Uma análise crítica sobre as finalidades da pena à luz da obra de Foucault

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O texto analisa criticamente a função do Direito Penal na sociedade e as finalidades inerentes à aplicação da pena, realizando uma comparação entre o arcabouço teórico e a realidade que vemos no cárcere pátrio, à luz da obra "Vigiar e Punir" de Foucault.

  O Direito Penal atua com a função precípua de selecionar os comportamentos humanos mais graves e nocivos à coletividade, aptos a colocar em risco os bens jurídicos essenciais ao convívio social (como a vida, integridade física, patrimônio, etc.), e, descrever tais condutas como infrações penais, cada qual com uma sanção respectiva. Dessa forma, as sanções - ou penas - não constituem o desígnio da existência da ceara penal, mas são, na verdade, o instrumento de coerção de que o Direito Penal se utiliza para cumprir a sua real finalidade, que é a de proteção dos bens jurídicos mais importantes para determinada sociedade.

   Sendo assim, quando um sujeito pratica um fato típico, antijurídico e culpável, nasce para o Estado a possibilidade de usar do seu ius puniendi, ou seja, usar do seu poder-dever de punir tal indivíduo pelo ato delitivo praticado por ele, podendo falar, portanto, em uma pena. Esta, por sua vez, pode ser definida, segundo Rogério Greco (2012), como sendo a resposta natural imposta pelo Estado quando alguém pratica um determinado crime. E, para que esta pena seja cominada, aplicada e executada legitimamente, é preciso que toda a conjuntura estatal (legislativo, judiciário e sistema prisional) observe os princípios – sejam expressos ou implícitos - presentes em nossa Lei Maior, além de atender a todas as vedações constitucionais referentes às espécies de penalidades e garantir que a pena atenda às suas finalidades, que nada mais são do que os fundamentos que justificam, e, principalmente, legitimam a existência da penalidade imposta pelo Estado.

   Não há como se pretender abordar o conceito da pena sem antes compreender as finalidades intrinsecamente ligadas a ela. De acordo com os ensinamentos de Fernando Capez (2012), em consonância com o que também é defendido por Rogério Greco (2012), quanto às finalidades da sanção penal, existem três teorias que embasam seu estudo: a Teoria Absoluta ou da Retribuição, a Teoria Relativa ou da Prevenção e, por fim, a Teoria Mista ou Eclética.

   A Teoria Absoluta ou da Retribuição defende que a finalidade da pena é a de tão somente punir o autor da infração penal, estando a sanção desvinculada de sua repercussão no meio social. Logo, a pena existe para devolver ao indivíduo o mal causado por ele à sociedade ou, mais exatamente, ao bem jurídico protegido por ela. A penalidade imposta é “a retribuição do mal injusto, praticado pelo criminoso, pelo mal justo previsto no ordenamento jurídico” (CAPEZ, 2012, p. 204). Porém, os defensores da Teoria Absoluta, ao atentarem apenas ao caráter retributivo da pena, deixam de lado os dois outros fundamentais escopos a que a sanção penal se destina, que são o seu fim preventivo e de ressocialização, que não podem ser dissociados da própria existência da pena.

   Já a Teoria Relativa ou da Prevenção afirma que a pena possui um fim prático que se divide em prevenção especial e geral do crime. Aqui, concordamos com a visão de Capez (2012), quando assevera que a prevenção especial está voltada para a pessoa do próprio criminoso, para que ele não volte a cometer um delito, senão poderá sofrer a penalidade novamente, ou seja, a pena, por esse viés, possui a finalidade de impedir que o agente volte a delinquir. É uma lição para o criminoso. Entretanto, pergunta-se: até onde vai a eficácia da prevenção especial em relação à reincidência? Será, então, que a prática reincidente de um novo crime, prevista pelo art. 63 do Código Penal, pode ser vista como um atestado de incompetência estatal ao falhar na garantia dessa finalidade? A imposição da sanção possui o poder de intimidar o criminoso ao ponto dele nunca mais voltar a cometer um delito novamente? São pontos a serem – como já são - debatidos e que são bastante controversos na doutrina pátria, cabendo sempre um olhar crítico e cuidado referente a eles.

