A força normativo-criadora da jurisprudência no Direito brasileiro

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Cediço que, originalmente, cabe ao poder legislativo a função precípua de criar normas legais. Contudo, não se pode olvidar que a Jurisprudência é capaz de operar inovações na ordem jurídica, criando normas jurídicas aplicáveis ao cotidiano.

A jurisprudência é definida como decisões reiteradas dos tribunais em um único sentido. Salvo na hipótese de flagrante inconstitucionalidade, os tribunais aplicam-na em conformidade com o texto legal. Isto ocorre porque a jurisprudência tem suas decisões tomadas dentro dos limites traçados e permitidos pela lei, sendo importante na consolidação e pacificação do Direito.

A interpretação feita pelos magistrados, quer seja pelos seus conhecimentos técnico-legais mais sedimentados quer seja pelo maior contato com a realidade cotidiana, tem o condão de aproximar a lei escrita e impessoal dos seus destinatários.

Entre os constitucionalistas, sedimenta-se a ideia de que a jurisprudência possui força normativo-criadora. “A criação de diretivas gerais, de súmulas do pensamento [interpretação do tribunal] para serem genericamente assumidos pelos demais centros de poder constituem, inegavelmente, uma atuação de ordem normativa” [1].

A temática da força normativa da jurisprudência não é nova. Hans Kelsen já tratava da questão em sua clássica obra Teoria Pura do Direito:

Um tribunal, especialmente um tribunal de última instância pode receber competência para criar, através de sua decisão, não só uma norma individual, vinculante para o caso sub judice, mas também normas gerais. Isto é assim quando a decisão judicial cria o chamado precedente judicial, quer dizer: quando a decisão judicial do caso concreto é vinculante para a decisão de casos idênticos. [2]

No Brasil, a atividade dos tribunais sobre a aplicabilidade da lei ao caso concreto ou de forma abstrata, dá-se por meio do controle de constitucionalidade. “Controlar a constitucionalidade significa verificar a adequação [compatibilidade] de uma lei ou de um ato normativo com a Constituição, verificando seus requisitos formais e materiais”[3]. O judiciário brasileiro exerce o controle repressivo da constitucionalidade de duas formas: difuso e concentrado.

O controle difuso ou controle concreto ou por via de exceção ou defesa é aquele exercido por todo e qualquer juiz ou tribunal, observadas as devidas competências. Decide-se acerca da compatibilidade de lei ou ato administrativo normativo com a Constituição Federal. Pela via difusa, qualquer cidadão pode suscitar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo perante o judiciário, mediante a existência de caso concreto que justifique tal pedido. Segundo Paulo Bonavides:

O controle por via de exceção é de sua natureza o mais apto a prover a defesa do cidadão contra os atos normativos do Poder, porquanto em toda demanda que suscite controvérsia constitucional sobre lesão de direitos individuais estará sempre aberta uma via recursal à parte ofendida.[4]

Os efeitos da decisão judicial serão ex-tunc, retroagindo até a origem do ato. Alcançarão, contudo, apenas as partes do processo, conservando sua validade perante terceiros.

O artigo 52, inciso X, da Constituição Federal, prevê, contudo, que lei ou ato normativo, decidido definitivamente inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal poderá gerar efeitos erga omnes, ou seja, valido perante terceiros. Para isto, faz-se necessário que o Senado Federal, mediante resolução, suspenda no todo ou em parte os efeitos da lei ou ato normativo. Neste caso, seus efeitos seriam ex-nunc, não retroativos, passando a viger a partir da publicação da referida resolução. Ressalte-se que a lei não é revogada, mas tem seus efeitos suspensos, o que na prática a torna inaplicável.

O controle concentrado ou controle abstrato ou por via de ação direta é aquele que busca declarar inconstitucionalidade da norma independentemente de caso concreto. Acerca dele, manifestam-se Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Branco:

A ampla legitimação, a presteza e a celeridade processual do modelo abstrato, dotado inclusive de possibilidade de suspender imediatamente a eficácia dos ato normativo questionado, mediante pedido de cautelar, fazem com que as grandes questões constitucionais sejam solvidas, na sua maioria, mediante a utilização da ação direta, típico instrumento do controle concentrado.[5]

Por meio de ações diretamente impetradas no Supremo Tribunal Federal, busca-se declaração deste órgão da inconstitucionalidade da lei ou ato administrativo. Obtém-se assim, a remoção da norma do ordenamento jurídico.

Os efeitos da decisão se dirigem a todos [erga omnes] e implicam o desfazimento dos efeitos da norma inconstitucional desde a origem [ex-tunc], impingindo segurança jurídica às relações sociais, que vinham se regendo por uma norma desconforme a ordem constitucional. Os legitimados a figurar no pólo ativo de ações manejadas pela via concentrada estão relacionados no artigo 103, da Constituição Federal.

O controle de constitucionalidade pode ser exercido de duas formas: por ação e por omissão[6]. O primeiro é corolário da compatibilidade normativa oriunda de graus inferiores com a Constituição. Formalmente, dá-se quando ocorre a edição por autoridades incompetentes ou em desacordo com os trâmites previstos na Constituição Federal. Materialmente, quando se verifica contrariedade do conteúdo normativo com o texto constitucional.

Na inconstitucionalidade por ação tem-se um controle consistente em verdadeira atividade legisladora negativa, feito por tribunais e juízos singulares, consistente no desfazimento dos efeitos da norma.

