Vagando pelo Twitter topei com a seguinte notícia:
Jornal da Cultura @jornal_cultura 2m
Ladrão abandona moto roubada e deixa bilhete: "não serve nem pra botar no lixo". Leia mais:
http://cmais.com.br/jornalismo/cidades/ladrao-abandona-moto-roubada-e-de...
O que me chamou atenção na notícia foi a necessidade do ladrão se comunicar com a vítima e a incapacidade dele de fazer isto por escrito.
Uma onça não se comunica com sua presa, apenas a ataca. Um soldado não se comunica com sua vítima, apenas a mata. Para que exista comunicação é preciso algum tipo de empatia, de reconhecimento das próprias qualidades humanas no outro. Portanto, o ladrão se apresentou como um ser humano ao tentar se comunicar com a vítima. Ele não é nem um animal, nem um soldado a ser morto numa guerra (como deseja o governador Geraldo Alckmin, por exemplo).
A incapacidade do ladrão de se comunicar por escrito é evidente. É até possível entender o que o autor da mensagem quis dizer. Todavia, a interpretação do texto demanda alguma dificuldade. Os erros de ortografia são evidentes e grotescos. O autor do bilhete grafou ageite (aceite), poiqueira (porqueira), nondar (parece ser “não dá”), pra (para), asalto (assalto), nom (não), seive (serve), buta (colocar), broizinha (parece designar moto) e compade (compadre). O período não tem pontuação e o conteúdo só pode ser entendido depois que são feitas as necessárias adaptações.
O texto pretende ser irônico, mas não demonstra nenhum refinamento. O ladrão desqualifica o objeto roubado devolvendo-o ao seu dono aconselhando-o a adquirir algo melhor. Não foi o próprio ladrão que se desqualificou roubando o objeto indesejável? A infantilidade da mensagem pode ser notada no final do texto. O ladrão pretende se igualar à vítima (chamando-a de compadre) apesar de só ter gostado do roubo que cometeu em razão de devolver o objeto roubado com o bilhete acintoso.
A CF/88 garante a todos os brasileiros o acesso a educação básica dos 4 aos 17 anos (art. 208, I, da CF/88). A educação fundamental e infantil é uma missão dos Municípios, o fundamental e ensino médio competem prioritariamente aos Estados (art. 211, da CF/88). O autor do bilhete parece ser brasileiro, pois fez uso precário da língua portuguesa. É evidente que ele não foi totalmente alfabetizado. Portanto, a República, o Estado e o Município falharam com o ladrão antes mesmo que ele falhasse como cidadão e se tornasse incapaz de se comunicar com sua vítima. Esta deveria ser a notícia.
A notícia, porém, será outra. O autor do bilhete provavelmente será execrado por ser bandido e em virtude de ser analfabeto. Infelizmente vivemos numa República que produz exclusão (o ladrão arrependido que devolveu o objeto roubado foi evidentemente excluído da educação fundamental que o Estado e o Município deveriam ter lhe ministrado), cujos jornalistas (alfabetizados, sofisticados e que supostamente compõe uma elite) aplaudem a violência policial e até incentivam a população a linchar cidadãos que foram excluídos como se eles fossem insetos destituídos de direitos. Esta paupérrima mensagem precariamente escrita constitui uma dolorosa prova de nosso fracasso como nação e, portanto, será recalcada como tantas outras.