Resumo: Há motivos de sobra em nossa incipiente experiência democrática para se suspeitar que, decorrido quase um século e meio desde a promulgação da Lei Áurea e da inauguração da República, liberdade e igualdade não sejam conquistas consolidadas no Brasil. E que muito há ainda por ser feito para tirar o País do acostamento da estrada democrática.
Em 1981, o professor Amartya Kumar Sen[1] publicou trabalho[2] a respeito da fome e da miséria no mundo e sua correlação com eleições democráticas e liberdade de imprensa. Mais tarde, com a obra Desenvolvimento como Liberdade[3], reafirmou boa parte de suas premissas, ao assentar sobre bases empíricas sólidas a constatação de que a democracia e a redução da desigualdade socioeconômica caminham juntas.
Neste sentido, a contribuição principal de uma constituição para o Estado é deveras o fortalecimento do ambiente democrático, lançando seus pilares fundamentais e estabelecendo o caminho a ser seguido para sua instalação, proteção e aprimoramento. Logo se conclui, assim, que a democracia não é apenas um regime político desejável para a promoção do bem-estar coletivo dos membros da comunidade política, mas também condição de possibilidade para a erradicação das diversas formas de alienação e desfavorecimento de determinados segmentos da população, pelo que se torna a constituição seu instrumento formal e material de realização.
A democracia é o governo de todos e para todos, e não apenas de “alguns”. Assim, a inspiração iluminista que a consagrou também lançou nos textos constitucionais contemporâneos, como corolários lógicos de sua construção, os pilares da igualdade e da liberdade como seus principais sustentáculos. A igualdade condiciona a moralidade intrínseca do texto constitucional, sem contudo deixar de refletir as distintas cores e formas, ou razões e argumentos, que compõem a diversidade de preferências políticas, morais e religiosas. A seu turno, as liberdades importam, a um só tempo, na autorrealização pessoal e coletiva enquanto materializadoras do livre exercício das faculdades e escolhas elementares a respeito da própria vida, como ir e vir, fazer o que a lei não proíbe, trabalhar, casar etc., e também em instrumentos assecuratórios, alimentadores e reprodutores da democracia, como a participação política, a liberdade de expressão, o direito de reunião pacífica e o acesso livre à informação pública, entre outros.
Igualdade e liberdade, assim, constituem pontos cardeais de referência para a navegação dos poderes constituídos pelo mares do político e do jurídico. Mas, há motivos de sobra em nossa incipiente experiência democrática para se suspeitar que, decorrido quase um século e meio desde a promulgação da Lei Áurea e da inauguração da República, liberdade e igualdade não sejam conquistas consolidadas no Brasil. E que muito há ainda por ser feito para tirar o País do acostamento da estrada democrática; ou, em algumas situações mais graves, da contramão.
A verificação irrefutável do abissal descompasso entre algumas das promessas da Constituição de 1988 e a situação socioeconômica de ingentes parcelas da sociedade brasileira põem em xeque a realização da democracia em sua plenitude, na medida em que, para muitos, nada mudou nos cem anos que mediaram o início da República e a promulgação da Constituição cidadã. Ademais, as fendas em nosso semiárido terreno social radiografam a porosidade da estrutura jurídico-política que pretende alicerçar nossa progressão rumo a uma sociedade justa e igualitária.
As atividades principais dos poderes constitucionalmente estabelecidos - deliberação parlamentar, jurisdição constitucional e implementação de políticas públicas - são meios e não fins em si próprios. Estão a serviço das diretrizes constitucionais e seus destinatários, os cidadãos, sendo-lhes vedado enveredar trilhas estranhas ao espaço democrático, únicas legitimadas pelo consentimento deliberativo da sociedade. E se debilidades existem, é possível delas inferir que a atuação dos Poderes do Estado, em sua vasta área de abrangência, é ainda deficiente, por incapaz de cumprir os desideratos que lhe justificaram a existência.
