Contratos bancários: Análise estrutural-funcional

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17/07/2014 às 16:19
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SUMÁRIO: 8.4.1. Introdução – 8.4.2. A situação do contrato bancário no ordenamento jurídico -  8.4.3 -  A resposta do ordenamento para o preenchimento das lacunas legais na regulamentação do contrato bancário. 8.4.4 – Conclusão. 8.4.5 – Bibliografia.

8.4.1. Introdução.

Em uma obra coletiva, cujo objeto que serve de ponto de partida dos estudos é o Direito Empresarial, atrevo-me ao trocadilho com o significado do vocábulo empresa, que tem na sua acepção comum a forma pela qual se age para atingir objetivos predeterminados,  uma aventura planejada, um impulso inovador rumo a um prêmio ou uma vitória. É com esse impulso inovador que assumo as consequências dessa empresa.

Escrever sobre Direito Empresarial, e, no caso, sobre contratos Bancários, na forma de artigos, remete a uma necessária homenagem que quero tributar ao pensador Norberto Bobbio, que em sua fase de estudos jurídicos sobre o estruturalismo kelseniano, produziu em curtos ensaios, profundas reflexões sobre o Direito, que hoje são instrumentos valiosos para a compreensão da norma jurídica e do ordenamento jurídico.

E a homenagem aqui não foi premeditada. Ao deparar-me com o tema a ser explorado, embora o mesmo seja objeto de manejo diuturno no escaninho profissional que mantenho, me vi surpreendido com o resultado do giro da abordagem. Ao alterar o ponto de vista da matéria, a partir do advogado de empresários, para o empírico de intérprete ou cientista do Direito, fui obrigado a buscar na teoria geral do direito um método que explicasse, minimamente, o estágio atual das normas jurídicas que o ordenamento jurídico brasileiro nos oferece  - ou não nos oferece – para fins de construção das normas específicas de contratos bancários no âmbito do poder negocial entre empresários e instituições financeiras.

Pois, necessário foi identificar quais as normas jurídicas existentes no ordenamento que são fontes da formação dos contratos bancários, descobrindo-as poucas específicas, algumas genéricas ou informativas, o que se faz no subtítulo “A situação do contrato no ordenamento”. Depois, analisa-se  o que o Superior Tribunal de Justiça tem produzido de precedentes normativos, com força vinculante e portanto com características de normas, em matéria de remuneração de contratos bancários, para fins de identificar qual e como o ordenamento jurídico tem atualmente respondido ao um vácuo legislativo que existe sobre essa modalidade contratual.

A restrição de análise da posição pretoriana à matéria de juros bancários se deve a questões de espaço, ansiosos que estamos por um próximo convite da brilhante organizadora dessa obra, Tatiana Bonatti Peres, por uma nova oportunidade, e de método, pois, no que tange a esse último ponto, para fins desse escrito, as respostas da corte de Brasília sobre outras matérias solvidas á luz do artigo 543-C do CPC a respeito dos contratos bancários, como capitalização de juros, repasse do IOF ao tomador, taxas e tarifas de contratação, entre tantas outras, só corroboram as conclusões aqui adotadas: que o ordenamento jurídico brasileiro carece de um moderno código comercial.  

8.4.2. A situação do contrato bancário no ordenamento jurídico.

A empresa é uma realidade econômica antes de ser um instituto jurídico. A legislação nacional reconhece a existência de direitos e obrigações resultantes de organizações para fins econômicos, independentemente da efetiva constituição jurídica da empresa. Segundo Arnold Wald, “Sendo a empresa uma realidade econômica, a grande problemática enfrentada pelos juristas foi e continua sendo especificar um  conceito que determine os seus elementos e que os traduza em termos jurídicos...”[1]

A empresa é portanto realidade fática, conjunção dos fatores capital e trabalho administrados por um empresário ou conjunto de empresários, com o objetivo de produzir de riquezas através de um empreendimento.

O plexo de relações jurídicas geradas pelas atividades da empresa é de monta. Trata-se de relações societárias (relações de direitos e obrigações entre os empresários envolvidos no empreendimento), tributárias (para com o Estado, pois, a geração de riquezas, a remuneração de mão de obra, e  outras manifestações de capacidade contributiva são hipótese de incidência de tributos), trabalhistas (relações de direitos e obrigações com a mão de obra assalariada), administrativas (relações jurídicas com entes estatais e paraestatais relativamente à normatização e fiscalização das atividades empresariais e dos cidadãos em geral) e, entre outras, obrigacionais, no que tange as relações para com fornecedores, clientes e parceiros de negócio  em geral.

É nesse ultimo feixe de relações que surgem os contratos bancários, que tem por objetivo regular relações de transferência de capital, bens de capital ou meios circulantes entre instituições financeiras e empresas, e possibilitar a criação ou manutenção da empresa. O contrato bancário, enquanto instrumento jurídico de tutela da tradição do capital e do dinheiro, que é a  célula mater da economia capitalista, o seu verdadeiro DNA, é talvez um dos mais importantes instrumentos jurídico negociais que o legislador outorga à esfera da autonomia negocial. 

Contrato, segundo a definição de Ulpiano “est pactio duorum in idem placitum consensus”, ou o mútuo consenso de duas ou mais pessoas sobre o mesmo objeto.

