A cláusula do Senado e a abstrativização do controle concreto de constitucionalidade.

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23/07/2014 às 16:15
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O artigo tem como objeto principal o papel exercido pelo Senado Federal no controle incidental de constitucionalidade, abordando-se o quanto decido pelo Supremo Tribunal Federal na Reclamação 4335.

RESUMO.

            O presente artigo tem como objeto principal o papel exercido pelo Senado Federal no controle incidental de constitucionalidade efetuado no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Tendo como premissas fundamentais os parâmetros históricos e normativos do controle de constitucionalidade, serão estudadas as bases sobre as quais se fundamenta a referida função do Senado. Logo após, será feita uma análise de mudanças legislativas de cunho institucional, verificadas principalmente em âmbito constitucional, no que diz com a eficácia dos precedentes jurisprudenciais, principalmente do Supremo Tribunal Federal. Verificar-se-á qual a influência destas mudanças legislativas sobre a interpretação a ser extraída do art. 52, X, da Constituição Federal. Institutos como repercussão geral, súmula vinculante etc., ambos instigadores da tese da objetivização / abstrativização do recurso extraordinário, serão estudados por necessário ao deslinde da controvérsia. O Supremo Tribunal Federal, no bojo da Reclamação nº 4.335, discutiu a matéria, portanto, faz-se fundamental o estudo das premissas firmadas no bojo do referido processo. Far-se-á, por fim, uma abordagem do quanto decido pelo Supremo na referida Reclamação, concluindo-se pelo acerto, ou não, de sua decisão.

Palavra-chave: Jurisdição constitucional, controle de constitucionalidade, cláusula do Senado, separação de poderes, mutação constitucional.

ABSTRACT.

            This paper has as its main object the function of Senate when occurs an incidental control of constitutionality made under the Federal Supreme Court. The Senate’s function will be studied using as fundamental premises the historic and normative parameters of judicial review. Soon after, will be maid an analysis of legislative changes in institutional feature, occurred principally in the constitutional framework, as far as effectiveness of judicial precedents, particularly the Supreme Court’s. It will verify the influence of these legislative changes on the interpretation to be drawn from the art. 52, X, of the Federal Constitution. Institutes as repercussão geral, súmula vinculante etc., both instigators of the thesis of “objetivização” or “abstrativização” of the recurso extraordinário must be studied during an analysis of the controversy. The Supreme Court, in the Reclamação nº 4.335, discussed the theme, therefore, it is important to study assumptions firmed during the litigation. Will be made, finally, an analysis of the Supreme Court’s decision, concluding the hit, or not, of its purport.

Keywords: Constitutional jurisdiction, judicial review, the Senate clause, separation of powers, constitutional mutation.

            INTRODUÇÃO.         

            No presente artigo será analisado o papel exercido pelo Senado Federal no controle de constitucionalidade incidental efetuado no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Verifica-se que, com base no art. 52, X, da Constituição Federal, é atribuição do Senado suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva daquela Corte. A interpretação a ser conferida ao mencionado dispositivo constitucional foi objeto de acesa controvérsia no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Indagou-se sobre o real papel atribuído ao Senado Federal e a atual interpretação desta atribuição.

            Verifica-se que uma evolução sem precedentes em âmbito normativo acabou por gerar uma série de questionamentos sobre a matéria. Tal evolução foi decorrência de inúmeras inovações legislativas que acabaram por aproximar o sistema judicial brasileiro (civil law) do sistema da common law. Neste novo ambiente institucional abriu-se ensejo a indagações a respeito da eficácia dos precedentes jurisprudenciais, principalmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

            Serão analisadas no decorrer do estudo as premissas valorativas sobre as quais estão ancoradas as bases do controle de constitucionalidade. Tal abordagem será de fundamental importância, na medida em que a função atribuída ao Senado Federal no controle incidental de constitucionalidade tem por pressuposto concepções tradicionais e históricas no que diz com os efeitos das decisões tomadas naquela sede processual. Por isso, uma abordagem histórica do instituto se fez necessária.

            Após o estudo de pressupostos necessários ao deslinde da matéria (o controle de constitucionalidade, sua classificação e métodos, sua legitimidade, e o papel exercido pelo Senado) será feita uma abordagem panorâmica sobre a mencionada evolução institucional verificada no Brasil no que diz com a eficácia expansiva dos precedentes jurisprudenciais. Estes, em decorrência de inovações legislativas verificadas em âmbito constitucional e infraconstitucional, assumem eficácia cada vez mais estendida, ampliando seus efeitos para além das partes em litígio. Tal mudança, significativa diga-se, se dá principalmente no âmbito dos precedentes do Supremo Tribunal Federal. Institutos como repercussão geral, súmula vinculante, e a possibilidade de aplicação monocrática dos precedentes daquela Corte a outros processos, são exemplos de institutos a serem estudados. Neste ponto deverá ser abordada, inclusive, a tese da objetivização/abstrativização do recurso extraordinário.

            O estudo em análise mostra-se de fundamental importância científica na medida em que aborda indiretamente crise institucional hoje observada. Verifica-se, na atual quadra histórica, uma verdadeira proeminência do Judiciário, principalmente do Supremo Tribunal Federal, em detrimento do papel institucional exercido pelos demais Poderes. Neste sentido, indaga-se: teria o Supremo Tribunal Federal legitimidade, por via de mera interpretação, para subtrair uma competência constitucionalmente atribuída ao Senado Federal (art. 52, X, da Constituição Federal)? E mais, seria necessária tal interpretação dadas as atuais atribuições institucionais do Supremo?

            Para o desenvolvimento do presente estudo será utilizada metodologia jurídico-dogmática, utilizando-se de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.

            O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE.

            Qualquer análise cujo objeto seja o controle de constitucionalidade há que ter como início necessário o seu fundamento lógico-jurídico, qual seja, a supremacia que assume o texto constitucional frente às demais espécies normativas. Ou seja, deve-se partir da premissa proposta pela teoria de Hans Kelsen e seu legado maior, o conceito de pirâmide normativa, no sentido de se perscrutar uma coerência lógica ao sistema jurídico-normativo.

            Para Kelsen[1], o ordenamento jurídico-normativo seria hierarquicamente escalonado na medida em que uma norma jurídica de grau inferior retiraria seu fundamento de validade de uma norma hierarquicamente superior. Esse processo teria como base a “conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra”[2], formando-se ao final um sistema fechado e coerente.

            Há que se observar, no entanto, que, ao se falar em sistema fechado e coerente, surge inevitavelmente a fundamental questão que é saber qual seria o último e principal fundamento de validade das normas jurídicas, sob pena de se evoluir ao infinito. Kelsen desenvolve, então, o conceito de “norma fundamental hipotética”, reputando esta última o “fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora”[3].

            Nas palavras de Inocêncio Mártires Coelho (2009, p. 1-2) pode-se perceber, então, que:    

[...] considera-se norma fundamental aquela que constitui a unidade de uma pluralidade de normas, enquanto representa o fundamento de validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa; aquela norma que, pelo fato mesmo de situar-se na base do ordenamento jurídico, há de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por nenhuma autoridade, a qual, se existisse e tivesse competência para editá-la, só disporia dessa prerrogativa em razão de uma outra norma de hierarquia ainda mais elevada, e assim sucessivamente; aquela norma, enfim, cuja validade não pode ser derivada de outra e cujo fundamento não pode ser posto em questão.

            A concepção positivista de Hans Kelsen possui validade epistemológica inquestionável. Porém, há que se fazer uma análise axiológica da questão posta, sob pena de incorrermos no superficialismo metodológico que, muitas vezes, se atribui ao positivismo jurídico. Observando as falhas deste último, Paulo Bonavides (2013, p. 178) nos diz que

um dos traços marcantes do positivismo jurídico-estatal, de feição formalista, esboçado por Laband, aperfeiçoado por Jellinek e conduzido às últimas consequências por Kelsen, como já observou um jurista contemporâneo, é abreviar as reflexões sobre a Constituição para reduzi-la a uma classificação legalista, fixada unicamente sobre o seu exame e emprego como lei técnica de organização do poder e exteriorização formal de direitos. Daqui deriva metodologicamente uma espécie de construtivismo positivista, de cunho neutral e apolítico.

Observe-se, então, que a ficção chamada “norma fundamental hipotética”, que seria o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico-normativo, não resolve questão que se impõe ao deslinde do presente estudo, qual seja, a legitimidade democrática do controle de constitucionalidade. Isso se dá porque, e ainda com Paulo Bonavides, percebe-se que a mencionada “norma”, dada sua fluidez conceitual, é:

 o cordão umbilical que prende o sistema ideal de normas, denominado Estado ou Direito, ao fático ou à “facticidade”. Norma fundamental “hipotética”, pressuposto racional derradeiro da Constituição, ela não tem “a priori nenhum conteúdo”. Sua função exclusiva consiste em instituir “aqui um autocrata, ali o povo como instância de elaboração normativa suprema”. A norma fundamental se converte, portanto, numa Constituição em branco, como diz Ehmke, apta a receber qualquer conteúdo.[4]

            A questão relacionada à legitimidade democrática do controle de constitucionalidade surge, então, como questão central para o desenvolvimento do presente trabalho, afinal, o superficialismo asséptico do positivismo jurídico, como visto, não preenche lacunas metodológicas, sem cujo deslinde não se pode conceber um sistema normativo cuja base axiológica mostra-se avessa ao normativismo mais rasteiro. Nosso sistema jurídico, principiológico a mais não poder, necessita, então, de uma análise alicerçada nos valores constitucionais mais caros e em sua expressão jurídica imediata e mais evidente, mas não única, quais sejam, os princípios constitucionais.

