A (in)conformidade entre o incidente de resolução de demandas repetitivas e os princípios constitucionais do processo

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3. A INCOMPATIBILIDADE ENTRE O INCIDENTE DE DEMANDAS REPETITIVAS E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO

Há algo de notável no estudo do incidente de resolução de demandas repetitivas: o prazo de seis meses fixado para se proferir a decisão, “...o que traz uma exceção à regra do ordenamento jurídico brasileiro, que raramente impõe um lapso temporal para que os magistrados se manifestem acerca dos requerimentos e pedidos das partes” (SILVA, 2013). Vê-se, com isso, uma proposta de solução ao problema apontado na exposição de motivos do anteprojeto, qual seja, assegurar a duração razoável do processo. “Afinal, a ausência de celeridade, sob certo ângulo, é a ausência de justiça” (BRASIL, 2010, p. 16).

Assim, busca-se que os processos tenham uma duração menor, mais razoável, efetivando, na prática, os termos inseridos pela EC n. 45/2004.

Apesar dessa tentativa, é forçoso admitir que o incidente de resolução de demandas repetitivas, da forma como foi concebido, é capaz de gerar muitas dúvidas naqueles que trabalham com o direito, a começar pelos requisitos que elenca para a admissão do incidente. Primeiro, há que se observar a controvérsia em questão deve ter “potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica”. Durço e Souza bem observam que

[...] quando se fala em “potencial”, há inevitável remessa à ideia de hipótese, ou seja, aquilo que o tribunal entenda ser passível de causar multiplicação de processos, mesmo antes de tal multiplicação ocorrer. Nesse sentido, poder-se-ia estar diante de uma inconstitucional supressão do duplo grau de jurisdição, uma vez que com a instauração do incidente suprime-se a instância de ingresso para todos aqueles que processos que ainda não superaram o juízo de piso.

Além disso, não há qualquer explicitação legal do que venha a ser “idêntica questão de direito”, o que embora num primeiro momento possa parecer simples, percebe-se ser, repita-se, uma perigosa abertura para o subjetivismo. Ora, pode-se facilmente encaixar na alcunha de “idêntica questão de direito” uma discussão análoga ou muito próxima da questão central, que mereceria, contudo, uma apreciação diametralmente oposta (DURÇO; SOUZA, 2012, p. 235/236).

Nessa situação, é perigoso que caia por terra o princípio da imparcialidade do juiz, tendo em vista o espaço que se abre para o subjetivismo de se analisar o que seria “idêntica questão de direito” e “potencial de geral relevante multiplicação de processos”, além de uma supressão do duplo grau de jurisdição, como as autoras bem apontaram, por não ser exceção prevista na CF/1988.

Ainda sobre os pontos negativos, não se pode afirmar, com a tentativa de resolução de várias demandas por meio de uma única ação representativa da controvérsia, que haja, efetivamente, oportunidade de todos os interessados se manifestarem adequadamente. Um claro exemplo disso é o tempo exíguo conferido aos interessados na decisão do incidente que não são partes no processo paradigmático: trinta minutos apenas, divididos ente todos. E no caso de aparecerem cinquenta ou cem interessados? Seriam os trinta minutos tempo razoável para que todos se manifestassem?

Silva afirma, nesse sentido, que a oportunidade que os interessados têm para se manifestar no processo paradigmático: “Trata-se de um contraditório ficto, pois se presume que todos os interessados irão efetivamente se manifestar no processo paradigma e ter sua manifestação admitida” (SILVA, 2011, p. 99). Não se pode afirmar, portanto, que o incidente de demandas repetitivas preserve adequadamente o contraditório e a ampla defesa. Pelo contrário, a aplicação do incidente de demandas repetitivas reduz a oportunidade dos interessados de se manifestarem sobre a causa. Ademais, é de extrema relevância observarmos que

...o projeto não prevê qualquer mecanismo para que as partes possam comprovar que seu processo não se trata da mesma situação dos que os feitos em que foi determinada a suspensão. Trata-se de um item que merece atenção na referida legislação, uma vez que, em épocas de neoconstitucionalismo, de neoprocessualismo, em que a preocupação passa a ser um processo justo [...], em que se observem as garantias fundamentais na relação processual, não oportunizar às partes que possam demonstrar que possuem uma situação diversa da que será discutida representa uma grave violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa (SILVA, 2011, p. 98).

Nesse ínterim, não há, portanto, isonomia entre os interessados na causa. Isso porque as partes do processo paradigmático terão mais oportunidades de se manifestar do que os demais interessados. A argumentação deles seria, então, de maior valia do que a daqueles que tiverem os processos suspensos?

Julgado o incidente, prevê o art. 938. do anteprojeto que “a tese jurídica será aplicada a todos os processos que versem idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal”. Aqui, lança-se mais uma dúvida: se a referida tese será aplicada a todos os casos atuais ou futuros, sem distinção, ou só aos já ajuizados a às ações que venham a ser propostas no curso do incidente (DURÇO; SOUZA, 2012, p. 242).

Durço e Souza afirmam, com razão, que a posição mais condizente com o princípio da isonomia é aquela que propõe aplicar a decisão do incidente a todos os casos, atuais e futuros, que versem sobre a mesma questão. Consequência disso seria que, aplicando a decisão a casos futuros, poderia haver a extinção sumária do processo se a pretensão nele contida for contrária ao posicionamento adotado em julgamento de demandas repetitivas, o que impediria a rediscussão do posicionamento firmado pelos tribunais, já que ficaria suprimido o debate processual e a renovação de argumentos dentro do conflito.