Contrato bancário é a denominação genérica que é emprestada a espécies de obrigações entabuladas entre pessoas jurídicas integrantes do sistema financeiro nacional, que detém autorização especial para realizar operações de crédito, e pessoas, naturais ou jurídicas, cujo objeto são operações de crédito, em suas variadas formas e características. Segundo RIZZARDO, “Pode-se dizer que contratos bancários são aqueles em que uma das partes é o banco, e cujo objeto vem a ser o crédito.” [2]

No que toca à capacidade para firmar contratos bancários, há uma ordinária, e outra extraordinária. A ordinária é, para as pessoas naturais a prevista no artigo 5º do Código Civil, que outorga capacidade plena para os atos da vida civil aos maiores de dezoito anos, ou, quem tenha colado grau em curso superior. Para as pessoas jurídicas observam-se as regras do artigo 45 e 47 do Código Civil. Já a extraordinária diz respeito a especial qualidade das instituições financeiras participantes do contrato, que devem ser bancos múltiplos, bancos comerciais, bancos de investimento, bancos de desenvolvimento, sociedades de crédito, financiamento e investimento, sociedades de crédito imobiliário, associações de poupança e empréstimo e Caixa Econômica Federal, autorizadas pelo Banco Central do Brasil a firmarem contratos do tipo. Na forma do artigo 1º, parágrafos 1º e 2º da Lei Complementar nº 105/2001, que dispõe sobre o sigilo das instituições financeiras e dá outras providências, são instituições financeiras  os bancos de qualquer espécie; distribuidoras de valores mobiliários;  corretoras de câmbio e de valores mobiliários; sociedades de crédito, financiamento e investimentos; sociedades de crédito imobiliário; administradoras de cartões de crédito;   sociedades de arrendamento mercantil;  administradoras de mercado de balcão organizado; cooperativas de crédito; associações de poupança e empréstimo; bolsas de valores e de mercadorias e futuros; entidades de liquidação e compensação; outras sociedades que, em razão da natureza de suas operações, assim venham a ser consideradas pelo Conselho Monetário Nacional, assim como as empresas de fomento comercial ou factoring, sob determinadas condições.  O artigo 17 da Lei nº 4.595/1964, que trata do Sistema Financeiro Nacional, conceitua instituição financeira como “pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros”.

No que tange ao objeto dos contratos bancários, será sempre uma operação de crédito, ou seja, uma operação de entre uma pessoa jurídica financeira e uma financeira com escopo de transferir, mutuar, depositar ou remunerar capitais. O artigo 5º, parágrafo 1º da Lei Complementar nº 105/2001 elenca as seguintes atividades como sendo operações financeiras: depósitos à vista e a prazo, inclusive em conta de poupança; pagamentos efetuados em moeda corrente ou em cheques; emissão de ordens de crédito ou documentos assemelhados; resgates em contas de depósitos à vista ou a prazo, inclusive de poupança; contratos de mútuo; descontos de duplicatas, notas promissórias e outros títulos de crédito; aquisições e vendas de títulos de renda fixa ou variável; aplicações em fundos de investimentos; aquisições de moeda estrangeira; conversões de moeda estrangeira em moeda nacional; transferências de moeda e outros valores para o exterior; operações com ouro, ativo financeiro;  operações com cartão de crédito; operações de arrendamento mercantil; e quaisquer outras operações de natureza semelhante que venham a ser autorizadas pelo Banco Central do Brasil, Comissão de Valores Mobiliários ou outro órgão competente.

Na tradição jurídica brasileira moderna de direito material, que tem fontes romano-germânicas e lusitanas, vige um ambiente de alta regulamentação e codificação.  A Constituição Federal conta com milhares de dispositivos, distribuídos entre artigos, incisos, parágrafos e alíneas. Principia com um preâmbulo com  consistência normativa. No Título I detalha os princípios fundamentais da República, em quatro artigos e vinte e cinco dispositivos, com centenas de normas. No Título II, dividido em cinco capítulos, a Carta trata de direitos e deveres individuais e coletivos, sendo o Capítulo I uma verdadeira declaração dos Direitos do Homem, o Capítulo II um estatuto de direitos dos trabalhadores invadindo a seara de regulação dos contratos de trabalho, o Capítulo III um típico texto constitucional de regulamentação de aquisição e perda de nacionalidade e o Capítulo IV um estamento de direitos políticos, seguido do Capítulo V que trata dos partidos políticos.  Os títulos III e IV tratam da organização do Estado e dos Poderes, o Título V da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, e o Título VI da Tributação e do Orçamento, o Título VII da Ordem Econômica e Financeira. Após um hiato de matérias tipicamente constitucionais, voltou o constituinte nos Títulos VII e VIII a alçar a nível fundamental matérias como princípios gerais da atividade econômica, política urbana, política agrícola e fundiária, sistema financeiro nacional,   seguridade, educação, cultura, desporto, ciência e tecnologia, comunicação social, meio ambiente,  família, criança, adolescente, idoso e índios. Não bastasse, há espaço para dezessete artigos de disposições constitucionais gerais e noventa e sete artigos de disposições constitucionais transitórias.

Já o Código Civil vigente conta com dois mil e quarenta e seis artigos e regulamenta toda a vida em sociedade no codex, desde o nascimento no Livro I da Parte Geral, das Pessoas, passando pelos Bens no Livro II da Parte Geral, e findando a primeira parte com os fatos jurídicos, uma detalhada regulamentação acerca do sistema de constituição, validade e invalidade dos negócios jurídicos, no Livro III da Parte Geral.  Na Parte Especial são cinco Livros, tratando o primeiro do Direito das obrigações, onde se destaca, no título VI, uma detalhada regulamentação “das várias espécies de contratos”, onde são elencados vinte espécies de contratos. O Livro II trata do Direito da Empresa, sob o aspecto societário. O Livro III trata do Direito das Coisas, versando sobre posse, propriedade, direitos reais, e aspectos do contrato de compra e venda de imóvel. O Livro IV do Direito de Família, e o Livro V do Direito das Sucessões.

Sabe-se que para realizar qualquer direito consagrado nesses milhares de dispositivos e milhões de normas, quando resistida a aplicação ou fruição do direito ou da respectiva pretensão ao mesmo, deve-se recorrer ao Poder Judiciário, através de processo judicial, cujos procedimentos vem previstos em Código de outros milhares de dispositivos e milhões de normas.

Enfim, não é necessário aprofundar mais o ponto de observação para comprovar nossa tradição nacional legiferante, nosso ambiente altamente regulatório, nossa paixão nacional pelo texto jurídico editado em lei, nosso fetiche por diários oficiais.