            Neste sentido, impende observar que o controle de constitucionalidade, fundado, e isso é inescapável, na concepção normativista de supremacia da constituição, com esta não se satisfaz, buscando fundamentos outros e mais consistentes[5]. Ou seja, busca-se, sob uma nova perspectiva, alicerces principiológicos que lhe deem fundamento e legitimidade democrática, passando ao largo de questões superficiais como “norma fundamental hipotética” e “pirâmide normativa”.         

            A LEGITIMIDADE DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE.

Mônica Clarissa Hennig Leal (2007, p. 6) diz que “a questão da jurisdição constitucional e sua legitimidade tem sido objeto de inúmeros e acirrados debates teóricos ao longo do tempo”, principalmente a partir do fortalecimento dos Tribunais Constitucionais, o que se deu em meados do século passado, período no qual estes passaram a “avocar para si um papel importante no sentido de concretização e de preservação da ordem social estabelecida”. O controle de constitucionalidade, principalmente o exercido por estes Tribunais, é objeto, desde então, de profunda evolução e desenvolvimento[6].

            A busca de se dar fundamentação legitimadora ao controle de constitucionalidade se baseou, como dito acima, em outras categorias metodológicas que não a simples supremacia jurídico-normativa da Constituição. Passa-se a conceber, então, que a supremacia da constituição, para além da concepção normativista de mero topo de uma pirâmide normativa, decorre de “fundamentos históricos, lógicos e dogmáticos, [...], dentre os quais a posição de preeminência do poder constituinte sobre o poder constituído, a rigidez constitucional, o conteúdo material das normas que contém e sua vocação de permanência” (BARROSO, 2013, p. 107). Disso resulta que:         

O poder constituinte cria ou refunda o Estado, por meio de uma Constituição. Com a promulgação da Constituição, a soberania popular se converte em supremacia constitucional. Do ponto de vista jurídico, este é o principal traço distintivo da Constituição: sua posição hierárquica superior às demais normas do sistema. A Constituição é dotada de supremacia e prevalece sobre o processo político majoritário – isto é, sobre a vontade do poder constituído e sobre as leis em geral – porque fruto de uma manifestação especial de vontade popular, em uma conjuntura própria, em um momento constitucional. (BARROSO, 2013, p. 323)                                 

            Percebe-se, então, que o controle de constitucionalidade, exercido através da chamada jurisdição constitucional, mas não exclusivamente através desta, extrai sua fundamentação teórica da natureza mesma do constitucionalismo moderno. Ao fazer prevalecer o próprio texto constitucional, nada mais faz do que concretizar a vontade popular externada através do poder constituinte originário. Assim, no dizer de Paulo Bonavides (2007, p. 57), “soberania constitucional e soberania popular são fórmulas do mesmo conceito”, e “o Povo é a Constituição, a Constituição é o povo; os dois, com o acréscimo da soberania, compõem a santíssima trindade política do poder”. Nada mais democrático, nada mais legítimo.

            Alexander Hamilton, um dos principais teóricos do movimento constitucionalista moderno, expôs de forma inigualável a fundamentação teórica da superioridade da Constituição. Demais disto, afirmou a necessidade de instituição de uma instância máxima que dê proteção ao texto constitucional face à “miopia das maiorias ocasionais” (COELHO, 2009, p. 15). Estabeleceu, então, e de forma definitiva, a teoria legitimadora do controle de constitucionalidade, cujo exercício seria atribuído aos Juízes, realizando-se através da chamada “jurisdição constitucional”.

            Hamilton nos diz, então, que:

É muito mais racional entender que os tribunais foram concebidos como um corpo intermediário entre o povo e a legislatura, com a finalidade, entre várias outras, de manter esta última dentro dos limites atribuídos à sua autoridade. A interpretação das leis é própria e peculiarmente de incumbência dos tribunais. Uma Constituição é, de fato, uma Lei Fundamental e assim deve ser considerada pelos juízes. A eles pertence, portanto, determinar seu significado, assim como o de qualquer lei que provenha do corpo legislativo. E se ocorresse que entre as duas existisse uma discrepância, deverá ser preferida, como é natural, aquela que possua força obrigatória e validez superiores; em outras palavras, deverá ser preferida a Constituição à lei ordinária, a intenção do povo à intenção dos mandatários. Esta conclusão não supõe de nenhum modo a superioridade do poder judicial sobre o legislativo. Somente significa que o poder do povo é superior a ambos e que onde a vontade legislativa, declarada em suas leis, se acha em oposição com a do povo, declarada na Constituição, os juízes deverão ser governados pela última de preferência às primeiras. Deverão regular suas decisões pelas normas fundamentais e não pelas que não o são.[7]

            Percebe-se uma concepção assaz pragmática na abordagem exposta por Hamilton, o que efetivamente se verificou na história do constitucionalismo norte-americano. Não há na abordagem do citado autor nenhuma preferência injustificada para com a classe dos juízes, isso em detrimento do corpo legislativo. O que se percebe é uma mera acomodação institucional que tem como pressuposto a própria tessitura constitucional em que concebida. Ou seja, não decorre “de nenhum projeto de engenharia política, antes se consolidou ao sabor da própria experiência constitucional” (COELHO, 2009, p. 159). Sua teoria fundamentou o famoso caso Marbury x Madson, verdadeiro paradigma no que diz com o exercício da jurisdição constitucional.

            No Brasil verificou-se o pleno acolhimento das concepções acima expostas no que diz com a jurisdição constitucional[8]. Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal colhem-se inúmeros precedentes em que se afirma e reafirma o exercício legítimo do controle de constitucionalidade por meio do Judiciário. Neste sentido, e à guisa de exemplo, veja-se o que consignado pelo Ministro Celso de Mello em acórdão de sua lavra proferido no âmbito daquela Corte, verbis:

É preciso, pois, reafirmar a soberania da Constituição, proclamando-lhe a superioridade sobre todos os atos do Poder Público e sobre todas as instituições do Estado, o que permite reconhecer, no contexto do Estado Democrático de Direito, a plena legitimidade da atuação do Poder Judiciário na restauração da ordem jurídica lesada e, em particular, a intervenção do Supremo Tribunal Federal, que detém, em tema de interpretação constitucional, e por força de expressa delegação que lhe foi atribuída pela própria Assembleia Nacional Constituinte, o monopólio da última palavra, de que já falava RUI BARBOSA, em discurso parlamentar que proferiu, como Senador da República, em 29 de dezembro de 1914, em resposta ao Senador gaúcho Pinheiro Machado, quando RUI definiu, com precisão, o poder de nossa Suprema Corte em matéria constitucional, dizendo: “(...) Em todas as organizações políticas ou judiciais há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar. O Supremo Tribunal Federal, Senhores, não sendo infalível, pode errar, mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer alguma cousa que deva ser considerada como erro ou como verdade[9].

            CLASSIFICAÇÃO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE.

            O controle de constitucionalidade pode ser classificado em várias espécies, a depender do critério que se utiliza para tal classificação. Gilmar Ferreira Mendes (2009, p. 1.055) aborda três parâmetros classificatórios fundamentais, quais sejam, (a) “quanto ao órgão – quem controla”, podendo ser político, jurisdicional ou mito, a depender do papel institucional exercido pelo órgão responsável pelo controle; (b) “quanto ao modo ou à forma de controle”, podendo ser incidental ou principal, a depender da espécie processual utilizada como instrumento de controle, ou seja, se se trata de questão prejudicial (incidental) dirimida no bojo de qualquer tipo de processo ou ação judicial, ou se questão autônoma e principal em processo cujo objeto seja efetivamente a própria constitucionalidade da espécie normativa; e (c) “quanto ao momento do controle”, podendo ser preventivo ou repressivo/sucessivo, a depender do momento em que realizado, tendo-se como marco temporal o “aperfeiçoamento do ato normativo”.

            Há inúmeras outras espécies de classificação. Faz-se necessário, porém, sendo essencialmente pertinente ao deslinde do presente estudo, a análise da classificação quanto ao modo ou à forma de controle. No sistema constitucional brasileiro, no que diz com o controle de constitucionalidade, adota-se, a partir do que disposto na Carta de 1988, o “sistema eclético, híbrido ou misto, combinando o controle por via incidental e difuso (sistema americano), (...), com o controle por via principal e concentrado, (...), (sistema continental europeu)”[10].

            Ao analisar o texto do referido texto constitucional, Gilmar Mendes (2009, p. 1.112) faz a seguinte síntese no que diz com o sistema de controle de constitucionalidade adotado:         

Assim, ao lado do amplo sistema difuso, que outorga aos juízes e tribunais o poder de afastar a aplicação da lei in concreto (CF de 1988, art. 97, 102, III, a a d, e 105, II, a e b) e dos novos institutos do mandado de segurança coletivo, do mandado de injunção, do habeas data e da ação civil pública, consagra-se, no sistema processual brasileiro: a) a ação direta de inconstitucionalidade do direito federal e do direito estadual em face da Constituição, mediante provocação dos entes e órgãos referidos no art. 103 da Constituição; b) a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal em face da Constituição Federal, mediante provocação dos entes e órgãos referidos no art. 103 da Constituição; c) a representação interventiva, formulada pelo Procurador-Geral da República, contra ato estadual considerado afrontoso aos chamados princípios sensíveis ou, ainda, para assegurar a execução de lei federal; d) a ação direta por omissão, mediante provocação dos entes e órgãos referidos no art. 103 da Constituição.

