O Voto Censitário no Brasil: a cassação constitucional inconstitucional dos direitos políticos de dezesseis milhões de paulistas

01/08/2014 às 10:48
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Demonstra-se a inconstitucionalidade da parte final do § 1º do art. 45 da Constituição, que limita a 70 o número de deputados federais. Seus efeitos são os de voto censitário, cassando os direitos políticos de dezesseis milhões cidadãos paulistas

O Plenário do Supremo Tribunal Federal confirmou a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 1º da Lei Complementar 78/1993, que autoriza o Tribunal Superior Eleitoral - TSE a definir o tamanho das bancadas federais.

Entretanto, não há maior inconstitucionalidade na referida lei que os art. 2º e o art. 3º, da referida lei, que impõe um piso (08) e um teto (70) deputados federais, aos estados, violando e distorcendo o art. 1º da Constituição (Estado Democrático de Direito), bem como o seu parágrafo único (“todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos diretamente”).

Além disso, trata-se de evidente afronta ao caput do art. 45:

A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal.

O sistema proporcional é o consagrado princípio do “um homem, um voto”.

A inconstitucionalidade reside na “super-representação” conferida a eleitores dos estados de menor população (por exemplo, Roraima, Amapá, Acre, Tocantins) e, por consequência lógica, o rebaixamento da representação popular, dos eleitores dos estados de maior população, como São Paulo.

Esse absurdo inconstitucional (que também ofende os princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade) faz com que um eleitor do Amapá (299.943 eleitores) tenha o poder de 106,7 eleitores de São Paulo (32.010.639 eleitores), ou de 50,8 eleitores de Minas Gerais (15.255.801 eleitores), ou de 40,5 eleitores do Rio de Janeiro (12.145.232 eleitores).

Se considerarmos o fator “população” (fator que determina o número de vagas da bancada parlamentar), temos que o amapaense tem o poder de 89,4 paulistas, ou de 28 mineiros ou de 22,3 cariocas, considerando-se a estimativa populacional brasileira do IBGE para 2013, que é de 201.032.714 habitantes.

O conjunto dos quatro menores estados (Roraima, Amapá, Acre e Tocantins), representando 2,3 milhões de eleitores consegue eleger 36 deputados federais, enquanto que Mato Grosso, Piauí e Rio Grande do Norte, cada um com praticamente o mesmo eleitorado (em torno de 2,3 milhões de eleitores, cada), elegem apenas oito deputados. Em relação à população, aqueles quatro estados (3,47 milhões) elegem 36 deputados, enquanto que o Rio Grande do Norte (3,37 milhões), apenas 08.

A teratologia constitucional ainda pode ser medida pelos seguintes números: o conjunto do eleitorado dos Estados de RR, AP, AC, TO, RO, SE, MS, DF, AL, MT, AM, RN, PI, ES, PB, GO e MA (total de 33,9 milhões) corresponde ao eleitorado de São Paulo (32 milhões). Entretanto, aqueles estados elegem 164 deputados, contra apenas 70 deputados de São Paulo.

Em relação à população, excluindo-se o Maranhão, aquele conjunto de estados representa uma população de 43 milhões de pessoas, tendo o poder de eleger 146 deputados, contra apenas 70 deputados de São Paulo, com quase a mesma população (43,6 milhões).

Não é preciso encetar o menor esforço para perceber-se a deformação que, além de violar explicitamente princípios e dispositivos constitucionais asseguradores das verdadeiras democracias, manda às favas a soberania popular e a igualdade do voto, plasmada no art. 14, verbis:

A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

No julgamento da ADI 4345, que declarou a inconstitucionalidade do art. 5º da Lei 12.034/2009 (possibilidade do voto impresso), o principio do “um homem, um voto” veio à balha:

Destacou-se o princípio ‘um eleitor, um voto’, conquista recente que seria reforçada no sistema eletrônico, (...) Entretanto, vedada a conexão entre o instrumento de identificação e a respectiva urna, nos termos da lei questionada, possibilitar-se-ia a permanência da abertura da urna, e o eleitor poderia votar mais de uma vez, a contrariar a garantia da unidade eleitor e voto. Esse princípio sustentaria a democracia representativa, haja vista que asseguraria a correlação entre o conteúdo das urnas e a vontade do eleitorado. (ADI 4.345, rel. min. Cármen Lúcia, julgamento em 6-11-2013, Plenário)