Pois é motivo de investigar-se a circunstância de num sistema jurídico altamente regulamentado, o contrato bancário, ou seja, aquele entabulado entre uma instituição financeira e uma pessoa não financeira, tendo como objeto capital, bens de capital ou meio circulante, não merecer do legislador, mais do que poucas linhas mal traçadas, e por sua relevância na dinâmica social, ter que submeter-se à normatização através de um sistema de precedentes jurisprudenciais que tem obrigado ao Poder Judiciário recorrer a fontes subsidiárias do Direito para extrair da legislação um mínimo de sentido normativo que dê substância jurídica a esse tipo de contrato.

É de se atribuir, num primeiro momento, as lacunas legislativas da regulamentação do contrato bancário, a dois fatores. O primeiro deles, de caráter legislativo, diz respeito a uma talvez mal sucedida tentativa de unificação regulatória do direito privado,  no Código Civil de 2002, que pretendeu capitanear em um só texto todo o Direito Privado, assim compreendido o Civil e o Comercial.

Sobre essa pretensão aglutinante do codex civil, BARBOSA FILHO, [3] ao comentar o artigo 966 do Código Civil de 2002, identifica:

“O Código Civil de 2002 reorganizou, no âmbito do direito privado, a legislação nacional, condensando vasto número de normas extravagantes e esparsas, mas principalmente, procurou ultrapassar as barreiras criadas pela galopante pormenorização e particularização de suas normas e propôs fosse englobado, num único diploma, em conjunto, o direito comum, isto é, o direito civil, e a parcela mais relevante dos ramos especializados, o direito comercial. Foi promovida, frise-se, uma unificação formal puramente do direito privado.”  

O autor em questão identifica uma real dificuldade em aplicar-se a lei civil aos contratos e obrigações mercantis em geral, pois o “direito comercial é dedutivo,  de índole cosmopolita, e ligado à celebração massificada de negócios....Suas normas renovam-se incessantemente, com acelerado dinamismo, sempre atendendo a internacionalização, vinculadas às alterações das formas de produção e acumulação capitalista, sistema que provocou o nascimento do direito comercial e ao qual continua umbilicalmente ligado. Tais características, à evidência, não estão presentes no direito civil e tornam necessário, como o advento do presente diploma, um exercício continuado de compatibilização e concreção das novas regras positivadas.”[4]           

Por outro lado, essa lacunosidade ou rarefação da legislação comercial, seria uma característica própria do sistema jurídico na seara da regulamentação negocial. BOBBIO, ao estudar sob o âmbito do estruturalismo jurídico os ordenamentos complexos, cujas normas tem diversas fontes, debruçando-se na observação empírica da construção escalonada do ordenamento a partir de normas de diversas espécies advindas de diferentes fontes, identifica a baixa densidade (o que não significa inexistência) de limites materiais ao poder regulamentar que é atribuído pelo poder legislativo aos particulares a quem se investe o poder negocial de entabular contratos, ressaltando a prevalência dos limites formais impostos ao poder negocial:

“Quando um órgão superior atribui a um órgão inferior um poder normativo não lhe atribui um poder ilimitado. Ao atribuir esse poder, estabelece também os limites dentro dos quais pode ser exercido. Como o exercício do poder negocial ou do poder jurisdicional é limitado pelo Poder Legislativo, assim  também o exercício do Poder Legislativo é limitado pelo poder constitucional. À medida que se percorre de alto a baixo a pirâmide, o poder normativo é sempre mais restrito. Pense-se na quantidade de poderes atribuídos à fonte negocial perante aqueles atribuídos à fonte legislativa....omissis...Os limites com os quais o poder superior restringe e regula o poder inferior são de dois tipos diferentes: a) relativos ao conteúdo; b) relativos à forma.Por isso se fala de limites materiais e limites formais. O primeiro tipo de limites diz respeito ao conteúdo da norma que o inferior está autorizado a editar; o segundo tipo diz respeito à forma, isto é, ao modo ou procedimento pelo qual a norma do inferior deve ser editada. Se nos pusermos do ponto de vista do inferior, perceberemos que esse recebe um poder limitado, ou em relação àquilo que pode ordenar ou proibir, ou em relação a como pode ordenar ou proibir. Os dois limites podem ser impostos contemporaneamente, mas em alguns casos podem ocorrer uns sem que ocorra o outro. A investigação desses limites é importante, pois eles delimitam o âmbito no qual a norma inferior é legitimamente editada: uma norma inferior que exceda os limites materiais, isto é, que regule uma matéria diversa daquelas que lhe foram assinaladas ou de maneira diversa daquela prevista, ou mesmo que exceda os limites formais, isto é, que não siga o procedimento estabelecido, é passível de ser declarada ilegítima e de ser expulsa do sistema....omissis...Na passagem da norma constitucional para aquela ordinária, são frequentes e evidentes tanto os limites materiais quanto os limites formais. Quando a lei constitucional atribui aos cidadãos, digamos, o direito à liberdade religiosa, limita o conteúdo normativo do legislador ordinário, isto é, proíbe-o de editar normas que tenham por conteúdo a restrição e a supressão da liberdade religiosa. Os limites de conteúdo podem ser, portanto, positivos ou negativos, segundo a constituição imponha ao legislador ordinário.....Na passagem da lei ordinária ao negócio jurídico, isto é, para a esfera da autonomia privada, prevalecem, de hábito, os limites formais sobre aqueles materiais. As normas relativas aos contratos são geralmente normas destinadas a fixar o modo pelo qual o poder negocial deve ser exercido a fim de produzir consequências jurídicas, e não a matéria sobre a qual deve ser exercido. Pode-se formular o princípio geral segundo o qual, em relação à autonomia privada, ao legislador ordinário não interessam tanto as matérias sobre as quais possa exercitar-se, quanto a forma desse exercício. Isso nos leva a dizer em sede de teoria geral, com uma extrapolação inadequada, que ao direito não interessa tanto aquilo que os homens fazem senão de que modo eles fazem, isto é, a forma da ação. Isto é, que o direito é uma regra formal da conduta humana.”  [5]

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Ao analisar a rarefação das normas legislativas que outorgam aos particulares limites formais ou materiais para a produção de normas contratuais em sede de contratos bancários (BOBBIO), ao intérprete afeito à uma análise estrutural do direito e conhecedor da estrutura piramidal do ordenamento (KELSEN), tende a procurar em normas hierarquicamente superiores respostas e, como soe ocorrer na tradição jurídica brasileira, busca no texto constitucional alguma norma de estrutura que possa lhe emprestar uma guia apara a solução da integração legislativa em alguma necessidade interpretativa concreta.