            O sistema de controle de constitucionalidade na modalidade concentrada ou principal é o que se dá, conforme exposto, por via direta, como objeto principal do processo judicial, ou seja, neste último impugna-se diretamente a validade de determinado ato normativo. Nas palavras de Paulo Bonavides (2013, p. 319), “caracteriza-se esse processo por seu teor sumamente enérgico, pela sua agressividade e radicalismo, pela natureza fulminante da ação direta”. Isso em razão dos efeitos verificados na modalidade, quais sejam, efeitos ex tunc¸ ou seja, retroagindo à data de publicação do ato normativo, e erga omnes, é dizer, válido para todos.

            O sistema de controle difuso, ou incidental, sobre o qual será feita análise mais acurada, como verificado, se dá “por via de exceção”. A inconstitucionalidade do ato normativo é alegada pela parte no bojo de qualquer processo. Nessa modalidade de controle instaura-se um incidente processual de índole prejudicial ao deslinde da controvérsia principal, verificando-se, então, que “a sentença que liquida a controvérsia constitucional não conduz à anulação da lei, mas tão somente à sua não aplicação ao caso particular, objeto da demanda”[11]. A lei continua vigente, porém, não é aplicada à solução da controvérsia travada nos autos da questão principal.

            A importância do estudo dessa última modalidade de controle ao deslinde do presente trabalho mostra-se evidente na medida em que é nela que se observará a aplicação da chamada “cláusula do Senado” (art. 52, X, CF/1988), cerne da controvérsia em análise. Ou seja, é por via do controle incidental de constitucionalidade, especificamente quando verificado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que se dará ensejo à utilização do mencionado instituto processual.

            Sobre a disciplina normativa do controle difuso de constitucionalidade no sistema processual brasileiro, Paulo Roberto de Figueiredo Dantas (2013, p. 196) nos diz de diversas previsões normativas disciplinadoras da matéria. No art. 102, III, da Constituição Federal prevê-se o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, através do recurso extraordinário, de controvérsias de índole constitucional travadas em casos concretos que tenham sido decididas em última ou única instância[12]. A Lei nº 8.038/1990 (art. 26 e ss.) trata do mesmo assunto, além do próprio Código de Processo Civil, que também disciplina o recurso extraordinário. Por fim, Dantas cita o Código de Processo Civil (art. 480 e ss.) quando este disciplina o controle difuso de constitucionalidade efetuado perante os Tribunais de Segundo Grau.

            Na modalidade de controle de constitucionalidade difuso, como dito acima, dá-se ensejo a aplicação do instituto processual sobre o qual deteremos nossa análise. Verifica-se que a Constituição de 1988, em seu art. 52, X, traz como competência privativa do Senado Federal “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. Tal disposição normativa vige no direito brasileiro desde a Constituição de 1934[13].

            Esta atribuição do Senado Federal se dará somente no âmbito de controle incidental de constitucionalidade efetuado no Supremo Tribunal Federal, relembrando que tal modalidade de controle se dá em processos subjetivos, cuja eficácia da decisão tomada será verificada, em regra, somente entre as partes litigantes, ou seja, a coisa julgada terá eficácia exclusivamente inter partes. Verifica-se então que, tendo sido declarada a inconstitucionalidade de qualquer lei[14] em processo de índole subjetiva que tenha tramitado no Supremo Tribunal Federal, será atribuição do Senado Federal suspender a execução do referido ato normativo nos moldes em que disciplinado em seu Regimento Interno[15].

            A razão histórica de tal procedimento é verificada principalmente ao se perceber que, a despeito de toda a fundamentação teórica do controle de constitucionalidade em âmbito judicial, faz-se necessário, no âmbito da jurisdição constitucional brasileira, dadas as suas raízes históricas, conceber instituto que adaptasse as diretrizes fundamentais do controle de constitucionalidade ao sistema processual pátrio. Ou seja, concebidas suas bases e diretrizes fundamentais no direito norte-americano, o controle de constitucionalidade, transposto ao sistema constitucional brasileiro, precisou de certas adaptações para sua plena aplicabilidade[16].

            Sobre o ponto, Luís Roberto Barroso (2009, p. 129) diz que:         

A razão histórica -  e técnica – da intervenção do Senado é singelamente identificável. No direito norte-americano, de onde se transplantara o modelo de controle incidental e difuso, as decisões dos tribunais são vinculantes para os demais órgãos judiciais sujeitos à sua competência revisional. Isso é válido inclusive, e especialmente, para os julgados da Suprema Corte. Desse modo, o juízo de inconstitucionalidade por ela formulado, embora relativo a um caso concreto, produz efeitos gerais. Não assim, porém, no caso brasileiro, onde a tradição romano-germânica vigorante não atribui eficácia vinculante às decisões judiciais, nem mesmo às do Supremo Tribunal Federal. Desse modo, a outorga ao Senado Federal de competência para suspender a execução da lei inconstitucional teve por motivação atribuir eficácia geral, em face de todos, erga omnes, à decisão proferida no caso concreto, cujos efeitos se irradiam, ordinariamente, apenas em relação às partes do processo.

            Discute-se a respeito do papel exercido pelo Senado Federal quando da edição da resolução que veiculará esta sua atribuição. Seria esta atribuição meramente protocolar, sendo função do Senado unicamente dar publicidade à decisão tomada pelo Supremo, ou teria função mais proativa, possuindo verdadeiro sentido político-institucional?         

            O PAPEL DO SENADO FEDERAL NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE.

            O Senado Federal, desde a Constituição de 1934, tem como atribuição suspender, por meio de resolução, a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Tal função do Senado, como dito acima, deita raízes na origem histórica do controle de constitucionalidade brasileiro. É resultado de um necessário processo de adaptação deste a um sistema judicial no qual não se verifica a eficácia vinculante dos precedentes jurisprudenciais, como se observa no sistema de common law (stare decisis)[17], berço do controle de constitucionalidade.

            A função atribuída ao Senado Federal, tendo como pressuposto lógico o próprio sistema judicial brasileiro, se divide, pois, em (a) emprestar “eficácia erga omnes às decisões definitivas sobre inconstitucionalidade nos recursos extraordinários”[18], ou mesmo, como se verifica na análise da jurisprudência do Supremo, em qualquer outra classe processual cujos efeitos da decisão sejam inter partes, a exemplo do habeas corpus[19].

            Além disso, identifica-se nesta atribuição do Senado Federal o papel de (b) atribuir legitimação democrática ao controle de constitucionalidade efetuado perante um dos órgãos do Poder Judiciário[20]. Este último Poder, tendo como método de atuação uma concepção essencialmente, porém não exclusivamente, técnica no manejo do Direito, careceria de legitimação democrática para expungir do ordenamento jurídico norma elaborada pelos representantes do povo em procedimento eminentemente político, e, teoricamente, democrático.

            Com relação a primeira assertiva no que diz com o papel do Senado Federal, ou seja, a atribuição de eficácia “erga omnes às decisões definitivas sobre inconstitucionalidade” (“a”), verifica-se uma necessidade premente de revisitação, senão revisão, de suas premissas. Ora, desde 1934, quando do surgimento da participação do Senado Federal no controle de constitucionalidade incidental no âmbito do Supremo, período no qual “medrava certa concepção da divisão de Poderes, há muito superada”[21], a evolução doutrinária, jurisprudencial e, principalmente, legislativa foram enormes.

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            De lá para cá, principalmente a partir do texto constitucional de 1988 e posteriores emendas constitucionais, pode-se perceber uma verdadeira reviravolta na disciplina normativa do controle de constitucionalidade e, também, uma mudança significativa no que diz com a eficácia dos precedentes jurisprudenciais no sistema processual brasileiro.

            Quanto ao próprio modelo normativo constitucional do controle de constitucionalidade, Gilmar Mendes (2009, p. 1.134) no diz que:

A constituição de 1988 reduziu o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade (art. 103), permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas. A ampla legitimação, a presteza e a celeridade desse modelo processual, dotado inclusive da possibilidade de se suspender imediatamente a eficácia do ato normativo questionado, mediante pedido de cautelar, fazem com que as grandes questões constitucionais sejam solvidas, na sua maioria, mediante a utilização da ação direta, típico instrumento do controle concentrado. Assim, se continuamos a ter um modelo misto de controle de constitucionalidade, a ênfase passou a residir não mais no sistema difuso, mas no de perfil concentrado.

            Verifica-se, portanto, que a partir da Constituição de 1988, há uma proeminência significativa do controle concentrado/abstrato de constitucionalidade, em detrimento do controle difuso/concreto. Disso resulta que um dos efeitos desejados ao se atribuir papel atuante ao Senado Federal no controle de constitucionalidade incidental efetuado pelo Supremo, qual seja, a atribuição de eficácia erga omnes às decisões deste último, acaba por perder parte de sua razão de ser em vista da posição proeminente assumida pelo controle concentrado/abstrato de normas, cujos efeitos da decisão proferida em sua sede são, desde já, e por força de disposição constitucional[22], erga omnes.