No mesmo sentido, o julgamento do RE 163.727 abordou a importância de que o voto de cada cidadão tem o mesmo peso e mesma influência:

“O art. 3º, § 4º, da LC 59/1990 do Estado do Rio de Janeiro, ao exigir a observância do quorum de comparecimento em cada um dos distritos envolvidos num único processo de emancipação, não ofendeu o princípio da igualdade de voto, consagrado no art. 14 e inciso I da Carta Federal, que nada tem a ver com valor proporcional de cada voto, cuidando, ao revés, de simples aplicação, no campo do direito político, do princípio da igualdade de todos perante a lei, de molde a assegurar que o voto de cada cidadão tenha ‘o mesmo peso político e a mesma influência, qualquer que seja sua idade, suas qualidades, sua instrução e seu papel na sociedade.” (RE 163.727Rel. Min.Ilmar Galvão, julgamento em 7-4-1994, Plenário, DJ de 20-4-2001.)

Importante lembrar que a eleição de deputados obedece ao princípio proporcional (art. 45, caput e § 1º, CF/88), diferentemente da eleição de senador, que obedece o principio majoritário (art. 46, CF/88).

A igualdade dos estados no Congresso Nacional brasileiro opera-se no Senado Federal (três senadores para cada estado). Essa igualdade teria o suposto objetivo de corrigir eventuais desequilíbrios de poder e influência dos estados maiores, decorrentes do princípio proporcional adotado para a eleição à Câmara dos Deputados (que representa o Povo).     

Essa circunstância (igualdade dos estados no Senado, no sistema bicameral) decorre do modelo norte-americano (dois senadores por Estado), criado como resultado do Compromisso de Connecticut, em 21 de fevereiro de 1787, sob a qual os estados norte-americanos seriam representados na Câmara dos Representantes de acordo com suas respectivas populações, mas seriam igualmente representados no Senado.

Em síntese, o Compromisso de Connecticut foi um acordo (casuísmo) entre os pequenos e grandes estados norte-americanos para viabilizar a unificação dos Estados Unidos, uma vez que os estados de menor população reclamavam do peso e poder dos estados maiores, na representação unicameral. 

A inconstitucionalidade ocorre na parte final do § 1º do art. 45 da Constituição, com a introdução camuflada do voto censitário:

O número total de Deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários, no ano anterior às eleiçõespara que nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de setenta Deputados.

A aplicação da parte final do texto produz os mesmos efeitos do voto censitário, que favorece ou exclui determinado segmento da população em detrimento de outro, o qual teve sua origem na revolução francesa por meio da Constituição de 1791. Nela, fazia-se a diferenciação entre cidadãos passivos e ativos. Os primeiros eram os que não pagavam impostos ou detinham uma renda baixa e os segundos pagavam os impostos. Para estes foi-lhes possibilitado o voto; para aqueles, não.

No modelo censitário, geralmente uma minoria tinha o privilégio de deliberar sobre os destinos da nação, em detrimento da maioria. É o que ocorre no Brasil. Considerando os dados do IBGE (2013), a região Sudeste tem a metade da população brasileira, sendo representada por apenas 179 deputados.  As demais regiões possuem 334 deputados eleitos, perfazendo um total de 513 deputados federais, mesmo com a mesma população da região Sudeste.

Aqui, há outra violação, no caso a do art. 5º, caput, CF/88, verbis:

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

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Da mesma forma, é igualmente inconstitucional o art. 2º e seu parágrafo único, da Carta Magna:

Art. 2º Nenhum dos Estados membros da Federação terá menos de oito deputados federais.

Parágrafo único. Cada Território Federal será representado por quatro deputados federais.

Portanto, os (inconstitucionais) arts. 2º e 3º da Lei Complementar 78/1993 apenas reproduziram a inconstitucionalidade de uma disposição inserida no texto constitucional, em evidente incongruência com princípios estabelecidos pela própria Carta Constitucional e princípios democráticos.

Que fique claro: não se está a defender ou menosprezar este ou aquele Estado ou região brasileira, mas, sim, de apontar grave aberração que exclui os direitos políticos de mais de 16 (dezesseis) milhões de brasileiros, conforme simples demonstração, mais adiante. Enfim, trata-se de defender o Estado Democrático de Direito, erigido à condição do mais elevado Princípio Fundamental (art. 1º), reproduzido a partir do Preâmbulo da Carta Magna.