Daí que se buscando a partir da Constituição percebe-se é uma desconstrução da legislação do sistema financeiro nacional nas últimas décadas, o que induz uma lembrança possível de uma obra de literatura de FERNANDO PESSOA[6], para os dias atuais. No texto pessoano um rico banqueiro revela a seu amigo comensal, na década de vinte do século passado, ter amealhado sua fortuna seguindo os dogmas da teoria de BAKUNIN, pretendendo destruir o Estado Burguês através da ação direta para atingir a plena liberdade para a classe trabalhadora. Na época, sob o impacto do terrorismo que o movimento impunha na Europa, PESSOA deu mais atenção aos aspectos políticos do movimento. Hoje, a parábola serviria para causar o mesmo desconcertante efeito na percepção de que o capital arredou o Estado da regulamentação das suas atividades e  portanto, “destruiu” o Estado e atingiu um patamar de liberdade equiparável ao anarquismo para a consecução dos seus objetivos.

Senão note-se: ao ser promulgada em 1.988 o artigo 192 da Constituição Federal de 1.988 tinha na sua redação a previsão de princípios gerais e de uma lei complementar para regular seu funcionamento e dispor sobre: (caput), sistema de autorização para funcionamento de instituições financeiras (inciso I), sistema de autorização de funcionamento de estabelecimentos de seguro, resseguro, previdência e capitalização (inciso II), condições de participação do capital estrangeiro no sistema (inciso III), organização do Banco Central (inciso IV), requisitos para designação de membros para o Banco Central (inciso V), fundo garantidor de crédito (inciso VI), critérios de redistribuição de renda via poupança (inciso VII) e funcionamento de cooperativas de crédito (inciso VIII). Além disso, o artigo trazia, em seu parágrafo 3º a seguinte previsão de alto grau interventivo na economia: “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas  referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima desse limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas suas modalidades, nos termos que a lei determinar.”

Por força da Emenda Constitucional nº 40/2003, todo o capítulo foi revogado, restando o seguinte texto: “O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram”.

A Constituição se retirou da normatização do sistema financeiro, seja pela amputação dos princípios do sistema, pela supressão do que seria matéria de lei complementar, pela generalidade e quase displicência com que atribui às “leis complementares” sua regulamentação, e pela, essa já percebidamente necessária face à anterior edição da Súmula Vinculante n° 7 do STF, supressão da intervenção econômica de limitação dos juros via Carta Constitucional. [7]

O conjunto normativo hoje em vigor que rege o sistema financeiro, sem tomar em conta as normas infra legais que emanam do Banco Central do Brasil e do Conselho Monetário Nacional,  que no contexto de desregulamentação atual tem alto conteúdo normativo,  são as seguintes:

  • Lei Complementar 105, de 10/01/2001 - Lei do sigilo das operações de instituições financeiras;
  • Lei 4.131, de 03/09/1962 – Lei do Capital Estrangeiro;
  • Lei 4.595, de 31/12/1964 – Lei do Sistema Financeiro Nacional;
  • Lei 4.728, de 14/07/1965 – Lei do Mercado de Capitais;
  • Lei 6.024, de 13/03/1974 – Lei de Intervenções e Liquidações;
  • Lei 6.385, de 07/12/1976 – Lei do Mercado de Valores Mobiliários;
  • Lei 7.357, de 02/09/1985 – Lei do Cheque;
  • Lei 7.492, de 16/06/1986 – Lei dos Crimes Financeiros;
  • Lei 9.069, de 29/06/1995 – Lei do Real;
  • Lei 9.447, de 14/03/1997 – Lei da Responsabilidade Solidária;
  • Lei 9.613, de 03/03/1998 – Lei da “lavagem” de Dinheiro;
  • Lei 9.710, de 19/11/1998 – Lei do PROER;
  • Lei 10.214, de 27/03/2001 – Lei do Sistema de Pagamentos Brasileiro;
  • Decreto-Lei 2.321, de 25/02/1987 – regime de Administração Especial Temporária;
  • Decreto 23.258, de 19/10/1933 – Dispõe sobre as operações de câmbio;
  • Decreto  57.595, de 07/01/1966 – Lei Uniforme relativa ao Cheque;
  • Decreto 57.663. de 24/01/1966 – Lei Uniforme Relativa às Letras de Câmbio e Notas Promissórias;

Nota-se que à exceção da Lei Complementar 105, que com o mote de regular a sistemática da quebra do sigilo bancário estabeleceu importantes balizas conceituais do sistema, em especial conceituando operações e instituições financeiras, temos que o alicerce do sistema normativo foi recepcionado de ordens constitucionais anteriores, que é a Lei 4.594, a seguir comentada. A lei complementar 105 garante o sigilo das informações financeiras, inclusive dos contratos bancários, regula as formas de revelação dos dados privados e sigilosos, e traz conceitos necessários para fins de integração dos conceitos dos contratos bancários, sendo essa a pouca extensão de sua intervenção no tema.