            Tratando sobre o tema do papel do Senado Federal sob esta perspectiva, ou seja, a função de atribuir eficácia erga omnes às decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle incidental de constitucionalidade, Luís Roberto Barroso (2009, p. 131) afirma, inclusive, que:

A verdade é que, com a criação da ação genérica de inconstitucionalidade, pela EC n. 16/65, e com o contorno dado à ação direta pela Constituição de 1988, essa competência atribuída ao Senado tornou-se um anacronismo. Uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, seja em controle incidental ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos. Respeitada a razão histórica da previsão constitucional, quando de sua instituição em 1934, já não há lógica razoável em sua manutenção.

            A afirmação acima, bastante incisiva no que diz com a desnecessidade da atuação do Sendo Federal sob a perspectiva da atribuição de eficácia erga omnes às decisões do Supremo, se dá em razão do que abaixo será abordado no que diz com a eficácia dos precedentes daquela Corte e a relação desta com aqueles.         

            A EFICÁCIA DOS PRECEDENTES.

Conforme consignado acima, além do mencionado fortalecimento do controle concentrado/abstrato de constitucionalidade, observou-se uma série de mudanças legislativas significativas também no que diz com a eficácia atribuída aos precedentes jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal em geral. Ocorreu, desde então, uma verdadeira e inquestionável aproximação do sistema judicial brasileiro, de origem romano-germânica (civil law), com o sistema anglo-americano (common law) e a stare decisis[23].

            Neste sentido, ainda com Gilmar Mendes (2009, p. 1.136), percebe-se que com o advento da Lei nº 8.038/1990, que disciplina o processo no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, e posteriormente com reforma[24] procedida no próprio Código de Processo Civil, a eficácia atribuída aos precedentes de ambas as cortes modificou-se de maneira ímpar.

            Nos termos do art. 38 da Lei nº 8.038/1990, “o Relator, no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça, decidirá o pedido ou o recurso que haja perdido seu objeto, bem como negará seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível ou, improcedente ou ainda, que contrariar, nas questões predominantemente de direito, Súmula do respectivo Tribunal”.

Quanto ao Código de Processo Civil, seu art. 557 dispõe que “o relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior”. E o parágrafo 1º-A do referido dispositivo dispõe, por fim, que, “se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso”.

            As disposições normativas vistas acima tratam especificamente do recurso extraordinário e do recurso especial, sendo o primeiro de competência do Supremo Tribunal Federal e o segundo de competência do Superior Tribunal de Justiça. Tendo em conta os estreitos limites do presente estudo, será dada ênfase ao quanto disposto sobre o recurso extraordinário e as mudanças sofridas por este último em decorrência dessas e de outras inovações legislativas.

            Analisando a nova disciplina normativa do recurso extraordinário, principalmente no ponto que os dispositivos mencionados acima modificaram sua conformação normativa, Gilmar Mendes (2009, p. 1.137) faz as seguintes considerações:

Tem-se, pois, que, com o advento dessa nova fórmula, passou-se a admitir não só a negativa de seguimento de recurso extraordinário, nas hipóteses referidas, mas também o provimento do aludido recurso nos casos de manifesto confronto com a jurisprudência do Supremo Tribunal, mediante decisão unipessoal do relator. Também aqui parece evidente que o legislador entendeu possível estender de forma geral os efeitos da decisão adotada pelo Tribunal, tanto nas hipóteses de declaração de inconstitucionalidade incidental de determinada lei federal, estadual ou municipal – hipótese que estaria submetida à intervenção do Senado -, quanto nos casos de fixação de uma dada interpretação constitucional pelo Tribunal. Ainda que a questão pudesse comportar outras leituras, é certo que o legislador ordinário, com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, considerou legítima a atribuição de efeitos ampliados à decisão proferida pelo Tribunal, até mesmo em sede de controle incidental.

            Verifica-se, portanto, que, no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal, a eficácia de seus precedentes sofre uma expansão subjetiva, atribuindo-se ao Relator, monocraticamente, a possibilidade de aplicar os precedentes jurisprudenciais da Corte a casos futuros que tratem da mesma matéria. Isso se dá, inclusive, quando há a declaração de inconstitucionalidade incidental no bojo do precedente invocado como paradigma. Ou seja, o juízo de inconstitucionalidade verificado em determinado processo, mesmo sem ter-se verificado a suspenção da lei declarada inconstitucional, em conformidade com o procedimento atribuído ao Senado Federal, será estendido a outros processos por meio de mera decisão monocrática proferida pelo seu Relator.

            Por outro lado, a eficácia dos precedentes do Supremo Tribunal Federal para fora da órbita da própria Corte também sofreu ampliação significativa, isso em razão da reforma procedida pela Lei nº 9.756/98 no Código de Processo Civil. A referida lei acrescentou um parágrafo único ao art. 481 do CPC dispondo que os “órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a arguição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão”.

Trata o caput do referido dispositivo do Código de Processo Civil sobre a arguição de inconstitucionalidade alegada pelas partes no bojo de processos em tramitação nos diversos Tribunais. Tendo sido a arguição acolhida pela Turma ou Câmara a qual tenha tocado o conhecimento do incidente, o procedimento a ser seguido seria a lavratura do acórdão e posterior submissão da questão ao tribunal pleno do respectivo Tribunal. O referido parágrafo único, porém, dispensa tal submissão “quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão”.

Segundo Nicole P. S. Mader Gonçalves (2011, p. 522) o referido dispositivo, acrescentado pela Lei nº 9.756/98 ao Código de Processo Civil, funciona como verdadeira exceção ao princípio constitucional da reserva de plenário estabelecido no art. 97 da Constituição Federal, segundo o qual “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de [...] ato normativo do Poder Público”. Esta exceção, segundo a referida autora, é responsável por modificação “substancial no controle difuso de constitucionalidade, uma vez que rompe com a tradição dos efeitos inter partes; os quais passam a ser providos de verdadeiro efeito vinculante, típico do controle de constitucionalidade concentrado e abstrato”.

         A REPERCUSSÃO GERAL.

Ainda analisando as mudanças significativas no que diz com o recurso extraordinário e a eficácia das decisões neste proferidas, porém agora sob outro viés, verifica-se o surgimento, no próprio texto constitucional, do novel instituto da repercussão geral. Segundo o art. 102, § 3º, da Constituição Federal, dispositivo introduzido pela Emenda Constitucional nº 45/2004, “no recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.

            O Código de Processo Civil, nos arts. 543-A e 543-B, acrescentados àquele diploma normativo pela Lei nº 11.418/2006, disciplina parcialmente, e em linhas gerais, o instituto, remetendo ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal a disciplina mais minudente quanto à sua aplicação no âmbito daquela Corte. O Regimento Interno do Supremo o faz nos artigos 322 e ss., além de outros dispositivos esparsos no seu texto.

            Verifica-se, da análise dos referidos diplomas normativos, que a repercussão geral surge como novel instituto capaz de expandir os efeitos do que decidido em sede de recurso extraordinário no âmbito do Supremo Tribunal Federal[25]. O efeito da decisão tomada em sede de recurso extraordinário, nos moldes em que disciplinado o instituto da repercussão geral, será vinculante para o Supremo Tribunal Federal na medida em que “negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão de tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal”[26].

            A expansão dos efeitos do que decidido em sede de recurso extraordinário por meio do instituto da repercussão geral, se dá, segundo Ana Carolina Squadri Santana:

(...) objetivando priorizar o papel do STF como Corte Constitucional, bem como para servir de “mecanismo de racionalização do trabalho”, já que a decisão sobre a repercussão geral de um recurso irá refletir nos demais processos que possuem questões idênticas (efeito multiplicador). Sendo reconhecida a repercussão geral, os recursos sobre a mesma matéria serão sobrestados para aguardar o julgamento do leading case pelo STF, “eliminando a necessidade de remessa de todas as ações individuais”[27].

         

            A SÚMULA VINCULANTE.

            Outro instituto que exerceu enorme influência na instituição de uma verdadeira expansão subjetiva da eficácia das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal é a Súmula Vinculante. Dispõe o art. 103-A da Constituição Federal, dispositivo introduzido pela Emenda Constitucional nº 45/2004, que o “Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”.

            O instituto da Súmula Vinculante, segundo Andre Vasconcelos Roque, “serve especialmente ao controle incidental de constitucionalidade, uma vez que tem como pressuposto a reiteração de julgados”, sendo uma “alternativa para conferir vinculatividade às decisões preferidas pelo Supremo Tribunal Federal em controle incidental, mesmo na falta de atuação do Senado Federal”[28].

            No mesmo sentido, Nicole P S. Mader Gonçalves (2011, p. 526) afirma, de forma peremptória, que

Assim, diante da necessidade de criar um mecanismo de vinculação das decisões proferidas pelo STF, especialmente em sede de controle difuso, que contornasse a exigência do art. 52, inc. X, da Constituição, a EC 45/04 deu origem à polêmica súmula vinculante; instituto que tem evidente inspiração no sistema da common law, no qual os precedentes judiciais desempenham um papel fundamental, comprovando a tendência de aproximação entre as duas grandes matrizes jurídicas do Ocidente (...).[29]

            A “OBJETIVIZAÇÃO” OU “ABSTRATIVIZAÇÃO” DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.

            Observa-se, nesta série de mudanças de ordem legislativa que ocorreram no sistema processual brasileiro, principalmente no que diz com a jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal e a eficácia de suas decisões quando proferidas em processos subjetivos, uma verdadeira mudança de ordem institucional. Como visto acima, a força dos precedentes daquela Corte assume feição cogente sub diversos ângulos e perspectivas. Surge, inclusive, a tese da objetivização ou abstrativização do recurso extraordinário.