   Por outro lado, fala-se também em uma prevenção geral, onde o caráter preventivo da pena diz respeito ao agente servir de modelo para a sociedade, na forma de uma “intimidação dirigida ao ambiente social” (CAPEZ, 2012, p. 204), para que os demais, ao observarem que o indivíduo cometeu um ato criminoso, não venham a cometer um delito por temerem a sanção imputada a ele. Logo, no momento em que o agente tem a sua conduta tipificada pela norma penal, ele já está servindo de exemplo preventivo para a coletividade. Porém, nesta espécie de prevenção também há terreno fértil para discussão, ao analisarmos que se a prevenção geral realmente tivesse eficácia em nosso ordenamento, no exato instante em que uma primeira pessoa cometesse um delito, nenhuma outra o cometeria novamente, e isso, por óbvio, não acontece. Sendo essa finalidade, também, muito debatida.

   Por último, a Teoria Mista ou Eclética faz a junção entre as duas correntes anteriores, visto que defende que a finalidade da pena está pautada não apenas na retribuição, mas também no seu caráter educativo e preventivo. Sendo assim, a sanção penal deve objetivar, simultaneamente, punir o criminoso e também prevenir a prática do delito. A pena, vista por essa ótica, é um instrumento de ressocialização do condenado, estando aqui a justificativa para a vedação expressa às penas de morte e de caráter perpétuo, por exemplo, presente no art. 5º, XLVII, da Constituição Federal, pois elas extirpam qualquer possibilidade de ressocialização do indivíduo. Não diferente das outras finalidades, aqui também há um espaço para debates, partindo do simples ponto: Como ressocializar alguém que nunca foi ao menos socializado? A sociedade está preparada para amoldar ao seu corpo os egressos do nosso sistema carcerário (no que tange as penas privativas de liberdade)? Outros questionamentos que não possuem uma resposta unívoca e que, a nosso ver, está longe de algum dia terem. 

   Dessa forma, partindo da análise do art. 59 do Código Penal brasileiro, extrai-se que a nossa lei penal adotou para si a Teoria Mista ou Eclética, ao passo que afirma que as penas devem ser necessárias e suficientes para promoverem a reprovação e prevenção do crime, ou seja, que ela deve atuar para “reprovar o mal produzido pela conduta praticada pelo agente, bem como prevenir futuras infrações penais” (GRECO, 2012, p. 473). 

   Outro foco importante de abordagem em relação às finalidades das penas está na obra “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault, onde ele remonta o cenário de evolução das punições desde os seus primórdios até o mecanismo atual, das prisões modernas. Seu trabalho é dividido em quatro partes: o suplício, punição, disciplina e prisão. Sendo assim, na primeira parte de sua obra ele trata do corpo dos condenados e da verdadeira ostentação dos rituais de suplício. Este funcionava como uma vingança do Estado para com o infrator, pois o crime praticado abalava a lei e a força do soberano, que usaria da execução do corpo do condenado para restaurar seu poder político e mostrar para o público a eficácia do sistema. Esses rituais, até o século XVIII eram aceitos e vistos como justos pelo povo, porém Foucault trata da mudança de posicionamento das pessoas em relação a essa prática.

   O capitalismo com todas as suas mudanças e amparado na ideologia voltada para o desenvolvimento humano, contribuiu, de fato, para alterar a forma de vigiar e punir as ações do homem. Amparado nas transformações econômicas e políticas na Europa, o pensamento da população se modificou radicalmente, passando a negar a prática do suplício e o ver como algo revoltante e desumano. Além disso, os legisladores e magistrados da época também passaram a vetar esse tipo de retaliação ao corpo do condenado como efeito de justiça criminal. Assim, a formação do cenário dos suplícios revelaria a tirania e o excesso de sede de vingança do soberano. E Foucault traz na segunda parte desse trabalho o duplo perigo que permeava a prática do suplício, ora pautado na tirania do monarca, ora na revolta do povo, que entraria em um choque estrutural no sistema. Logo, fez-se necessário que a justiça criminal passasse a punir, em vez de se vingar.