Para Ribeiro, juiz de direito no Rio Grande do Sul, a aplicação desse instituto no processo civil confere ao Judiciário uma função que não é de sua competência – a função legislativa, tendo em vista que os tribunais passarão a examinar casos que, muitas vezes, não encontram solução literal na lei, e que serão decididos de acordo com uma só tese jurídica, que deverá prevalecer sempre que houver situação semelhante à julgada no processo paradigmático:

A ditadura do Judiciário é a pior das ditaduras, já se disse. Essa argumentação, contudo, tem pouco rigor. Em qual situação estar-se-ia diante de uma ditadura do Judiciário. Há quem argumente que o Judiciário não poderia revogar o mandato de quem foi eleito para o Poder Legislativo ou para o Poder Executivo, assim como sobre quem pode ser jornalista, ou, ainda, quem deve permanecer algemado e em quais condições isso deve ocorrer. Será possível, então, ao Judiciário proferir decisões que, a par de suspenderem ações individuais, suprimindo um direito fundamental, ainda contenham tese jurídica que irá decidir milhares de ações em tramitação? Será que o Poder Judiciário, com tal decisão, não estará atuando como legislador não mais como julgador? (RIBEIRO, 2010, p. 21)

Dentro do paradigma do Estado Democrático de Direito, anteriormente já comentado, não se pode, portanto, afirmar que a decisão tomada em julgamento de demandas repetitivas seja, de fato, democrática. Nesse novo instituto previsto no anteprojeto, há, por óbvio, a observância somente dos princípios de um Estado de Direito, governado por leis. Não há, no entanto, a concretização do princípio democrático, uma vez que não se vislumbra a oportunidade de os interessados no julgamento do incidente terem participação efetiva nesse procedimento – não se vê, portanto, o processo como espaço para a contínua discussão e legitimação das normas criadas pelos representantes do povo, dada a inobservância de alguns dos princípios que embasam o devido processo legal, como Ribeiro lembra:

Com a expedição de uma decisão, de uma “tese jurídica”, assim obtida em um órgão especial de um Tribunal, não há maior debate e, então, não são examinados, nem conhecidos, argumentos racionais que poderiam, eventualmente, contribuir para outra solução. Com efeito, somente um debate amplo, em um tempo razoável, poderá produzir uma decisão racional que reflita o consenso obtido. Todavia, uma decisão vinda de cima, do órgão judiciário superior, ainda que seja democrática, porque observa as regras vigentes, paradoxalmente não é democrática, porque não obtida por uma ampla discussão (RIBEIRO, 2010, p. 19).

O que se tem, isso sim, é a criação de um cenário onde os tribunais decidem, tomando apenas um processo como paradigma, as decisões a serem observadas em outras centenas de processos que entendam versar sobre “idêntica questão de direito”. Nesse cenário, não se pode afirmar que a criação do incidente de demandas repetitivas se coadune com os objetivos do novo CPC:

O projeto do novo Código de Processo Civil por um lado pretendeu dar efetividade as decisões de primeiro grau, mas, quando se trata de demandas repetitivas, pretendeu dar relevância às decisões dos tribunais. Com efeito, quando tratou dos efeitos dos recursos, houve a pretensa ideia de abolir o efeito suspensivo genericamente, visando a dar a propalada efetividade às decisões dos juízes de primeiro grau. Todavia, quando se trata de ações que envolvem milhares de pessoas, interesses coletivos, aí, então, o juiz de primeiro grau deixa de ter importância e, então, somente os tribunais e, pior, somente os tribunais superiores é que têm importância e relevância e que, pretende-se, decidem com acerto (RIBEIRO, 2010, p. 21).


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora o sistema do incidente de resolução de demandas repetitivas tenha algumas falhas, a verdade é que ele lança luz sobre o problema que o Judiciário enfrenta, diariamente, a cada nova ação que é distribuída: julgar todas as demandas que lhe são apresentadas em um tempo considerado razoável.

De outro lado, o incidente de demandas repetitivas, ao buscar efetivar a duração razoável do processo, sacrifica vários outros princípios constitucionais de suma importância para que se tenha o devido processo legal, como a isonomia, o contraditório e a ampla defesa.

Por se tratarem de princípios, não de regras, não se pode conceber que um ou vários deles sucumbam para que outro prevaleça – como ensina a boa teoria do direito constitucional, deve-se buscar harmonizá-los, ponderar uns sobre os outros diante de cada caso concreto, sem, contudo, sacrificar um deles totalmente.

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Não se pode dizer que o incidente de resolução de demandas repetitivas seja compatível com os princípios constitucionais do processo, tampouco se pode afirmar que ele seja a materialização do processo democrático. Se há algo de relevante que ele traz para os estudiosos do direito, é justamente o desafio de se tentar compatibilizar o contraditório, a ampla defesa e a isonomia com a duração razoável do processo.

A tarefa e os estudos serão árduos, mas o resultado compensará: chegar a um modo de se ter, na prática, a materialização do devido processo legal, desde o contraditório, a ampla defesa e a isonomia, dentro de uma duração razoável do processo.


REFERÊNCIAS

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Sobre as autoras
Luísa Garcia Stehling

Estudante de Direito da UNIMONTES.

Cynara Silde Mesquita Veloso

Doutora em Direito Processual pela PUC Minas, Mestre em Ciências Jurídico-políticas pela UFSC, Professora do Curso de Direito da UNIMONTES. Professora e Coordenadora do Curso de Direito das FIPMoc.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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