            Neste cenário, o papel atribuído ao Senado Federal no controle incidental de inconstitucionalidade é amplamente questionado, principalmente em razão da mencionada objetivação/abstrativização de procedimento recursal eminentemente subjetivo, qual seja, o recurso extraordinário. Neste sentido, verifica-se que:

Diante do aprimoramento do sistema de controle de constitucionalidade e da compreensão dos objetivos desse instrumento recursal, principalmente a de preservação da hierarquia da Constituição e a de uniformização da interpretação dos dispositivos da lei federal, surgiu a tese da objetivização do recurso extraordinário, segundo o qual os efeitos de sua decisão deveriam repercutir além da relação processual travada no caso sob análise, deixando de ser inter partes e passando a ser considerado erga omnes, de modo que a decisão, para ser efetiva, devesse ser observada por todos os demais órgãos do Poder Judiciário. (Denise Maria Rodríguez Moraes. O Supremo Tribunal Federal e a eficácia vinculante de suas decisões. In: Processo constitucional / Ana Carolina Squari Santana ... [et al.]; coordenação Luiz Fux – 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.p. 319)

            Como dito, sob esta perspectiva, qual seja, a eficácia da decisão proferida em sede de recurso extraordinário, o papel atribuído ao Senado Federal no controle incidental de inconstitucionalidade fica deveras esvaziado na medida em que:

A tese da objetivização dos recursos extraordinários equipara, assim, os efeitos da decisão acerca da questão constitucional proferida em sede de controle difuso aos da decisão proferida em sede de controle concentrado, sem que haja a necessidade de qualquer manifestação do Senado Federal. A decisão incidental passa a ser revestida de eficácia erga omnes e de caráter vinculante.[30]         

            Nesse processo de gestação da chamada “objetivização” do recurso extraordinário verifica-se uma proeminência do instituto da repercussão geral. Ora, visando racionalizar o exercício da jurisdição no âmbito do Supremo Tribunal Federal a repercussão geral nada mais faz que transformar um instituto de índole eminentemente subjetiva, o recurso extraordinário, em mais um instrumental de “defesa da ordem constitucional objetiva” (MENDES, 2011, p. 114), juntamente com todo o rol de institutos processuais com este mister, ou seja, a ação direta de inconstitucionalidade, a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, a ação declaratória de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental.

            Se o objetivo do recurso extraordinário, dadas suas novas balizas normativas, é a defesa da “ordem constitucional objetiva”, e se a eficácia dos precedentes do Supremo Tribunal Federal assume força cada vez mais expansiva, o papel exercido pelo Senado Federal no controle de constitucionalidade incidental, sob a perspectiva da atribuição de eficácia erga omnes à decisão proferida pelo Supremo nesta sede processual, seria um verdadeiro anacronismo, sendo necessária uma nova interpretação ao instituto. É o que se abordará logo abaixo levando-se em conta o próprio entendimento do Supremo sobre o ponto.         

            A CLÁUSULA DO SENADO COMO FATOR DE LEGITIMAÇÃO.

O papel legitimador verificado na função exercida pelo Senado Federal, no que diz com o controle de constitucionalidade incidental exercido pelo Supremo, foi um dos pontos mencionados acima quanto às duas funções atribuídas ao Senado na matéria, quais sejam, “(a) emprestar “eficácia erga omnes às decisões definitivas sobre inconstitucionalidade nos recursos extraordinários”, questão já enfrentada, e “(b) atribuir legitimação democrática ao controle de constitucionalidade efetuado perante um dos órgãos do Poder Judiciário”, ponto este a ser, desde agora, analisado.

             Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (2004, p. 49), analisando a por ele chamada “legitimidade das decisões jurisdicionais”, formula duas questões cujas respostas perpassam toda a temática ora em análise, quais sejam: “O que legitima o exercício da jurisdição, tão-somente a forma de seleção dos juízes? Quais são os pressupostos de legitimidade do exercício da Jurisdição?”. Após o que, diz ele, a guisa de resposta, que:

Há muito, a questão acerca da legitimidade das decisões judiciais deixou de ser um problema que se reduza à pessoa do juiz. O exercício adequado da Jurisdição não se legitima simplesmente pelo fato de o juiz ter sido eleito segundo o princípio da maioria. (...) O que justifica a legitimidade das decisões, no contexto de uma sociedade plural e democrática, são antes garantias processuais atribuídas às partes, principalmente a do contraditório e a da ampla defesa, além da necessidade de fundamentação das decisões. A construção participada da decisão judicial, garantida num nível institucional, e o direito de saber sobre quais bases foram tomadas as decisões dependem não somente da atuação do juiz, mas também do Ministério Público, das partes e dos advogados.

            No que diz especificamente com a jurisdição constitucional e sua legitimidade democrática, o mesmo autor diz que esta, a jurisdição constitucional

deve garantir, de forma constitucionalmente adequada, a participação, nos processos constitucionais de controle judicial de constitucionalidade da lei e do processo legislativo, dos possíveis afetados por cada decisão, em matéria constitucional, através de uma interpretação construtiva que compreenda o próprio Processo Constitucional como garantia das condições para o exercício das autonomia jurídica dos cidadãos. Ao possibilitar a garantia dos direitos fundamentais processuais, nos próprios processos constitucionais de controle judicial de constitucionalidade das leis e do processo legislativo, a Jurisdição Constitucional também garantirá as condições para o exercício da autonomia jurídica dos cidadãos, (...)[31].         

Verifica-se, portanto, que a palavra chave no que diz com a legitimidade democrática dos provimentos jurisdicionais, seja no campo da jurisdição em geral, seja no da jurisdição constitucional, é “participação”. A participação é um dos postulados fundamentais no que diz o processo jurisdicional na medida em que a ampla defesa e o contraditório, duas vertentes do devido processo legal, nada mais são que a possibilidade de atuação/participação contraditória das partes em litígio. Neste sentido, Dinamarco (2013, p. 220) afirma que “a participação a ser franqueada aos litigantes é uma expressão da ideia, plantada na ordem política, de que o exercício do poder só se legitima quando preparado por atos idôneos segundo a Constituição e a lei, com a participação dos sujeitos interessados”.

            Tendo em conta a chamada “objetivização” do recurso extraordinário e a extensão dos efeitos da decisão neste proferida para fora da relação processual travada no processo paradigma, a noção de “sujeitos interessados” nessa classe processual assume contornos deveras ampliado. Surge a questão fundamental no sentido de se oportunizar, aos sujeitos que terão de qualquer maneira sua esfera jurídica atingida pela decisão tomada, a faculdade de falar nos autos visando interferir no convencimento do julgador.

            O legislador, percebendo esse movimento de objetivização de processos de índole subjetiva, veio normatizar este vácuo de legitimidade que se estava a desenvolver[32], e o fez por meio da instituição da figura do amicus curiae. A Lei nº 9.868/99, tendo disciplinado o procedimento das ações do controle concentrado/abstrato de constitucionalidade, através do seu art. 29, inseriu três parágrafos ao art. 482 do Código de Processo Civil, em cujo capítulo se trata do processo nos Tribunais e da declaração de inconstitucionalidade incidental. Vejamos o texto dos referidos dispositivos, verbis:

§ 1o O Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato questionado, se assim o requererem, poderão manifestar-se no incidente de inconstitucionalidade, observados os prazos e condições fixados no Regimento Interno do Tribunal.

§ 2o Os titulares do direito de propositura referidos no art. 103 da Constituição poderão manifestar-se, por escrito, sobre a questão constitucional objeto de apreciação pelo órgão especial ou pelo Pleno do Tribunal, no prazo fixado em Regimento, sendo-lhes assegurado o direito de apresentar memoriais ou de pedir a juntada de documentos.

§ 3o O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá admitir, por despacho irrecorrível, a manifestação de outros órgãos ou entidades.

            No que diz especificamente com os recursos extraordinários submetidos ao procedimento relativo ao instituto da repercussão geral, dispõe o parágrafo 6º, do art. 543-A, do Código de Processo Civil, que “o Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal”. O Regimento Interno daquela corte, em seu art. 323, § 3º, praticamente repete o texto do referido dispositivo dispondo que “mediante decisão irrecorrível, poderá o(a) Relator(a) admitir de ofício ou a requerimento, em prazo que fixar, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, sobre a questão da repercussão geral”.

            Verifica-se, ainda, a possibilidade regimental de se “convocar audiência pública para ouvir o depoimento de pessoas com experiência e autoridade em determinada matéria, sempre que entender necessário o esclarecimento de questões ou circunstâncias de fato, com repercussão geral e de interesse público relevante, debatidas no âmbito do Tribunal”, a teor do que disposto no art. 13, XVII, e 21, XVII, ambos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Interessante notar que, nas referidas audiências públicas, observar-se-á o seguinte procedimento[33]:

I – o despacho que a convocar será amplamente divulgado e fixará prazo para a indicação das pessoas a serem ouvidas;

II – havendo defensores e opositores relativamente à matéria objeto da audiência, será garantida a participação das diversas correntes de opinião;

III – caberá ao Ministro que presidir a audiência pública selecionar as pessoas que serão ouvidas, divulgar a lista dos habilitados, determinando a ordem dos trabalhos e fixando o tempo que cada um disporá para se manifestar;

IV – o depoente deverá limitar-se ao tema ou questão em debate;

V – a audiência pública será transmitida pela TV Justiça e pela Rádio Justiça;

VI – os trabalhos da audiência pública serão registrados e juntados aos autos do processo, quando for o caso, ou arquivados no âmbito da Presidência;

VII – os casos omissos serão resolvidos pelo Ministro que convocar a audiência.

