Como sabemos, o dever de indenizar surge do dano ou prejuízo injustamente causado à outrem, seja na esfera material, ou no âmbito extrapatrimonial.
Para o professor Nelson Rosenvald, “Responsabilidade Civil é a reparação de danos injustos, resultantes de violação de um dever geral de cuidado, com a finalidade de recomposição do equilíbrio violado. São pressupostos da responsabilidade civil: 1 -Ato ilícito; 2 -Culpa; 3 -Dano; 4 -Nexo causal; Ato Ilícito – art. 186 CC (é uma cláusula aberta), conduta contrária ao ordenamento. O cerne do ato ilícito são a antijuridicidade e imputabilidade”.
Via de regra, a grande maioria das demandas que tramitam perante o Poder Judiciário cuja pretensão se dá na reparação civil é fundamentada em dois artigos que polarizaram esta relação jurídica, os artigos 186 e 927 do Código Civil.
Esta reparação consolidada como “aquele que por ato ilícito causar dano à outrem, fica obrigado à repará-lo”, tão adotada em demandas judiciais, acabou fazendo com que muitas vezes, os litigantes (ou seus patronos) fundamentassem suas petições na consagrada teoria “ato ilícito/ocorrência de dano/nexo causal”, quando na verdade, podemos notar que o caso em concreto seria perfeitamente compatível com a reparação tratada pelo artigo 187 do CC, o qual trata da indenização referente ao “Abuso de Direito”.
Para que o tema seja aprofundado, algumas considerações precisam ser feitas:
a) O artigo 186,CC, (“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”), trata daquilo que chamamos de ATO ILÍCITO PURO.
Conforme aduzido, este instituto é a regra no Brasil, pois decorre de uma conduta humana (comitiva ou omissiva), eivada de culpa (lato sensu), a qual se faz contrária ao ordenamento jurídico (ilicitude), e que causou dano à outrem.
De fato, quando imaginamos uma situação concreta de reparação civil, é comum que o cenário criado preencha precisamente a moldura contemplada no artigo supra referido.
Muitos de nós provavelmente pensamos em um acidente de trânsito, onde torna-se muito nítido o conceito trazido pelo legislador; é de fácil cognição que, um condutor que avança o sinal vermelho está cometendo um ato ilícito, e se, esta conduta resultar em um abalroamento, estará causando prejuízo à outrem, e diante disso, o motorista causador do acidente estará obrigado à ressarcir todos os danos causados.
Ocorre que nem só desta situação insurge o dever de indenizar, senão, vejamos o artigo 187 do mesmo Diploma Legal:
b) O artigo 187, CC, dispõe: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, ou seja, diferentemente da responsabilidade “pura”, lecionada no artigo anterior, este trata-se do chamado ATO ILÍCITO EQUIPARADO, ou simplesmente “Abuso de Direito”.
Diferentemente do ato ilícito puro, onde a conduta adotada já nasce ilícita, no ato ilícito equiparado o causador do dano seria sujeito de direito, e via de regra, poderia exercer o ato sem qualquer empecilho, já que o mesmo se encontra amparado pelas normas jurídicas.
A situação trazida pelo artigo 187 demonstra que, ainda que titular de um direito, existem limites tácitos impostos pela lei, no que tange ao seu cumprimento.
Nota-se que, enquanto a responsabilidade do artigo 186 se dá por um ato inteiramente ilícito, a versão equiparada da ilicitude (187) surge de um ato plenamente lícito, mas que porém, o modus operandi adotado pelo agente excedeu manifestamente os limites da probidade, e da boa-fé, chegando ao ponto de converter a conduta que antes era legal para um ato ilícito.
Um exemplo simples, e capaz de ilustrar a situação narrada, é o caso do desrespeito ao direito de vizinhança.
O sujeito que está ouvindo músicas em sua residência não comete nenhuma ilicitude, aliás, está ele legitimado à exercer tal ato, posto que não há qualquer previsão legal que o impeça de realizar esta atividade.
Temos portanto, um ato plenamente lícito.
Porém, se este mesmo sujeito pretenda ouvir suas músicas em volume exageradamente alto, em horário impróprio, ele deixou de exercer um ato lícito, pois o modo o qual está executando o ato o torna inadequado.
Assim, a situação mencionada não se amolda como um ato ilícito puro, preconizado no artigo 186, CC, mas sim no ato ilícito equiparado, pois, o agente, praticou seu direito de maneira manifestamente abusiva, capaz de ser considerada intolerável à vizinhança no que se diz respeito à boa-fé, à moralidade, à harmonia nas relações humanas, etc.
O brilhante doutrinador Flávio Tartuce, leciona:
“A par da definição legal, a melhor definição doutrinária do abuso de direito é: ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, por ser irregularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito, ou seja, e um é ato lícito pelo conteúdo, ilícito pelas consequências, tendo natureza jurídica mista – situa-se entre o ato jurídico e ilícito. Difere do ato ilícito puro que é ilícito no todo (conteúdo e consequências). Como dito, o ato praticado nasce lícito, se tornando ilícito posteriormente, logo, é necessário que a pessoa exerça e exceda um direito que possui. Logo, não há que se cogitar o elemento culpa na sua configuração (corrente majoritária), bastando que a conduta exceda os parâmetros que constam do art. 187. Assim, presente o abuso de direito, a responsabilidade é objetiva, pois apenas se baseia no elemento objetivo – finalísticos”.
Diante do exposto, nota-se que muitas vezes, a praxe de se fundamentar as pretensões judiciais de reparação civil no ato ilícito preconizado no artigo 186 do CC demonstra atecnia do operador do direito, pois, o surgimento do dever de indenizar, deve ser analisado conforme a conduta do agente causador, afinal, a conduta plenamente ilícita, será enquadrada como ilicitude pura, mas no entanto, a conduta lícita exercida de maneira imprópria, caracterizará o abuso de direito, denominado ato ilícito equiparado.