Retroatividade da jurisprudência benigna: é possível?

10/07/2014 às 17:23
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Este artigo visa discorrer sobre a possibilidade da retroatividade da jurisprudência benigna.

O período em que a Lei tem vigência se chama atividade. Caso ela produza efeitos antes ou depois de revogada, ocorre a chamada extra-atividade. Já a retroatividade caracteriza-se pelo fato de poder ser aplicada para trás, opostamente à ultra-atividade, que é a aplicação da Lei Penal para a frente, mesmo tendo sido revogada. Tais movimentos da Lei penal no tempo somente ocorrem, via de regra, com leis penais benéficas.

Sabe-se que a norma processual aplicável ao processo é aquela em vigor. Se ela for sucedida por outra, a nova será aplicada, seja ela melhor ou não. Por sua vez, quando se tem a chamada norma híbrida, que seja tanto penal quanto processual, como a Lei não pode ser cindida, de acordo com o STF, a parte penal deve prevalecer. Assim, a norma híbrida somente será aplicada se a parte penal for benéfica ao réu, face ao princípio da irretroatividade.

Questão pertinente refere-se ao cabimento da retroatividade do entendimento jurisprudencial caso ele se mostre mais benigno ao réu. Imagine alguém julgado, há alguns anos, pela conduta de ter subtraído, mediante uso de uma arma de fogo de brinquedo, coisa móvel alheia.

Na época dos fatos e do julgamento, prevalecia na jurisprudência, inclusive sumulada, do Superior Tribunal de Justiça (Súmula nº 174), a ideia de que a utilização de arma de brinquedo justificava, no crime de roubo, o acréscimo de pena a que se refere o § 2º, inciso II do artigo 157 do Código Penal:

Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:

§ 2º - A pena aumenta-se de um terço até metade:

I - se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma;

Súmula nº 174 (CANCELADA). "No crime de roubo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento da pena”.

Na época da sentença que transitou em julgado nesses termos, o juiz aplicava a pena mínima de 4 anos, acrescendo a essa pena mínima, um terço, totalizando 5 anos e 4 meses, sendo esse acréscimo justificado pelo uso da arma de brinquedo nos termos da súmula.

Logo, o fato de usar uma arma de brinquedo foi utilizado pelo juiz, com referência à súmula do Superior Tribunal de Justiça, para aumentar a pena de 4 anos para 5 anos e 4 meses, ou seja, um terço da sua pena. A sentença transitou em julgado nesses exatos termos.

Iniciada a execução da pena, o Superior Tribunal de Justiça cancela a referida Súmula nº 174, que é a situação atual, de forma a não mais chancelar o entendimento de que a utilização da arma de brinquedo configura causa de aumento prevista no inciso I, § 2º do artigo 157, o crime de roubo.

Dessa afirmação, podemos extrair a seguinte conclusão: se esse mesmo réu, ao invés de ter sido julgado naquela época em que prevalecia essa súmula do Superior Tribunal de Justiça fosse julgado hoje, a pena que seria aplicada a ele não seria mais de 5 anos e 4 meses, mas sim de 4 anos. Só que ele já está cumprindo uma pena, sendo essa executada de 5 anos e 4 meses.

Assim, pode-se afirmar que a Lei permaneceu estática, pois o artigo 157 e seus parágrafos do Código Penal não sofreram qualquer alteração, sendo alterado, nesse caso, somente o entendimento dos Tribunais a respeito da interpretação que se deve dar ao termo “emprego de arma”, que foi usado pela Lei para definir a causa de aumento prevista no inciso I, § 2º do artigo 157 do Código.

Surge, então, o seguinte questionamento: em tal situação, na qual o réu já está encarcerado cumprindo a pena maior de 5 anos e 4 meses, poderia requerer junto ao juízo de execução penal que a sua pena fosse diminuída para 4 anos, em virtude da alteração de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, por aplicação analógica do princípio constitucional da retroatividade da Lei mais benigna?