            Ao se analisar as disposições normativas acima percebe-se o claro objetivo do legislador de estabelecer um sistema processual de participação democrática no âmbito dos Tribunais, e, principalmente, no Supremo Tribunal Federal. Trata-se de um movimento de democratização e ao mesmo tempo de legitimação da jurisdição.

A figura do amicus curiae surge, desta forma, como verdadeira renovação axiológica no que diz com o exercício participativo da jurisdição constitucional. A respeito do instituto, Nicole P. S. Mader Gonçalves (2011, p. 503) diz que o amicus curiae se trata de

um instrumento de integração entre a jurisdição constitucional, os poderes públicos e a sociedade, funcionando como um canal de abertura para a participação democrática. Mais ainda, a integração social propiciada pelo amicus curiae indica a possibilidade de se ter uma compreensão ampliada da democracia, uma compreensão verdadeiramente deliberativa, que vai além da representação da esfera legislativa e executiva, gerando no seio da própria jurisdição constitucional um rico debate constitucional; respeitando, logicamente, os limites do Estado de Direito.

            Para além desta função “integrativa”, a mesma doutrinadora observa outra função atribuída ao amicus curiae, qual seja, a função “informativa”, na medida em que chamando a participar do processo diferentes sujeitos interessados, não somente as partes, o amicus curiae traz á jurisdição constitucional “informações e opiniões que podem auxiliar na construção de uma decisão sólida, identificando as posições dos grupos interessados e apresentando todas as variáveis que devem ser incluídas na reflexão judicial na ocasião da decisão”[34].

            O amicus curiae surge, portanto, como instituto voltado à ampliação das balizas relacionadas à participação. Verifica-se que, com o advento da tese da “objetivização” do recurso extraordinário, nada mais salutar que oportunizar aos interessados naquele provimento jurisdicional, dados os efeitos que dele advirão, a faculdade de contribuir na formação do convencimento do julgador. Aumenta-se, com isso, o coeficiente de legitimidade democrática da decisão a ser proferida. Além do mais, é uma oportunidade de o julgador obter informações úteis à formação de seu convencimento e que, provavelmente, não teria acesso numa relação processual subjetivamente restrita a autor e réu.

            DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA RECLAMAÇÃO Nº 4.335.

            Tendo em conta as premissas teóricas acima abordadas, abre-se ensejo, desde já, à análise do quanto discutido no âmbito do Supremo Tribunal Federal a respeito da atualidade, aplicabilidade e interpretação do art. 52, X, da Constituição Federal. Como dito, o referido dispositivo, ao atribuir ao Senado Federal a função de suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo Supremo, repete disposições constitucionais presentes em nosso meio jurídico desde a Constituição de 1934. De lá para cá, já se foram algumas Constituições, inúmeros diplomas legislativos nasceram e morreram, novas teses jurídicas floresceram e outras foram deixadas de lado. O Supremo Tribunal Federal, no bojo da Reclamação nº 4.335, de relatoria do Min. Gilmar Mendes, teve a oportunidade de se debruçar sobre a matéria. Senão vejamos[35].

            Tratou-se, no mencionado processo, de reclamação ajuizada pela Defensoria Pública da União em face de decisão preferida pelo Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco. A causa de pedir da reclamação ajuizada foi a suposta ofensa à autoridade de decisão proferida no HC nº 82.959, do Supremo Tribunal Federal, em razão de indeferimento de pedido de progressão de regime em favor de condenados a penas de reclusão, em regime integralmente fechado, em razão da prática de crimes hediondos.

            Por fundamental ao entendimento da controvérsia, necessário se faz tecer breves comentários a respeito da reclamação e sua conformação normativa. A reclamação, como instituto processual sui generis[36], é cabível no âmbito do Supremo Tribunal Federal, segundo o art. 102, I, L, da Constituição Federal, “para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões”. Além dessa hipótese, com o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, que criou o instituto da Súmula Vinculante (art. 103-A, da CF) foi criada outra modalidade em que cabível a reclamação. O parágrafo 3º do referido dispositivo dispõe que, do “ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso”[37].

            A reclamação é instrumento processual de extração constitucional cuja precípua função é assegurar ao Supremo Tribunal Federal a efetividade de seus provimentos jurisdicionais e a preservação de sua competência em face de eventuais usurpações perpetradas por outros órgãos do judiciário. Ou seja, desobedecida decisão daquela Corte, ou usurpada sua competência, abre-se ensejo à impugnação por via de reclamação diretamente no âmbito do Supremo.

            De importância ímpar para o deslinde da presente controvérsia é a verificação de quais são as situações jurídicas que darão ensejo à utilização da via processual da reclamação. Como visto, uma das finalidades do instituto é assegurar a preservação da competência do Supremo Tribunal Federal. A competência daquela Corte está elencada no art. 102 da Constituição Federal. Verificando-se situação em que determinado órgão do judiciário, que não o Supremo, esteja processando demanda cujo objeto esteja elencado no referido dispositivo, poderá a parte interessada ajuizar reclamação para que aquele Tribunal, o STF, avoque para si o julgamento da questão, caso verifique ser realmente sua a competência.

            Outra hipótese de cabimento da reclamação é a desobediência a decisão já tomada pelo Supremo Tribunal Federal e que de, qualquer maneira, não esteja sendo cumprida. Decisões tomadas em sede de controle concentrado/abstrato (ADIn, ADC, ADPF etc.), cujos efeitos são erga omnes e vinculantes em relação ao judiciário e a administração pública, e mesmo decisões tomadas em outras classes processuais (HC, RE, AI etc.), cujos efeitos são inter partes, são passíveis de desobediência. O cabimento num e noutro caso, porém, é diferenciado a partir dos efeitos que uma e outra espécie de decisão produzem. Tratando-se de decisão com efeito vinculante e eficácia erga omnes, como o são as tomadas em sede de controle concentrado/abstrato de constitucionalidade, qualquer pessoa é legitimada a ajuizar a reclamação visando assegurar seu cumprimento, seja pelo judiciário seja pela administração pública, desde que demostrado seu interesse jurídico (interesse de agir)[38]. Em casos de processos subjetivos, cujos efeitos em regra são inter partes, parte legitimada para o ajuizamento de reclamação é a que tenha de qualquer forma participado do processo cuja decisão esteja sendo desobedecida[39].

            Fixadas esta premissas, fundamentais ao deslinde da presente controvérsia, necessário observar que a reclamação de que ora se trata (Rcl nº 4.335), e em cujo bojo foi discutida a questão relativa à interpretação dada ao art. 52, X, da Constituição Federal, foi ajuizada tendo como paradigma desobedecido processo cujos efeitos da decisão são eminentemente inter partes, qual seja, um Habeas Corpus. No Habeas Corpus nº 82.959, tendo como paciente Oseas de Campus, parâmetro invocado pela Defensoria Pública para ajuizar a mencionada Reclamação, foi proferida decisão cuja ementa restou fixada nos seguintes termos:

PENA - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - RAZÃO DE SER. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. PENA - CRIMES HEDIONDOS - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - ÓBICE - ARTIGO 2º, § 1º, DA LEI Nº 8.072/90 - INCONSTITUCIONALIDADE - EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da individualização da pena - artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal - a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90. (HC 82959, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/2006).

            No referido habeas corpus, como consignado em sua ementa, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade, de forma incidental, de dispositivo da Lei nº 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos) que vedava, em abstrato, a progressão de regime aos condenados com base na referida lei, por entender verificada a ocorrência de ofensa à garantia constitucional de individualização da pena (art. 5, XLVI, da Constituição Federal). O impetrante do habeas corpus, Oseas de Campus, obteve, assim, a possibilidade de análise de seu pedido de progressão de regime, excluída a vedação legal.

            Voltando ao caso de ora tratamos, observamos que a Defensoria Pública da União ajuizou, na Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco, tendo como parâmetro a decisão do Supremo Tribunal Federal tomada no habeas corpus acima analisado, pedido de progressão de regime em favor de Odilon Antonio da Silva Lopes, Antonio Edinezio de Oliveira Leão, Silvinho Silva de Miranda, Dorian Roberto Cavalcante Braga, Raimundo Pimentel Soares, Deires Jhanes Saraiva de Queiroz, Antonio Ferreira da Silva, Gessyfran Martins Cavalcante, João Alves da Silva e André Richarde Nascimento de Souza. Todos os pedidos foram indeferidos, utilizando-se o Juiz sentenciante, como razão de decidir, justamente o art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90, que, como dito, foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle incidental no supramencionado habeas corpus. Como argumento adicional a fundamentar o indeferimento do quanto pleiteado pela Defensoria Pública, o Juiz da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco argumentou que:

(...) conquanto o Plenário do Supremo Tribunal, em maioria apertada (6 votos x 5 votos), tenha declarado ‘incidenter tantum’ a inconstitucionalidade do art. 2º, § 1º da Lei 8.072/90 (Crimes Hediondos), por via do Habeas Corpus n. 82.959, isto após dezesseis anos dizendo que a norma era constitucional, perfilho-me a melhor doutrina constitucional pátria que entende que no controle difuso de constitucionalidade a decisão produz efeitos ‘inter partes’[40].

