

 

           Assim, atenderíamos ao princípio da isonomia proporcional, vez que o direito deve buscar à Justiça, até em detrimento da própria lei, e contemplar situações de hipossuficiência física e econômica. De outra sorte, não sendo este o entendimento predominante, simples alteração estatutária já contemplaria às servidoras policiais militares, e é exatamente nesse sentido que deve trabalhar o intérprete aplicador da norma, consoante a preclara exposição de Maria Christina Barreiros D’Oliveira[3], senão vejamos:

“A interpretação desse princípio deve levar em consideração a existência de desigualdades de um lado, e de outro, as injustiças causadas por tal situação, para, assim, promover-se uma igualdade plena.

Assim, a igualdade deve dar-se não só perante a lei, mas também perante todo o Direito, perante a justiça, perante os escopos sociais e políticos, gerando reais oportunidades do ser humano obter condições dignas de vida.”(grifei)

 

 

           À guisa de conclusão, esperamos que o administrador público, ou mesmo o legislador possa corrigir as distorções que serão trazidas com a vigência da Lei Complementar nº 144/14, uma vez, que, como dissemos alhures; não podem, e nem merecem, as policiais militares do Brasil, e no caso hipotético do Estado do Ceará, ficarem alijadas da condição especial de aposentação. Destarte, como bem explana Novelino(2008, 294), o Estado tem o dever de “proporcionar ações afirmativas com a finalidade de reduzir as desigualdades decorrentes de discriminações ou de uma hipossuficiência, econômica ou física, por meio de concessão de vantagens compensatórias de tais condições”.

 

 

Notas:

 

[1]FERREIRA, Luciano Machado. A Interpretação da Lei Complementar 51, De 20 de dezembro de 1985. Disponível em <http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=9399>. Acesso em 20 de maio de 2014.

[2]QUEIROZ, Felipe da Costa. Princípio Constitucional da Igualdade. Disponível em <http://anajus.jusbrasil.com.br/noticias/2803750/principio-constitucional-da-igualdade>. Acesso em 20 de maio de 2014.

[3]D'OLIVEIRA, Maria Christina Barreiros. Título: BREVE ANÁLISE DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. Disponível em <http://institutoprocessus.com.br/2012/wp-content/uploads/2011/12/3_edicao1.pdf>. Acesso em 19 de maio de 2014.

Referências Bibliográficas:

Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil.

_____. Lei Complementar nº 51/1985.

_____. Lei Complementar nº 144/2014.

Ceará. Constituição do Estado do Ceará. Assembleia Legislativa.

_____. Lei 13.729/2006.

_____. Lei Complementar nº 93/2011.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. Ed. Método. 2008.

*Cícero Passos é especialista em Direito Penal e Processual Penal. Capitão da Polícia Militar do Ceará. Atualmente  em exercício na Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e Sistema Penitenciário.

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