A viga principal da basílica é sem dúvida a Lei n° 4.595 de 1964, que fora sancionada e entrou em vigor em 1965, sob a égide da Constituição Federal de 1.946, sendo, portanto, um modelo de organização de sistema financeiro fruto do estado keynesiano e do pós-guerra.  Segundo o artigo 4° dessa Lei, compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo Presidente da República disciplinar o crédito em todas as suas modalidades e as operações creditícias em todas as suas formas, inclusive aceites, avais e prestações de quaisquer garantias por parte das instituições financeiras (inciso VI) e limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros, inclusive os prestados pelo Banco Central da República do Brasil, assegurando taxas favorecidas aos financiamentos que se destinem a promover recuperação e fertilização do solo, reflorestamento, combate a epizootias e pragas, nas atividades rurais, eletrificação rural, mecanização, irrigação e  investimento indispensáveis às atividades agropecuárias, sendo esta atribuição de competência a totalidade de disposições normativas contidas na lei, que dizem respeito a (possibilidade de) legislar em matéria de contratos bancários.

Os artigos 51 e 52 da Lei nº 4.728 de 1965, que trata de mercado de capitais, traz medidas administrativas a serem observadas em contas correntes bancárias. O artigos 66-B, na redação que lhe deu a Lei nº 10.931/2004 trata, aqui mais detalhadamente, de contrato de alienação fiduciária em garantia, em complemento a disposições do Código Civil, incluindo disposições penais contra o devedor que alienar a coisa.

O artigo 28, parágrafo 4º, inciso I da Lei nº 9.069 de 1995 excetua as instituições financeiras da proibição de aplicar correção monetária aos contratos em periodicidade inferior à anual.[8]

As demais leis tratam de matéria financeira, administrativa, penal,  ou de títulos de crédito, e não trazem elementos de conformação normativa acerca dos contratos bancários.

O Código Civil brasileiro de 2002, por sua vez, elenca vinte espécies de contratos.  Se valendo da ironia, relevam socialmente os contratos de doação, estimatório, depósito e compromisso, que mereceram minuciosa regulamentação, em contrapartida aos contratos bancários, que nem mesmo foram presumidos em existência. Na tangente mais próxima ao assunto, ao tratar do contrato de mútuo, o codificador, após tratar das importantes questões de como se resolve a situação relevantíssima socialmente do mútuo feito com o menor (ironia,  novamente) sem a autorização de seu responsável, esbarra nesse contrato que pode ser classificado como um dos mais importantes da sociedade moderna ao editar o artigo 591 que contém as seguintes normas: “Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.”

Essa disposição, que trata, bem entendido, de juros remuneratórios, remete-se à formula de fixação dos juros moratórios prevista no artigo 406 do Codex, que prevê: “Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação de lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.”

E aqui reside todo o dirigismo contratual específico do Código Civil que pode ser aplicado aos contratos bancários. Pode, porque há interpretações segundo as quais essas disposições não se aplicariam aos contratos bancários, essa muito especial categoria de ajuste sobre o qual a Constituição e a lei civil não tem causado qualquer efeito e as leis que existem preconizam enunciados de que não há prescrição legal que se aplique a tais contratos. Ou seja, ausência de lei, liberdade total, anarquismo pós-moderno.

8.4.3. A resposta do ordenamento para o preenchimento das lacunas legais na regulamentação do contrato bancário.

O resultado da busca no ordenamento jurídico de normas ou fontes que informem o contrato bancário resultam na conclusão de existência de uma rarefação normativa. Essa  ausência estatal em um país de dimensões continentais, que é uma das maiores economias capitalistas do globo terrestre, cuja tradição jurídica é romano-germânica, e cujo dirigismo legislativo em todas as áreas da economia é de razoável monta, inclusive no âmbito da forma e conteúdo dos contratos, causa espécie.

Nesse contexto de insipidez normativa, avulta, por outro lado, uma disparidade de forças entre os detentores do objeto do contrato, que é o capital, e os interessados no objeto do contrato, que são todas as pessoas naturais e jurídicas que para reproduzirem o capital e levarem a cabo seus objetivos de sobrevivência e acumulação de riquezas, devem necessariamente contratar, de uma forma ou  de outra, com os detentores do capital autorizados a firmarem contratos bancários.

Além da disparidade de forças, há uma constante vocação para crises nessa economia periférica do capitalismo, que força padrões de massa salarial e de renda para baixo de forma periódica, e índices de inflação para cima de forma persistente, sem dizer das cíclicas crises do capital financeiro.

Esses são elementos que fomentam o constante estado de crise que vive o contrato bancário, invertendo a relação colaborativa das partes em litígio que vai procurar resolução nas barras dos Tribunais. Somos milhões de pessoas que movimentamos trilhões de reais. O contencioso dai resultante é de milhões de processos judiciais, que devem ser decididos, na base da integração, ou, como já ensinava MAXIMILIANO, com base nas próprias luzes do juiz, os ditames da razão e da equidade:

“Tem o magistrado, nos países cultos, a obrigação peremptória de despachar e decidir todos os feitos que se enquadrem na sua jurisdição e competência  estejam processados em regra. Não é lícito abster-se de julgar, sob o pretexto, ou razão, de ser a lei ambígua, omissa, ou obscura; não ter a  mesma previsto as circunstâncias particulares do caso; ou serem incertos os fatos da causa. As normas positivas, direta ou indiretamente interpretadas, o Direito subsidiário e os princípios gerais da ciência de que o magistrado é órgão e aplicador fornecem os elementos para aquilatar a procedência ou improcedência do pedido.

Bem-ameaçadas ficariam a tranquilidade pública e a ordem social, se ao juiz fosse lícito abster-se de julgar, ao invés de suprir as deficiências da lei com as próprias luzes e os ditames da razão e da equidade.” [9]

MAXIMILIANO está a comentar, nesse trecho, o então novel Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1.942, editado pelo positivista comteano, sucessor de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, Getúlio Vargas, que governava sem Congresso, e assinado pelo mítico Oswaldo Aranha, que quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes, e os princípios gerais de direito (artigo 4º), e que na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (artigo 5º).