            A Defensoria Pública da União ajuizou, então, reclamação no Supremo Tribunal Federal alegando descumprimento da decisão proferida no assaz citado Habeas Corpus nº 82.959.

            O Min. Gilmar Mendes, sorteado relator da reclamação ajuizada, deferiu liminar em 21 de agosto de 2006, em cuja parte dispositiva ficou consignado que         

Tendo em vista que a situação em análise envolve direito de ir e vir, vislumbro, na espécie, o atendimento dos requisitos do art. 647 do CPP, que autorizam a concessão de habeas corpus de ofício, "sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir (...)”.

Nestes termos, concedo medida liminar, de ofício, para que, mantido o regime fechado de cumprimento de pena por crime hediondo, seja afastada a vedação legal de progressão de regime, até o julgamento final desta reclamação.

Nessa extensão do deferimento da medida liminar, caberá ao juízo de primeiro grau avaliar se, no caso concreto, os pacientes atendem ou não os requisitos para gozar do referido benefício, podendo determinar, para esse fim, e desde que de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.

            Verifica-se da transcrição acima, que, em sede de liminar, o Relator não adentrou no mérito da controvérsia, apenas deferindo o habeas corpus de ofício como, ademais, caberia em qualquer sede processual, inclusive reclamação.

Após o deferimento da liminar, levando o processo ao Plenário do Supremo Tribunal Federal, o Relator apresentou seu voto na sessão de 1º de julho de 2007. No seu voto, como questão preliminar a ser dirimida, e verdadeiro cerne da controvérsia abordada no presente estudo, o Min. Gilmar Mendes consignou que

para analisar o tema, é necessário investigar se o instrumento da reclamação foi, no presente caso, utilizado em consonância com a sua destinação constitucional: a garantia da autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, l, da CF/88), no caso, a do HC 82.959/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 1º.9.2006[41].

            Logo no início de sua abordagem sobre o tema, o Ministro discorre sobre a origem histórica da função atribuída ao Senado Federal no sentido de se suspender a execução do ato declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, identificando-a como a “forma definida pelo constituinte para emprestar eficácia erga omnes às decisões definitivas sobre inconstitucionalidade”[42]. Este foi, segundo o Relator, o entendimento encampado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, citando como precedente o Mandado de Segurança nº 16.512, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, em que expressamente consignado tal entendimento.

            Contudo, com o advento da Constituição de 1988, afirma o Ministro Gilmar Mendes que teria ficado esvaziada tal atribuição do Senado Federal, isso na medida em que

A amplitude conferida ao controle abstrato de normas e a possibilidade de que se suspenda, liminarmente, a eficácia de leis ou atos normativos, com eficácia geral, contribuíram, certamente, para que se quebrantasse a crença na própria justificativa desse instituto, que se inspirava diretamente numa concepção de separação de Poderes – hoje inevitavelmente ultrapassada. Se o Supremo Tribunal pode, em ação direta de inconstitucionalidade, suspender, liminarmente, a eficácia de uma lei, até mesmo de uma Emenda Constitucional, por que haveria a declaração de inconstitucionalidade, proferida no controle incidental, valer tão-somente para as partes?[43]

            Após estas observações, o Ministro Relator propôs que se fizesse “uma releitura do papel do Senado no processo de controle de constitucionalidade”[44]. Para isto, levantou tese de que teria ocorrido uma “autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988”[45].

O Ministro Relator, então, e de forma peremptória, afirmou que

Assim, parece legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa[46].

Por fim, o tendo em conta as razões expostas, o Ministro Gilmar Mendes, Relator da Reclamação nº 4.335, entendeu que o Juiz de Direito da Vara de Execuções da Comarca de Rio Branco teria desrespeitado a “eficácia erga omnes que deve ser atribuída à decisão deste Supremo Tribunal Federal, no HC 82.959, que declarou a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/1990”[47]. Em consequência, julgou procedente a referida reclamação “para cassar decisões proferidas pelo Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco, no Estado do Acre, que negaram a possibilidade de progressão de regime relativamente a cada um dos interessados acima mencionados”[48].

Após o do voto do Relator, o Min. Eros Grau pediu vista dos autos, trazendo seu voto-vista na sessão de 19 de abril de 2007. Nesta data, adotando a mesma linha de entendimento do Relator, o Min. Eros reafirmou a necessidade de se proceder a uma nova interpretação do art. 52, X, da Constituição Federal. A interpretação a ser extraída do mencionado dispositivo seria no sentido de o papel do Senado Federal ser apenas e tão-somente o de conferir publicidade às decisões definitivas do Supremo Tribunal Federal no que diz com a declaração de inconstitucionalidade de ato normativo. Isso teria se dado em razão da chamada “mutação constitucional”[49], na mesma linha do que consignado pelo Min. Gilmar Mendes em seu voto.

Em divergência a este entendimento, o Min. Sepúlveda Pertence[50] proferiu seu voto na mesma sessão plenária de 19 de abril. Aquele, após deixar consignado que de fato haveria uma acentuada prevalência do controle concentrado de constitucionalidade desde a EC/65, e que “o mecanismo, no controle difuso, de outorga ao Senado da competência para a suspensão da execução da lei tem se tornado cada vez mais obsoleto”, conclui, a despeito disso, que “combatê-lo, por meio do que chamou de "projeto de decreto de mutação constitucional", já não seria mais necessário”. Tal desnecessidade se daria em razão da criação do instituto da súmula vinculante pela EC nº 45/2004. Com base nestas premissas o Min. Sepúlveda Pertence “julgou improcedente a reclamação, mas concedeu habeas corpus de ofício para que o juiz examine os demais requisitos para deferimento da progressão”.

Na mesma linha do Min. Sepúlveda, o Min. Joaquim Barbosa[51] proferiu voto no sentido de não se poder conferir a interpretação proposta pelo Ministro Relator ao art. 52, X, da Constituição. Mencionando a necessidade de se assumir uma postura de auto-restrição, o Min. Joaquim Barbosa afirmou não ser possível, ou mesmo necessário, adotar a tese da “mutação constitucional” no caso dos autos. Primeiro, porque a concessão de habeas corpus de ofício seria suficiente para a resolução da questão. Segundo, porque não seria necessário conferir a interpretação pretendida ao mencionado dispositivo constitucional, isso em razão da criação do instituto da súmula vinculante. E terceiro, por ser impossível, no caso, a aplicação do entendimento pretendido, pois “seriam necessários dois fatores adicionais não presentes: o decurso de um espaço de tempo maior para verificação da mutação e o consequente e definitivo desuso do dispositivo”. Afirmou, por fim, que “haveria de ser mantida a leitura tradicional do art. 52, X, da CF, que trata de uma autorização ao Senado de determinar a suspensão de execução do dispositivo tido por inconstitucional e não de uma faculdade de cercear a autoridade do STF”, não representando, portanto, “obstáculo à ampla efetividade das decisões do Supremo, mas complemento”. Com base neste entendimento, o “Min. Joaquim Barbosa não conheceu da reclamação, mas conheceu do pedido como habeas corpus e também o concedeu de ofício”.

Acompanhando a divergência do Min. Sepúlveda Pertence e do Min. Joaquim Barbosa, o Min. Ricardo Lewandowski, após pedido de vista do processo, apresentou seu voto na sessão plenária de 16 de maio de 2013. Também resolvendo a questão dos autos com a concessão de habeas corpus de ofício, o Min. Lewandowski[52] entendeu pela impossibilidade de aplicação da tese de “mutação constitucional” ao caso, em razão de não se ter por legitimada “a ablação de competência constitucional expressamente atribuída a determinado Poder”, tendo em conta “o sistema de freios e contrapesos, próprio à separação de Poderes”. Ademais, “reputou que, caso se desejasse emprestar maior alcance às decisões do STF em sede de controle difuso, bastaria lançar mão das súmulas vinculantes”, na mesma linha do que consignado pela divergência inaugurada pelo Min. Sepúlveda Pertence, posteriormente seguida pelo Min. Joaquim Barbosa. Neste sentido, o Min. Ricardo Lewandowski “não conheceu da reclamação e concedeu, de ofício, habeas corpus, para que fossem analisados os requisitos para a progressão de regime em favor dos interessados”.

O Min. Teori Zavascki[53] apresentou voto-vista na sessão de 20 de março de 2014, oportunidade em que, enfim, foi concluído o julgamento. Consignou, no mesmo sentido dos votos divergentes, que a eficácia erga omnes conferida às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle de constitucionalidade incidental, teria outras fontes que não somente o art. 52, X, da Constituição Federal. Afirmou, então, que “o direito pátrio estaria em evolução, voltada a um sistema de valorização dos precedentes emanados dos tribunais superiores, aos quais se atribuiria, com crescente intensidade, força persuasiva e expansiva”. Observou que estaria ocorrendo no sistema processual brasileiro (civil law) uma verdadeira aproximação do sistema da common law, em decorrência da “existência de diversas previsões normativas que, ao longo do tempo, confeririam eficácia ampliada para além das fronteiras da causa em julgamento”. Por fim, “entendeu que, no caso concreto, à luz da situação jurídica existente quando da propositura da reclamação, ela não seria cabível”. A despeito disto, o Ministro julgou procedente a reclamação ajuizada, porém por fundamento diferente do proposto pelo Relator do processo. Considerou, em seu fundamentação, a superveniente edição do Enunciado 26 da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal. Esta dispõe justamente sobre a progressão de regime em crimes hediondos, exatamente a hipótese dos autos[54]. Foi acompanhado nestes mesmos termos pelos Ministros Rosa Weber e Celso de Mello[55].