Na omissão tem-se a efetivação concreta de direitos que ficam a depender de atos administrativos ou legislativos que os tornem aplicáveis. O controle queda por se constituir, nos casos de mandado de injunção, por exemplo, em legislação positiva do judiciário. Tal atividade legisladora decorre da adoção, pelo Supremo tribunal Federal, da teoria concretista geral[7]. Deste modo, a referida corte legisla no caso concreto, de forma erga omnes até ulterior suprimento normativo pelo poder Legislativo[8].

Não obstante os instrumentos já existentes, o judiciário brasileiro ganhou ainda mais força normativa, com a introdução no Direito pátrio das súmulas vinculantes, no artigo 103-A da Constituição Federal, pela Emenda Constitucional 45.

Chegam como “instrumento que permite ao Supremo Tribunal Federal padronizar a exegese de uma norma jurídica controvertida, evitando insegurança e disparidade de entendimentos em questões idênticas” [9].

Tais súmulas vinculantes consolidam a importância da jurisprudência no universo jurídico nacional. Os países adotantes do common law [Estados Unidos, Reino Unido e Canadá, por exemplo] têm na jurisprudência instrumento criador do direito, mormente por forças dos precedentes. Não há óbice para que os precedentes vinculantes se apliquem a países de orientação romanística, com a devida formalização, como é o caso do Brasil[10].

Possuem as referidas súmulas força vinculante junto aos órgãos do judiciário e do executivo, abrangendo a administração direta e indireta de todos os entes federativos. Kildare Carvalho pontua:

De se considerar que o intérprete ao reconstruir o significado e o sentido da norma também cria o Direito, cabendo à súmula vinculante adotar uma das interpretações possíveis, com exclusão das demais, porém sempre a partir da lei. Nessa perspectiva, não há como considerar que apenas o Legislativo é quem cria o Direito.[11]

Slaibi Nagib Filho as equipara às demais espécies normativas previstas no artigo 59 da Constituição Federal:

Que o novo art. 103-A institui é uma nova forma de processo legislativo ou normativo, como aquelas referidas no art. 59 da Constituição, mas limitando o conteúdo e o alcance de tal processo, que não fica dependendo do regimento interno do Supremo Tribunal Federal.[12]

Alexandre de Moraes, em entendimento contrário, vociferou contra as súmulas vinculantes e sua possibilidade de tornar o Superior Tribunal Federal um legislador positivo:

A corte pode suspender a vigência da lei e torná-la nula, sem qualquer interferência de outro poder”, alertou, ao explicar que o STF pode editar súmula logo depois de decisões em Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.[13]

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As súmulas vinculantes exercem papel de relevo na uniformização jurisprudencial, na fluidez e no processo criativo-modificativo do Direito, posto que unificam entendimentos dispersos e variados sobre o mesmo tema, contribuindo para a segurança jurídica e agilidade do judiciário. “O Direito, como se vê, vai da obra do poder constituinte à interpretação do juiz. A jurisprudência exerce papel ímpar na criação [definição] do Direito, sobretudo agora com o poder do STF de editar súmulas vinculantes” [14]. Neste esteio, assinala Lenza:

A súmula vinculante, como se verá, em nosso entender, sem dúvida, contribui para, ao lado de tantas outras técnicas, buscar realizar o comando fixado no art. 5º, LXXVIII, também introduzido pela Reforma do Poder Judiciário e, na mesma medida, estabelecer a segurança jurídica, prestigiando o princípio da isonomia, já que a lei deve ter aplicação e interpretação uniforme.[15]

Como se pôde constatar, a jurisprudência, de modo geral, está longe de ser uma atividade mecânica, de mera revelação de conteúdos inseridos nos textos legislativos convertendo-se em instrumento cabível de criar e modificar o Direito. Quem interpreta este queda por desempenhar papel de co-participação no processo de criação jurídica, dando sentido a atos normativos de entendimento amplo ou escolhendo soluções disponíveis no ordenamento. [16]


[1] TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 428.

[2]  KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.277-278.

[3] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional.26.ed. São Paulo: Atlas, 2010, p.712.

[4] BONAVIDES, Paulo.Curso de Direito Constitucional. 25.ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 325.

[5] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1103.

[6] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33.ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

[7] Neste sentido, v.g. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional.26.ed. São Paulo: Atlas, 2010; LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

[8] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

[9] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1167.

[10] MENDES; COELHO; BRANCO, op, cit.

[11] CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: Teoria do Estado e da Constituição Direito Constitucional Positivo. 17.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 1167-1168.

[12] NAGIB FILHO, Slaibi. Direito Constitucional. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.222.

[13]MATSUURA, Lilian. Súmula vinculante pode tornar STF um legislador positivo. Consultor Jurídico. São Paulo, 18 out. 2008. Disponível em www.conjur.com.br. Acesso em 04 out. 2011.

[14] GOMES; MOLINA. op. cit., p. 28.

[15] LENZA, op. cit., p. 504.

[16] BARROSO, Luís Roberto. O Controle da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

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Sobre o autor
Carlos Frederico Benevides Nogueira

Advogado <br>Sócio do Escritório Oliveira e Benevides Advogados Associados,<br>Pós-Graduado em Direito Tributário. Membro da Comissão de Estudos e Acompanhamento da Reforma do Código Penal OAB/CE.

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