A integração, que é o processo de suprir a lacuna das normas gerais e abstratas e gerar uma norma individual e concreta, hoje está informada também, no âmbito do direito contratual, do que BOBBIO[10] chama de fontes reconhecidas delegadas, ou seja, costumes aplicados por força de princípios gerais do direito ou postulados filosóficos, que são incorporadas ao texto de lei. Como normas de fontes reconhecidas se têm os artigos 421 e 422 do Código Civil brasileiro[11], que são hoje de grande valia na solução dos litígios que envolvem contratos bancários.

A maior parte dos litígios judiciais envolvendo contratos bancários resulta da inexistência de normas legislativas sistematizadas que atribuam ao poder negocial limites materiais e formais para a confecção de normas contratuais, sendo que o vácuo legislativo provoca um contencioso judicial para fins de interpretação, aplicação ou integração de cláusulas que deveriam prever ou preveem a cobrança das seguintes parcelas, e sua possível contrariedade com o sistema normativo que se aplicaria sobre os contratos bancários: (a) limitação de juros remuneratórios; (b) capitalização de juros moratórios; (c) cobrança de comissão de permanência; (d) cobrança de taxa de abertura ou de concessão de crédito, de emissão de boleto ou carnê e (e) financiamento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) ao mutuário.

Para fins desse artigo, limitemo-nos à análise da resposta do sistema às controvérsias a respeito das taxas de juros contratuais, seus limites e formas de contabilização.

À guisa da completa ausência de normatividade acerca dos contratos bancários, foi em especial esse tipo de contencioso de massa, com certeza mais volumoso que o contencioso tributário produzido pelos Fiscos, com certeza também mais volumoso que o contencioso previdenciário, talvez só não tão volumoso quanto o contencioso do funcionalismo público contra suas respectivas Fazendas Públicas,  que impulsionou a verdadeira revolução no Poder Judiciário brasileiro que resultou da edição das Leis nºs 11.418/2006 e 11.672/2008, que trouxe a baila os artigos 543-B e 543-C do CPC e inaugurou a era do precedente, instituto de Direito típico de países da commow law, como fonte da aplicação do Direito brasileiro, que antes disso somente conhecia  como fonte primordial a lei, e fontes integradoras a jurisprudência e os princípios gerais de direito, e subsidiárias a doutrina e os costumes.[12]

Na senda desse sistema de larga repercussão, o Superior Tribunal de Justiça terminou por normatizar no julgamento dos Recursos Especiais Repetitivos n°s 1.112.879/PR  e 1.112.880/PR, a relevante situação da limitação dos juros remuneratórios nos contratos bancários e da capitalização dos juros.

No Recurso Especial nº 1.112.879/PR, julgado em 12 de maio de 2010 perante a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, acórdão publicado em 19/05/2010 no Diário de Justiça Eletrônico, tratava-se de recurso interposto por instituição financeira contra acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná que em ação de revisão de contrato de cheque especial confirmara sentença de primeira instância jurisdicional para limitar os juros remuneratórios à  taxa de 6% (seis por cento) ao ano e  excluir a capitalização em qualquer periodicidade.

A alegação da instituição financeira era de vulneração do artigo 4º, inciso IX da Lei nº 4.595/64, que dá competência ao Conselho Monetário Nacional para dispor sobre juros remuneratórios em contratos bancários, e do artigo 591 do Código Civil brasileiro, que se remete às taxas do artigo 406 do Código Civil em se tratando de mútuo com fins financeiros.

No caso dos autos, portanto, existia um contrato escrito e uma cláusula na qual a taxa de juros seria fixada pela instituição financeira,  unilateralmente,  como soe ocorrer nesse tipo de contrato de abertura de crédito em conta corrente em que, no mais das vezes,  as taxas flutuam mensalmente e o tomador do crédito apenas tem ciência das taxas por informação em seus extratos.

O Tribunal considerou essa cláusula nula, por abusiva na forma do artigo 51, inciso X do CDC, ou por potestativa, na forma dos artigos 122 do Código Civil de 2002 e 115 do Código Civil de 1916. Diante da nulidade da cláusula, o Tribunal colocou-se diante de uma encruzilhada: ou extirpava a disposição do contrato, considerando não pactuados os juros remuneratórios, dando consistência normativa ao artigo 168, parágrafo único e 169 do Código Civil de 2002, ou estipularia a taxa a ser cobrada, segundo a intenção das partes, para ajustar a disposição nula, na forma do artigo 170 do Código Civil.

A primeira hipótese foi sumamente descartada com base no artigo 592 do Código Civil de 2002, tendo em vista que se presumem fins econômicos no mútuo, passando o Tribunal de imediato à análise da segunda hipótese.

A segunda hipótese é de “preencher a omissão do contrato, em relação aos juros que deixaram de ser previstos na disposição considerada lacunosa. A partir daí surgem dois desdobramentos possíveis: a) perquirir se há previsão legal para o limite de juros, na espécie ou b) caso não haja esse limite legal, deve-se proceder à integração do contrato, de acordo com a vontade presumida das partes.”

Sem delongas, declara o Tribunal “ausência de dispositivo legal indicativo dos juros aplicáveis” e passa a integrar o contrato tendo em vista a intenção das partes ao firmá-lo, na forma do artigo 112 do Código Civil, levando em conta a boa-fé e  os usos e os costumes do local da celebração do contrato.  Então, remetendo-se de imediato a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já consolidada no Recurso Especial Repetitivo n° 1.061.530/RS, indica que a integração do contrato deve ser feita pela aplicação das taxas médias de juros de mercado praticadas pelas instituições financeiras nas operações de crédito realizadas com recursos livres, e cita como supedâneo legal a Circular nº 2.957/1999 do Banco Central, e como fonte de integração “as informações divulgadas por aquela autarquia, as quais são acessíveis por meio da Internet (conforme http://www.bcb.gov.br/?ecoimpom; ou   http://www.bcb.gov.br/?TXCREDMES)”.