Na mesma sessão, o Min. Roberto Barroso[56], acompanhando a orientação firmada pelo Min. Teori, porém acrescentando fundamentação própria, consignou que não seria possível conceber a tese da “mutação constitucional” nos termos do que proposto pelo Ministro Relator, em razão dos próprios limites encontrados “na textualidade dos dispositivos da Constituição”, no caso o multicitado art. 52, X, da Constituição Federal. Por outro lado, afirmou que se verificaria no sistema judicial brasileiro uma expansão do papel dos precedentes jurisprudenciais, atendendo “a três finalidades constitucionais: segurança jurídica, isonomia e eficiência”, o que prescindiria da aplicação da mencionada tese. Nestes termos, acompanhou o entendimento do Min. Teori Zavascki julgando procedente a reclamação.

Último a se manifestar na Reclamação nº 4.335, o Min. Marco Aurélio[57], divergindo dos votos até então proferidos, consignou que não se poderia aplicar ao caso dos autos a Súmula Vinculante nº 26, como o fizeram os Ministros Teori, Roberto Barroso, Rosa Weber e Celso de Mello, registrando que “as reclamações exigiriam que o ato supostamente inobservado deveria ser anterior ao ato atacado”. Ademais, “reputava que não se poderia emprestar ao controle difuso eficácia “erga omnes”, pois seria implementado por qualquer órgão jurisdicional”. Com base nestas razões, o Ministro julgou improcedente a reclamação, mas também concedeu a ordem de habeas corpus de ofício.

Ao final do julgamento foi proclamado o seguinte resultado:

O Tribunal, por maioria, conheceu e julgou procedente a reclamação, vencidos os Ministros Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que não conheciam da reclamação, mas concediam habeas corpus de ofício. Não participaram da votação os Ministros Luiz Fux e Dias Toffoli, que sucederam aos Ministros Eros Grau e Sepúlveda Pertence. Ausentes, justificadamente, a Ministra Cármen Lúcia, em viagem oficial para participar da 98ª Comissão de Veneza, na cidade de Veneza, Itália, e, neste julgamento, o Ministro Joaquim Barbosa (Presidente), que votou em assentada anterior. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski (Vice-Presidente no exercício da Presidência). Plenário, 20.03.2014[58].

Verifica-se que a decisão proferida no processo em análise acabou por entender, por maioria e com base em razões divergentes, cabível a reclamação ajuizada. Dois Ministros (Min. Gilmar Mendes e Min. Eros Grau) consideraram cabível a reclamação em razão da “mutação constitucional” verificada no art. 52, X, da Constituição, extraindo eficácia erga omnes da decisão proferida no Habeas Corpus nº 82.959, e julgando procedente, em razão disso, a reclamação ajuizada. Quatro Ministros (Min. Teori Zavascki, Min. Roberto Barroso, Min. Rosa Weber e Min. Celso de Mello) consideraram cabível a reclamação em razão da superveniência da Súmula Vinculante nº 26, a qual seria aplicável à hipótese dos autos. Outros quatro Ministros (Min. Sepúlveda Pertence, Min. Joaquim Barbosa, Min. Ricardo Lewandowski e Min. Marco Aurélio) consideraram a reclamação incabível no caso dos autos, mas concederam ordem de habeas corpus de ofício.

Do que decido pelo Supremo Tribunal Federal pode-se concluir que:

  1. Foi rechaçada a tese esposada pelo Min. Gilmar Mendes no sentido de que teria ocorrido uma “mutação constitucional” no texto do art. 52, X, da Constituição Federal. Ficou, portanto, preservada a função do Senado Federal de efetivamente suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle incidental de inconstitucionalidade.
  2. Foi mencionada por todos os Ministros a ocorrência de uma verdadeira revolução no que diz com os efeitos das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. Constatou-se a atribuição de eficácia cada vez mais expansiva às mencionadas decisões, isso em razão de inúmeras inovações legislativas que devem, a despeito disso, conviver com o art. 52, X, da Constituição.

            Verifica-se que o Supremo Tribunal Federal optou por uma postura conservadora e de autocontenção. A decisão tomada na Reclamação nº 4.335 mostra uma opção institucional menos agressiva que a proposta pelo Ministro Gilmar Mendes, Relator do referido processo. A tese da “mutação constitucional”, que teria modificado a norma do art. 52, X, da Constituição Federal, atribuindo ao Senado Federal o papel de mero órgão de publicidade do Supremo Tribunal Federal, não foi acolhida pelos demais Ministros da Corte, exceto pelo Min. Eros Grau.

A tese firmada pela maioria dos Ministros da Corte foi no sentido de se conservar a interpretação tradicional atribuída ao texto do mencionado dispositivo constitucional. A despeito disso, não deixaram de constatar uma evolução institucional que atribuiu eficácia cada vez mais expansiva aos precedentes do Supremo Tribunal Federal, verificando-se uma convivência pacífica entre as diversas vias analisadas.

CONCLUSÃO.

O Direito Constitucional brasileiro sofreu, nos últimos tempos, uma revolução axiológica sem precedentes. Com a Constituição Federal de 1988, verdadeiro ponto fulcral da história constitucional brasileira, mudanças de ordem institucional foram forjadas sob os auspícios de um movimento democrático sem precedentes. Dadas as condições materiais em que concebida, em momento imediatamente posterior ao ambiente institucional de exceção instaurado em 1964, a concepção republicana de separação de poderes foi alçada a verdadeiro dogma constitucional. Juntamente com a separação de poderes, e também como inexpugnável dogma constitucional, o princípio democrático se impôs como axioma fundamental. Tal processo foi radicalizado por diversas reformas constitucionais feitas ao longo dos anos posteriores e que serviram para colmatar lacunas que eventualmente permaneceram, a gerar certa, e natural, tensão dialética entre ambos os princípios.

No bojo deste processo de evolução institucional a jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal foi profundamente modificada. Novos institutos processuais foram criados, tais como a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental e o Mandado de Injunção. O rol de legitimados a provocar o controle de constitucionalidade concentrado no âmbito do Supremo foi ampliado. A Súmula Vinculante surgiu neste ambiente como verdadeira revolução no que diz com a eficácia dos precedentes do Supremo. Com ela atribuiu-se caráter normativo a determinados entendimentos daquele Tribunal. A repercussão geral, como novel requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, surgiu transmudando a natureza subjetiva deste último. Surge, neste contexto, a tese da objetivização do recurso extraordinário.

A evolução institucional acima verificada ocasionou uma transformação essencial no que diz com a eficácia dos precedentes do Supremo Tribunal Federal, transformação esta que se entende deliberada. Constatou-se que, sendo aquele um Tribunal eminentemente constitucional, não seria eficiente do ponto de vista da prestação jurisdicional permitir que se transformasse o Supremo Tribunal Federal em órgão revisor de todo e qualquer processo subjetivo ou mesmo em uma quarta instância judicial para onde inexoravelmente subiriam todos os processos do País. A eficácia expansiva dos julgados daquela Corte, assim, se tornou premente, sob pena de se ter como impraticável a atuação do Supremo como verdadeira Corte Constitucional.

A atribuição de eficácia expansiva aos precedentes do Supremo gerou o questionamento de que se tratou no presente estudo. Seria, ainda, pertinente a manutenção do art. 52, X, da Constituição Federal, ou seja, a atribuição do Senado Federal para suspender a execução de ato normativo declarado inconstitucional pelo Supremo? A reposta a esta questão pode ser buscada na Reclamação nº 4.335, processo no qual o Supremo Tribunal Federal abordou a matéria.

No referido processo, o Supremo adotou postura de autocontenção não acatando a tese do Relator, Min. Gilmar Mendes, que propunha uma verdadeira supressão de competência constitucional atribuída ao Senado Federal, por mera via interpretativa, através da questionável tese da “mutação constitucional”. Ora, levando em conta a própria literalidade do dispositivo constitucional objeto de controvérsia (“suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”) não seria realmente possível a interpretação pretendida. A tese da “mutação constitucional” é perfeitamente cabível, porém dentro de certos limites, não sendo o caso de utilizar-se dela com o objetivo de subtrair competência constitucional atribuída a outro Poder, sob pena, aí sim, de violação ao postulado constitucional da separação de poderes.

A postura assumida pelo Supremo Tribunal Federal se mostrou acertada na medida em que, preservando a competência do Senado Federal, reconheceu, a despeito disso, a revolução expansiva da eficácia dos precedentes do Tribunal. Optou por um meio termo, sem deixar de se impor como órgão eminentemente constitucional, órgão em que se deve abordar teses jurídicas e não casos jurídicos. Não alimentou, com isto, questionamentos em torno de uma suposta proeminência do Judiciário em detrimento da atuação dos demais Poderes (“ativismo judicial”).

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Sobre o autor
Tiago Batista Cardoso

Bacharel em direito. Servidor do Supremo Tribunal Federal. Trabalhou no gabinete do Min. Cezar Peluso. Autor do livro "Curso de regimento interno do Supremo Tribunal Federal. Jurisprudência e prática", publicado pela editora Grancursos, em 2013.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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