Tal tema - Retroatividade da Jurisprudência Benéfica - apresenta-se bastante controvertido no âmbito doutrinário, mas não na jurisprudência. Nesta, há um julgado do Supremo Tribunal Federal - HC nº 75.793, publicado no DJU em 08 de maio de 1998, com o seguinte ensinamento:

“(...) para efeito de direito intertemporal, jamais se cogitou de assimilar a mudança da orientação jurisprudencial dominante à superveniência da Lei nova: para nós, em cada caso decidido, a interpretação aplicada se reputa válida desde a vigência da norma em que se pretenda fundamentada”.

(STF, HC 75.793, voto do Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 31-3-98, 1ª Turma, DJ de 8-5-98).

Assim, observa-se que o STF nega a equiparação entre a operação da jurisprudência com a alteração da lei, não se justificando uma revisão da pena pelo juízo da execução penal, sendo a pena devidamente executada nos exatos termos em que transitou em julgado, ou seja, 5 anos e 4 meses.

Discussão existe somente nos casos em que a mudança na jurisprudência realmente pode se equiparar à mudança da Lei e, por consequência, retroagir para beneficiar o réu, sob pena de infração ao Princípio da Segurança Jurídica. A regra, inclusive, é de não retroatividade; porém, há um entendimento recente de suma importância na doutrina, que afirma que em alguns casos de alteração jurisprudencial há uma analogia inequívoca com a alteração da Lei. Trata-se dos casos em que a interpretação de um texto legal pela jurisprudência se dá de forma construtiva, ou seja, nos casos em que a atividade do intérprete não se limita a aplicar a disposição da Lei, construindo um novo entendimento a respeito do significado dos termos legais.

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Desta forma, na jurisprudência construtiva o intérprete não se limita a aplicar os termos da lei, mas vai além, edificando um novo conceito, entendimento, significado e/ou  uma nova extensão do texto legal.

Em tais casos, tem-se que a alteração jurisprudencial, quando benigna, deveria retroagir. É exatamente o caso do problema mencionado quanto ao uso de arma de brinquedo. O artigo 157 do Código Penal desde 1940 continua inalterado. O crime de roubo consiste:

Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:

Pena - reclusão, de quatro a dez anos, e multa.

Esse texto está no Código desde 1940, assim como desde 1940 também consta do § 2º do artigo 157, a possibilidade ou necessidade do juiz aumentar a pena de um a dois terços em uma das hipóteses, quando o roubo for praticado, como diz a Lei, com o emprego de arma. A Lei diz isso:

§ 2º - A pena aumenta-se de um terço até metade:

I - se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma;

Os termos estão lançados dessa maneira desde 1940. Veio a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se deparando com situações em que essa arma era de brinquedo e disse que o significado da palavra “arma” usada pelo legislador no artigo 157, § 2º, abarca o uso da arma de brinquedo. Ou seja, a jurisprudência construiu uma equiparação, inclusive, ilegal, porque analógica in malam partem, equiparando a arma de brinquedo a uma arma de fogo. Tal jurisprudência não se limita a aplicar o texto da Lei, mas, pelo contrário, constrói um novo entendimento, baseado em analogia proibida pela Constituição e pelo Princípio da Legalidade.

Assim, com a edição da súmula, diversos juízes passaram a aplica-la, aumentando em um terço a súmula 174 do Superior Tribunal de Justiça, quando se deparavam com casos de roubo com arma de brinquedo. Tal fato dava a ele uma força similar à força da Lei, construindo o entendimento da Lei, sendo considerada uma jurisprudência construtiva.

Com a revogação da súmula, parte da doutrina afirmou que tal fato significou, na verdade, uma revogação parcial da própria lei, diminuindo a aplicação do Art. 157, § 2º, sendo que àqueles condenados por roubo com arma de brinquedo, deveria haver retroatividade, nos termos do princípio constitucional da retroatividade benigna. No caso do Código Penal, está no artigo 2º:

Art. 2º - Ninguém pode ser punido por fato que Lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.

Portanto, diante de tais casos relacionados a esta súmula, vários juízes de execução penal fizeram retroagir a revogação da jurisprudência, diminuindo aquele aumento de terço, que se justificou em base que não mais se justificaria o acréscimo, segundo a própria jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça.

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Sobre o autor
Danilo Chaves Lima

Procurador Federal. Pós-graduado em Direito Público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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