Mas, o Estado constitucional, como instituidor e produto da democracia, não é um projeto acabado, nem assim se pretende. É uma obra em andamento, tal como a própria democracia, ambos adquirindo contornos e conteúdos que variam ao longo da história das sociedades. Não diferente, no Brasil, com suas peculiaridades e vicissitudes. Entretanto, a autorreflexão da comunidade política não pode abjurar a experiência que os registros históricos oferecem, nem seu compromisso com a realidade hodierna. De onde se veio, onde se está e para onde se pretende ir são requisitos inafastáveis da inteligência reflexiva, seja da sociedade, seja da comunidade que pensa o Direito. Em outras palavras, há que se reconhecer os erros do passado e admitir que muito ainda há por ser feito.
Se o País atravessa um momento de diversas transformações rápidas no espaço público, com a erupção espontânea, em distintas localidades, de manifestações populares, não se deve deixar de identificar suas motivações e aspirações, porque, de uma forma ou de outra, revelam tensões existentes em nossa sociedade. E uma ordem constitucional democrática, afirma Jurgen Habermas, “tolera a resistência de dissidentes que, após esgotar todos os caminhos legais, lutem contra decisões ou juízos produzidos, por assim dizer, de forma legítima”[4]. E, ainda, “no âmbito de uma coletividade, cujos cidadãos se concedem reciprocamente os mesmos direitos, não há mais lugar para uma autoridade que possa fixar unilateralmente o limite daquilo que é tolerável”[5].
Por isso mesmo, maior ainda deve ser o cuidado com as interpretações dos fatos levadas a cabo por órgãos de comunicação de massa, pois, como a história já demonstrou,nem sempre traduzem sua realidade. Repise-se, ainda, a relevância de se relembrar a história para evitar erros do passado. Embora difiram as condicionantes e contingências, no afã de se atender à tão desejada paz social, já se voltam a ouvir propostas sofismáticas para a solução imediata dos profundos e graves problemas existentes, muitos dos quais serviram de combustível para as manifestações. Como já alerta o velho provérbio alemão, não há soluções fáceis para problemas complexos.
Noutro giro, cumpre salientar, por ser o que realmente importa, aquele elemento que direta ou indiretamente, sutil ou explicitamente, tem sido comum a todas as manifestações: a demanda por accountability dos agentes do Estado. Conceito este de difícil tradução para o vernáculo, mas que possui robusta matriz democrática, uma vez que aproxima representantes e representados, porquanto reclama por prestação de contas e pela justificação do exercício do poder na medida certa do dever. A proximidade de um novo período eleitoral é alvissareira neste sentido, embora sejam as eleições livres apenas um dos elementos de uma sociedade democrática participativa.
Nada disto, todavia, subtrai os méritos e virtudes de uma coletividade que, como tantas outras localizadas abaixo da linha equatorial, labora diturnamente para livrar-se das redes de opressão veladas, da desigualdade escamoteada e das dificuldades econômicas, sociais e políticas de toda ordem. Se é verdade que a caminhada ainda é longa na persecução dos ideais de liberdade e igualdade, também se deve reconhecer que muito já se fez.
Ao mesmo tempo, não se devem perder de vista as constatações de Amartya Sen, de que não prospera o desenvolvimento onde ausentes liberdades e igualdade. E que o exercício das primeiras possa coexistir pacificamente com as desigualdades inerentes à diversidade e complexidade, mas que não se tornem uma afronta a parâmetros razoavelmente justificáveis do que seja dignidade humana. Esse, o desafio.
A história não é um dado; antes, um construído. É como uma grande esfera em contínuo movimento, dentro da qual se agitam os milhares de cidadãos; agitação esta cuja resultante é a própria história em seu caminho oscilante. Ou, nas belas palavras de Antônio Machado: “caminante, no hay camino, se hace camino al andar”.
Notas
[1] Laureado com o Prêmio Alfred Nobel de Economia (Welfare Economics) em 1998
[2] Poverty and Famines. New York: Oxford University Press, 1981
[3] São Paulo: Companhia das Letras, 2000
[4] O Ocidente Dividido. Trad. Luciana Villas Bôas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p. 29
[5] Ibid., p. 28