A decisão foi unânime, sem destaque de voto e para fins do artigo 543-C do CPC, restou normatizado: “1 – Nos contratos de mútuo em que a disponibilização do capital é imediata, deve ser consignado no respectivo instrumento o montante dos juros remuneratórios praticados. Ausente a fixação da taxa do contrato, deve o juiz limitar os juros à média de mercado nas operações da espécie, divulgada pelo BACEN, salvo se a taxa cobrada for mais vantajosa ao cliente. 2) Em qualquer hipótese, é possível a correção para a taxa média se verificada abusividade  nos juros remuneratórios praticados.”

Primeira observação: O precedente foi editado sobre um ato normativo interno do Banco Central, que não é lei e, portanto, não obedece ao princípio da legalidade, e que somente vincula as entidades subordinadas à fiscalização da autarquia.  A Circular 2.957 do Banco Central que embasou o precedente citado foi revogada em 26/03/2009 pela Circular n° 3.445, que por sua vez fora revogada pela Circular nº 3.567, de 12 de dezembro de 2011.

O problema não é meramente de número de Circulares. É de método de apuração da taxa média de mercado. Antes de ser eleita pelo Superior Tribunal de Justiça como lei geral de juros, a Circular 2957/1999 dispunha que as instituições financeiras deveriam remeter ao Banco Central informações sobre as taxas médias ponderadas, as taxas mínimas e máximas das operações de crédito realizadas nas operações de hot Money, desconto de duplicatas, desconto de notas promissórias, capital de giro, conta garantida, financiamento imobiliário, aquisição de bens, “vendor”, adiantamento sobre contratos de câmbio, export notes, repasses de empréstimos externos, cheque especial, crédito pessoal, aquisição de bens e veículos, cartões de créditos e outras, nas modalidades de pessoas físicas e jurídicas.

A Circular continha um anexo que esclarecia a forma do cálculo da média ponderada, com desdobramento em juros, encargos tributários, tarifas incidentes na operação apurados em termos de taxa efetiva-dia.

A Resolução nº 3.445 extingue o sistema de informações anteriormente mantido na forma das Circular 2957, e passa exigir a entrega de Declarações em relação a todas as operações de crédito realizadas pelas instituições financeiras, seguindo a mesma linha de trabalho a Circular ora vigente, nº 3.567 de 12 de dezembro de 2011.

O Banco Central organiza as informações das taxas médias segundo informações das instituições financeiras. Mas em consulta ao sitio do Banco Central na rede mundial de computadores em 01/02/2014, observa-se que ao contrário do que estava normatizado na Circular 2.957 e estabelecido no acórdão em análise, a taxa média é de medição aritmética, e não ponderada, ou seja, somam-se todas as taxas, dividem-se pelo número de operações, e obtém-se a taxa média, veja-se:

“As taxas de juros apresentadas nesse conjunto de tabelas correspondem a médias aritméticas ponderadas pelos valores das operações contratadas nos cinco dias úteis referidos em cada tabela. Essas taxas representam o custo efetivo médio das operações de crédito para os clientes, composto pelas taxas de juros efetivamente praticadas pelas instituições financeiras em suas operações de crédito, acrescida dos encargos fiscais e operacionais incidentes sobre as operações.As taxas de juros apresentadas correspondem à média das taxas praticadas nas diversas operações realizadas pelas instituições financeiras, em cada modalidade. Em uma mesma modalidade, as taxas de juros podem diferir entre clientes de uma mesma instituição financeira. Taxas de juros variam de acordo com fatores diversos, tais como o valor e a qualidade das garantias apresentadas na operação, a proporção do pagamento de entrada da operação, o histórico e a situação cadastral de cada cliente, o prazo da operação, entre outros. As instituições não relacionadas nas tabelas não operaram nas respectivas modalidades nos períodos referidos ou não prestaram informações ao Banco Central do Brasil. O Banco Central do Brasil não assume nenhuma responsabilidade por defasagem, erro ou outra deficiência em informações prestadas para fins de apuração das taxas médias apresentadas nesse conjunto de tabelas, cujas fontes sejam externas a esta instituição, bem como por quaisquer perdas ou danos decorrentes de seu uso”.http://www.bcb.gov.br/ptbr/sfn/infopban/txcred/txjuros/Paginas/Informacoes-gerais.aspx

Segunda observação: os usos e costumes do local da celebração do contrato é a fonte que menos se presta para integrá-lo, no caso, com uma taxa média de juros de mercado que é obtida da colheita de informações de operações de crédito realizadas do Oiapoque ao Chuí, com instituições financeiras dos mais diversos portes, portfólios e expertises, e em muitos casos, não observando características essenciais do contrato como por exemplo, o risco da operação, que é diversa para cada tomador, ou a qualidade da garantia, entre carros novos e usados no financiamento de veículos.

Terceira observação: continua sendo, na forma do artigo 4º da Lei n° 4.595 de 1964, do Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo Presidente da República, a competência privativa para  disciplinar o crédito em todas as suas modalidades e as operações creditícias em todas as suas formas, inclusive aceites, avais e prestações de quaisquer garantias por parte das instituições financeiras (inciso VI) e limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros, não sendo essa competência do Banco Central do Brasil, lhe faltando a necessária competência para legislar sobre a matéria.

 Não há mal que mal não cause. A subversão do ordenamento jurídico pela omissão em regulamentar os contratos bancários, causa distorções outras inevitáveis e talvez frutos envenenados de uma árvore condenada.