A exclusão política de milhões de brasileiros explica-se. Considerando o número de 513 deputados da Câmara dos Deputados e o total da população brasileira (pouco mais de 201 milhões), implica dizer que cada grupo de 391.876 pessoas é representado por um deputado. Ora, o teto de 70 deputados imposto pelo inconstitucional § 1º do art. 45 corresponde a uma representação de apenas 27.431.364 pessoas, sendo que o estado de São Paulo possui 43.663.672 habitantes.

Aqui reside o grave problema, pois os habitantes desse estado deveriam ser representados por no mínimo 111 (cento e onze) deputados federais!

Nenhum esforço é necessário para afirmar que 16.323.307 habitantes do estado de São Paulo (diferença entre população total e população efetivamente representada) tem os seus direitos políticos cassados. Sumariamente, foram excluídos do processo político, sendo uma aberração em qualquer lugar democrático do Mundo. Para se ter uma pálida ideia do problema, é como se a Região Norte (excluindo-se apenas o Amapá), ou a Região Centro-Oeste (mais três Roraimas) fossem excluídas do processo eleitoral. 

Vale dizer que o viés dado até agora à questão sempre foi equivocado. In casu, não há que se falar em desigualdade de representação para os Estados na Câmara dos Deputados, pois essa há que obedecer ao sistema proporcional, pouco importando o seu número. Por essa razão se diz que aquela Casa representa o Povo.

No Brasil essa suposta desigualdade foi resolvida mediante outra aberração constitucional, que é a eleição de 03 (três) senadores por Estado. Afirma-se “aberração”, porque no Senado um Estado com apenas 488.072 habitantes, como Roraima, tem o mesmo poder que São Paulo (43.663.672 habitantes). A população daquele é apenas 1,1% deste.

Em termos de comparação, a população de Roraima equivale à de Ceilândia, cidade satélite do Distrito Federal. É como se Ceilândia pudesse eleger três senadores (e oito deputados federais, sem contar os deputados estaduais).

Nos EUA, a deformação no Senado (para assegurar a igualdade dos Estados) é mitigada porque são apenas dois senadores. No Brasil, são três.   

O Preâmbulo constitucional, apesar de não possuir força normativa, põe em relevo os valores supremos que norteiam a Constituição e que devem servir de orientação para a correta interpretação e aplicação das normas constitucionais.

Dessa forma, parece-nos que chegou o momento de não apenas se deliberar pelo tamanho das bancadas, mas, principalmente, pela correção da representação popular na Câmara dos Deputados, fazendo valer o voto com valor igual para todos e resgatar o direito político de milhões de brasileiros.

Para o caso, são apenas duas soluções possíveis.

Mantem-se o número de 513 deputados na Câmara dos Deputados (o que não elevará os custos), adequando-se as distorções nas representações estaduais, com São Paulo (maior população), tendo 111 deputados federais e Roraima (menor população), um deputado federal. Esta é a solução constitucional e absolutamente democrática para a representação na Câmara dos Deputados, que representa o Povo.

Como segunda opção, aumenta-se o número de deputados federais em 41, para corrigir e assegurar os direitos políticos dos habitantes de São Paulo, caso em que o número total de parlamentares passará para 554. Essa é a solução política, mas tem elevados custos, mas a Democracia é o mais caro dos regimes, sendo melhor que a “melhor” das ditaduras. Que fique claro: mesmo essa solução apresenta problemas e distorções (voto censitário), pois a população de pelo menos oito estados estará super-representada, provocando desigualdade nos direitos políticos da maioria.

Em qualquer das soluções, o Estado Democrático de Direito brasileiro passará a ser, de fato, mais democrático.

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Sobre o autor
Milton Cordova Junior

Advogado, Mestrando em Estudos Jurídicos Avançados, pós-graduado em Direito Público, com Extensão em Defesa Nacional pela Escola Superior de Defesa, extensões em Direito Constitucional e Direito Constitucional Tributário. Empregado de empresa pública federal. Recebeu Voto de Aplauso do Senado Federal por relevantes contribuições à efetivação da cidadania e dos direitos políticos (acesso in http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2007/09/26/ccj-aprova-voto-de-aplauso-ao-advogado-milton-cordova-junior). Idealizador do fundo de subsídios habitacional denominado FAR - Fundo de Arrendamento Residencial, que sustenta o Programa Minha Casa Minha Vida, implementado por meio da Medida Provisória 1.823/99, de 29.04.1999.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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