O bom senso dá um banho no direito

24/06/2014 às 15:56
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Disse o professor de direito que “regras são regras”.

Com vinte e poucos anos, um professor fez um intercâmbio em Roma, no Vaticano. Disse-me que instituíram por conta própria a regra de só tomar banho frio ou gelado (no inverno europeu). Num dos banhos, perdeu parte da pele dos dedos das mãos e da testa. O frio intenso é como o fogo. Na época não falei nada, porque retrucaria meu argumento. Disse que “regras são regras”. Passados dois anos, falávamos de regras jurídicas e chegamos bem perto de um consenso. Concordamos que regra nenhuma pode violar o bom senso, a dignidade, a capacidade social e a Justiça Social. Pois bem, naquele dia, agradeci a intuição e a percepção de não ter-lhe retrucado sobre os banhos invernais. Mesmo sem ter total clareza, o professor corrigira o erro histórico e conceitual de sua consciência. Tive certeza de que o tempo amadureceu o seu pensamento moral, assim como minha intuição de nada falar-lhe revelou meu bom senso momentâneo.

Bom senso é algo que todo mundo sabe o que é, mas que é infinitamente difícil de explicar. Porém, pode ser a transformação do senso comum em consciência amparada pela prudência, diante dos fatos mais importantes. A dignidade humana vem sendo gestada desde o Iluminismo clássico e a Revolução Francesa, com o ideário da fraternidade. A capacidade de interação social do direito é bem definida pela Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro/2010, em seu art. 5o: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Desde João XXIII, o próprio Direito Canônico já se aclimatara à dignidade e à Justiça Social, com a Encíclica Pacem in Terris (1963) – precedida pela Encíclica Rerum Novarum, exigindo a humanização do mundo do trabalho já em 1891.

Das conversas com este professor de direito, tirei como lição o fato de que o Estado de Direito, sem nenhuma adjetivação, assim como a democracia (por exemplo, democracia social), sofre de um positivismo jurídico arcaico e pernicioso. Limitado a Hans Kelsen, sob a ideologia de um direito livre de pressuposições extrajurídicas, a partir do livro Teoria pura do direito, esta (pré-) suposição alimentou o Estado de direito nazista e, depois, o fascismo europeu do pós-Segunda Guerra Mundial. O nazismo foi jurídico, ainda que sob a Lei dos Plenos Poderes.

A Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, viria restaurar o Iluminismo Jurídico que despontara com a filosofia de Imannuel Kant. Sob esse esteio, desde os anos 1950, com as inovações democráticas de Konrad Hesse e Hermann Heller, na Alemanha pós-nazismo, nenhum direito viria dissociado dos valores morais mais nobres à Humanidade. Como Estado Social e Democrático de Direito, na Espanha pós-franquista, ou Estado de Direito Democrático, em Portugal na luta contra o salazarismo, já na década de 1970, avançou incontinente o Princípio Civilizatório que é a essência da luta pelo direito (desde Von Ihering, já no século XIX).

Também nos anos de 1970/1980, o jurista espanhol Elías Díaz (em Estado de Derecho y sociedad democrática) predizia que “Socialismo e democracia coincidem em nosso tempo e institucionalizam-se conjuntamente com a proposta do chamado Estado democrático de Direito”. Acompanhado de Pablo Lucas Verdú, sob a certeza de que o fórceps da história é a luta pelo reconhecimento (no livro A luta pelo Estado de Direito). O debate seguiu maduro e lógico-conceitual, com Hart, e seu famoso livro O conceito de direito. Para Hart, jurista estadunidense, o direito não é meramente factual (pragmático, como resposta pronta à demanda judicial), posto que são admitidos valores sociais/morais como critérios jurídicos, tal qual a finalidade do direito não consistiria unicamente no controle social por meio do uso da coerção. Recusava o pragmatismo jurídico de seu conterrâneo Ronald Dworkin.

Sem este humanismo, vemos o Estado de Exceção se irradiando dos EUA para o mundo ocidental, o despotismo esclarecido no Oriente Médio, o Estado de Sítio como último recurso da Razão de Estado na Venezuela, a barbárie pós-colonialista em grande parte da África, o Estado Penal e a criminalização das relações sociais, no Brasil e em outras partes do globo. Sem adjetivos socialistas, democráticos, libertários, impera o Estado de Direito patrimonialista, racista, sectário, chauvinista, anti-secular, messiânico, sionista. O Estado de Direito do século XIX, sob a bandeira do Império da Lei e da defesa dos direitos individuais, é mais do que passado, é simplesmente obsoleto, em desuso. Neste critério, a Teoria do Estado de Georg Jellinek também é limítrofe e ultrapassada. O Estado não é mais um sinônimo limitado à soberania. “A Justiça Política” impulsionada pelo jurista alemão Otfried Höffe assegura que se forma um “eidos”, um ideal de perfeição – a obrigação de uma legitimação ética do Estado.

Quem desconhece totalmente a influência do socialismo e da liberdade no direito apenas revela a ignorância jurídica que se abala pelo senso comum (o oposto do bom senso). Sem os princípios socialistas, a dignidade não é referência moral, mas tão-somente instrumentalização do capital e da exploração humana. O bom senso recomenda estudar o socialismo antes de decretar sua morte.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

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