A precariedade legislativa não se se estende às disposições contratuais sobre a capitalização dos juros, embora as interpretações judicantes aqui é que sejam desérticas. O artigo 5° da Medida Provisória n° 2.170-36/2001 dispunha que “nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano”.  Essa norma entrou em vigor em janeiro de 2001. Parece claro que o artigo 591 do Código Civil , que lhe é posterior em vigência, revogou essa norma ao dispor que “destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual”. A isso se empresta o efeito do artigo 3° da Lei de Introdução do Código Civil.[13]

A jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça, entretanto, não observou a aplicação do artigo 591 do CPC, cuja aplicação foi arredada no julgamento do RECURSO ESPECIAL Nº 973.827 – RS.[14]

No voto vencido do Ministro Luis Felipe Salomão, o dispositivo foi citado uma única vez, timidamente, sem maior destaque, e sequer foi transcrito. O outro voto vencido, do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, não teve fundamentação. 

Ficou estabelecido, para fins de precedente em recurso repetitivo, cristalizando-se como nova norma no sistema e portanto, como fonte do direito:

“Teses para os efeitos do art. 543-C do CPC:

- "É permitida a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano em contratos celebrados após 31.3.2000, data da publicação da Medida Provisória n. 1.963-17⁄2000 (em vigor como MP 2.170-36⁄2001), desde que expressamente pactuada."

- "A capitalização dos juros em periodicidade inferior à anual deve vir pactuada de forma expressa e clara. A previsão no contrato bancário de taxa de juros anual superior ao duodécuplo da mensal é suficiente para permitir a cobrança da taxa efetiva anual contratada".

O que tem de (mais) sintomático esse julgado, é que o voto vencedor da relatora Maria Isabel Galotti, dá o tom de que a nova sistemática de precedentes normativos do artigo 543-C do CPC vai mudando o panorama das fontes do direito no ordenamento pátrio:

“Para expor meu entendimento sobre  a  questão, começo por extrair do sistema jurídico pátrio – mediante a análise não apenas da  literalidade das leis, mas sobretudo da respectiva interpretação consolidada pela jurisprudência deste Tribunal – o conceito jurídico do que seja  a  capitalização de juros vedada  em intervalo inferior ao anual pela Lei de Usura e,  atualmente,  admitida pela MP 2.170-36, desde que expressamente pactuada”.

A guisa da ausência de normas específicas, a jurisprudência do Tribunal vai se tornando uma fonte, não só para replicar e reproduzir decisões adequadas a casos concretos, mas também para conceituar institutos de índole econômica com reflexo jurídico, como capitalização de juros.

Há na fundamentação dos dois acórdãos sumamente analisados nesse texto, em especial no primeiro, uma clara tendência funcionalista do Direito, no sentido que o ordenamento deve(ria) responder a postulados da razão que precedem à própria lei fundamental, que são naturais, conhecidos por todos, e imanentes ao ser humano.

Há uma tensão que é muito mais profunda e que em muito supera a tensão entre os princípios “pacta sunt servanda” e “rebus sic standibus”, que durante décadas norteou a discussão sobre contratos na seara pretoriana.

Há uma tensão fundamental intrínseca do jurista, que foi assim explicada por BOBBIO:

“Existe portanto um limite entre positivismo e jusnaturalismo que corta pela metade a pessoa  de cada um com relação ao qual nos vemos na condição de positivistas ou jusnaturalistas, não segundo as épocas ou as ocasiões, mas até segundo a parte que representamos na sociedade.”[15]

8.4.4. Conclusão.

É pelo funcionalismo jurídico então que vai notar-se a maior presença do Estado na regulação dos contratos bancários na atualidade. Ou seja, é pela integração dos contratos bancários em atividade judicante em sede de processos judiciais onde abunda a atividade interpretativa do direito, processo este complicado, moroso, multifacetado e doloroso.

A dinâmica político-social nessa seara é, portanto, de uma tendência liberalizante no centro de poder, na produção das normas jurídicas, arredando de tal forma a intervenção e dirigismo estatal a ponto de criar-se a impressão da existência de um anarquismo, com ausência de Estado, e inversão de papéis entre o Banco central e o Conselho Monetário Nacional, restando a matéria regelada a circulares do Banco Central. Já na outra ponta do sistema, temos um movimento de dirigismo contido, que pretende, ao abrigo dos princípios gerais do direito, transformados ou não em fontes reconhecidas, limitar o poder do capital e dar alguma substância normativa à matéria, de modo a manter um status jurídico entre as partes contratante.

Submeter o mundo dos negócios a tal inversão de procedimento, que é a aplicação do direito às avessas através de buscas integradoras das normas jurídicas pela via judicial, é sem dúvida um entrave à realização do princípio que é a mais perfeita garantia de uma economia de mercado saudável em um mundo globalizado: o princípio da segurança jurídica.

Necessário é discutir a matéria com o pano de fundo do desenvolvimento econômico nacional, preconizado no artigo 3º da Constituição Federal de 1.988, buscando uma regulamentação positiva para os contratos bancários que atinja o desiderato do atual estágio da economia capitalista nacional e corrija as distorções de fontes jurídicas para solução de controvérsias.   

8.4.5.   Bibliografia.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico: tradução Ari Marcelo Solon. 2ª edição, São Paulo, Ed. Edipro, 2014.

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WALD, Arnold. Direito Civil – Direito da Empresa. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

Sobre o autor
Juliano Brito

Especialista em Direito Ambiental pela FEEVALE-RS. Especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP. Graduado pela UNISINOS-RS. MBA em Business Law pela FGV-Rio 2014/2015. Advogado no Rio Grande do Sul, sócio do escritório Juliano Brito Sociedade de Advogados. Autor do livro “Tributação Ambiental”, publicado pela Editora Imprensa Livre em 2011. Co-autor do livro Temas Relevantes de Direito Empresarial publicado pela Lumen Juris em 2014.<br>

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo Publicado na obra Temas Relevantes de Direito Empresarial, organizadora e co-autora Tatiana Bo\natti Pers - Rio de janeiro: Lumen Juris, 2014,

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