   Sendo assim, a punição veio para atenuar os efeitos degradantes ao corpo, causado pelo suplício, mas isso não tirou o objetivo da eficácia da penalidade. O autor mostra que essa transformação não ocorreu para punir menos, mas sim para punir melhor, com uma inserção mais profunda no corpo social do poder de punir. A punição não vem para retaliar o corpo, mas para usá-lo de representação para evitar – a todo custo – a reincidência do condenado. O objetivo é que a representação da pena e suas desvantagens seja maior e mais viva do que a do crime e seus prazeres. Sob essa perspectiva, o sistema penal ocidental moderno passou a se caracterizar, em grande medida, na supressão do espetáculo de suplício. Mesmo nos países onde se reconhece a pena de morte, a execução passou a ser reservada a poucos expectadores. E além do objetivo punitivo (retributivo), vê-se no corpo do detento um potencial de utilidade, que com o devido tratamento, torna-se um bem social que possa se tornar útil, dócil e apto a ser ressocializado, prevenindo que ele cometa outros delitos. A prisão passou a funcionar como um mecanismo que modifica a alma do detento por meio de um trabalho exaustivo e frequente.

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   Dessa forma, dentro da prisão recai sobre o indivíduo o poder da observação e disciplina, usadas para moldar seu comportamento e manter a ordem dos institutos. Uma vez dentro da prisão, ele passa a ser observado constantemente e o local onde ele está se torna uma espécie de observatório permanente, que emana normas de controle sobre seus horários, suas funções, medicações e restrições. O exercício do poder se torna mais preciso e ordenado, e sua atuação incide sobre o corpo e o tempo do condenado, por intermédio de um sistema de autoridade e de saber.

   Outro ponto forte de “Vigiar e Punir” é a estruturação do Panóptico, que é uma figura arquitetural da disciplina por excelência, sendo um mecanismo criado para manter em vigilância as pessoas que por algum motivo infringiram a lei ou manifestam alguma patologia. Foucault identifica a aplicação do Panóptico nas prisões, escolas e hospitais, onde a estrutura de funcionamento é pautada na observação e controle dos indivíduos, com uma hierarquia de poder entre o que manda e o que acata. E o objetivo dessa máquina é a de que a pessoa tenha a consciência de que está sendo vigiada a qualquer momento, pois assim ele não infringirá nenhuma norma da instituição (caráter preventivo da pena). Nessa punição da modernidade não há o medo da morte, mas o de ser castigado por quem vigia. O Panóptico se baseia na teoria de que todos devem ser observados a qualquer instante, mas nunca verem quem os está observando, na “torre de controle”. Assim, a vigilância é a prevenção da desordem, ela impede que alguém infrinja alguma regra. Porém, é de fácil percepção de que o Panóptico ficou mais no campo ideológico do que no campo da ação, já que o sistema das instituições é falho e suas normas são infringidas a todo instante, não funcionando a sua teoria da dominação e disciplina absoluta.

   Mostra-se, assim, o quão o tema abordado por Foucault é atual e serve de fundamento para a elaboração das principais teorias acerca das finalidades da sanção penal e do caráter falho desta em relação, principalmente, à prevenção e ressocialização do condenado.

   Por fim, para efeito dialético e, sobretudo, didático, questionamos: até que ponto a era dos suplícios, abordada na obra de Foucault, foi superada pelo sistema penal moderno? O problema da falha dos desígnios da pena ocorre em razão de um Estado omisso ou de uma sociedade corrompida pela prática criminosa? Será possível ressocializar um indivíduo, uma vez inserido em nosso sistema carcerário? E, o certo é não querermos criminosos na rua ou não querê-los em lugar algum?

   Pensemos a respeito.

REFERÊNCIAS

CAPEZ, Fernando. Direito penal simplificado. – 15ª Edição. - São Paulo: Saraiva, 2012.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões. Vozes: São Paulo, 2001.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. – 14ª Edição. - Rio de Janeiro: Impetus, 2012. 

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Sobre os autores
Clarice Santos da Silva

Acadêmica de Direito da Universidade da Amazônia - UNAMA. Estagiária da Justiça Federal - Seção Judiciária do Estado do Pará, com lotação na Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais. Monitora de Direito Constitucional I. Ex Monitora de Direito Penal I. Ex-Monitora de Teoria Geral do Processo.

Emanuel Junior Monteiro Marques

Acadêmico do Curso de Direito da Universidade da Amazônia – UNAMA.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Este texto foi elaborado para integrar a nota parcial da avaliação da Disciplina Direito Penal II, ministrada pelo Professor Antônio Reis Graim Neto, na Universidade da Amazônia - UNAMA.

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