Doces ironias do crime

18/07/2014 às 20:06
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Candidatos e autoridades que defendem um sistema prisional menos bárbaro receberão dinheiro do crime organizado.

~~Candidatos e autoridades que defendem um sistema prisional menos bárbaro e, no futuro, quem sabe, capaz de ver cumprir o papel civilizador do direito, receberão apoio e até dinheiro do crime organizado. Por outro lado, o PCC deverá investir em indivíduos que sirvam ao partido ou, então, que já sejam integrantes do movimento e que tenham melhor atuação junto aos três poderes. Há muitas formas de se analisar este fenômeno político. A primeira lição diz que o crime realmente está organizado; duvidar é tolice. Também é elementar o entendimento de que a legislação pouco convence no tratamento da coisa pública e que o Judiciário é moroso na condenação dos criminosos recalcitrantes, contumazes – no popular: “quanto mais”. Outra investida revela que o sistema político é falido: a compra de votos é uma regra; há intensa formação de grupos de pressão (lobbies) para eleger representantes do setor privado; o descolamento orbital da representação popular representa tudo, menos o interesse do povo; vigora o loteamento das instituições públicas e dos partidos políticos. Por fim, em outra reflexão sobressai o arranjo societal brasileiro.
 No século XX falava-se de uma cruenta luta de classes: basta(va) olhar pela janela. Hoje, diferentemente do conceito clássico, a classe trabalhadora em luta contra o capital acabou vertida – com a submissão dos movimentos sociais e sindicais – ao troca-troca político. Salvo poucas exceções, o aparelho estatal libera recursos em troca da desmobilização e da mera reivindicação institucional pelo “direito”. Pois bem, ocorre que a desigualdade real no país é avassaladora, relegando milhões à condição de não-ser. Por sua vez, esses indivíduos querem ter o que os demais conseguem ou conseguiram obter. Esses milhões agem desordenados, entre a mendicância e os bicos do subemprego. Alguns milhares estão alinhados ao crime organizado, no atacado e no varejo. Parte dessa tropa forma uma elite do crime: PCC, CV, ADA, milícias, novo cangaço. A este grupo social específico pode-se aderir o conceitual de classe do lumpem-proletariado: o trapo humano descartado pelo capital e seu sistema produtivo. Ou seja, a luta de classes, no Brasil, deslocou-se do proletariado organizado para o submundo do crime social. Isto ocorre desde 1964, com apoio do Estado, quando se misturaram presos comuns e presos políticos, a partir do Rio de Janeiro. Neste momento, o PCC, que nasceu em São Paulo, já se expandiu para toda a América do Sul.
Giambattista Vico (1688-1744), no livro A Ciência Nova (Rio de Janeiro : Record, 1999), foi um protagonista na sugestão da análise histórica com base na luta de classes. “O homem faz e sofre a história”. Vico apresentou uma trilogia que parte de Roma: aristocracia, democracia, monarquia. Neste sequenciamento, porém, retornou a um “estado bestial” em que não há sociabilidade: stato ferino. Nesta fase, seríamos seres totalmente associais. Entre o “estado bestial” e o nível das repúblicas, há a fase intermediária das “famílias”. Para Vico, o estado de natureza é um estado social primitivo (mas não bestial) e corresponderia à autoridade econômica (oikos: casa) ou familiar. Só que a família era um conjunto de clientes: filhos, servos, vassalos. Esta forma de autoridade social se basearia em uma situação objetiva de desigualdade: 1) desigualdade natural entre pais e filhos; 2) uma desigualdade entre duas classes de homens: os poderosos (já saídos do bestialismo) e os serviçais (seres inferiores submetidos ao estado mais primitivo). Este quadro social, entretanto, alimentaria a rebelião dos escravos, agora movidos pelo desejo de liberdade, ao mesmo tempo em que forçaria os pais das famílias (constituídas de “senhores superiores”) a se unificarem para dominar as rebeliões. A primeira forma de Estado, portanto, seria esta “república aristocrática” e teria por base a desigualdade entre patrícios e plebeus: os primeiros, que gozavam de direitos privados e públicos e, os demais, que não tinham status jurídico assegurado. A fase da autoridade, portanto, originou-se com a requisição do direito de rebelião ou luta de classes. Vico acentuou o princípio de que “é natural que o servo deseje ardentemente escapar da servidão” e ainda destacou a necessidade de evitarmos a armadilha das facilidades do poder: Saepe spectabat ad vim (“tendia sempre à violência”). Fato que respondia com base na prudência: “O uso da violência incita à revolta popular” (p. 409).
A história não é exatamente cíclica, apresenta-se em espiral. No entanto, a miopia e os erros de análise e de ação social perpetuam nossos maiores e piores problemas. A ideologia oligárquica nacional quer manter “tudo como dantes, no quartel de Abrantes”. Todavia, o crime social promete uma doce vingança.
  Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia
Marcos Del Roio
Professor Titular de Ciências Políticas da UNESP – FFC

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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