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A propriedade rural, sua função social e as invasões promovidas por movimentos sem-terra

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4. Dos princípios e das regras jurídicas

A norma jurídica, enquanto expressão deôntica, consistente numa determinação, permissão ou proibição, subdivide-se em regra e princípio.

As regras e os princípios são normas porque dizem o dever-ser.

A diferença entre uma e outra, sustenta Alexy (1997: 83), pode ser estabelecida através da adoção de um variado número de critérios, dentre estes o da generalidade, que seria, segundo aquele emérito professor, o mais freqüentemente utilizado.

De acordo com o referido critério, os princípios seriam normas de um grau relativamente alto de generalidade, ao passo que às regras assistiria generalidade relativamente baixa.

A par desta constatação, Alexy sustenta, outrossim, que o ponto decisivo para a distinção residiria em que os princípios seriam normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida do possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes (op. cit.: 86).

Os princípios seriam, portanto, mandatos de otimização, "que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida de su cumplimento no sólo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas". O âmbito das possibilidades jurídicas, complementa Alexy (op. cit.: 86), é determinado pelos princípios e regras opostos.

As regras, de acordo com as lições daquele prestigiado jurista, seriam normas que podem ser cumpridas ou não. Em sendo válida, nada há que se fazer, senão o que ela prescreva, nem mais, nem menos. As regras, assim, "contienen determinaciones en el ámbito de lo fáctica y jurídicamente posible" (op. cit.: 87).

Em face de tais observações, constata Alexy que a diferença entre regras e princípios seria de natureza qualificativa e não de grau.

4.1. Da colisão entre princípios e a sua resolução

Ocorre colisão de direitos fundamentais, de acordo com Canotilho (1993: 643), "quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular". Trata-se de um autêntico conflito de direitos, complementa, na medida em que duas normas – que outorguem a sujeitos diversos, direitos opostos – podem conduzir a resultados incompatíveis, ou seja, a dois juízos de dever-ser jurídico contraditórios (cf. Alexy, op. cit.: 87).

Nesta hipótese, a distinção entre regras e princípios assume um relevo ainda maior, na medida em que as técnicas utilizadas para se resolver a colisão entre umas e outros apresentar-se-á totalmente distinta.

Em se tratando de conflitos entre regras jurídicas, explica Alexy (op. cit.: 88), sua resolução requer a introdução em uma das regras de uma cláusula de exceção que elimine o conflito ou a declaração de invalidade de uma delas, pelo menos.

Afasta-se, assim, a possibilidade de coexistência de duas regras conflitivas.

Quando dois princípios entram em colisão, observa Alexy (op. cit.: 89), um deve ceder em relação ao outro, sem que se lhe declare a invalidade ou se lhe insira cláusula de exceção.

Pode ocorrer que um dos princípios, dada sua inserção no ordenamento jurídico constitucional, preceda ao outro [3], ou em determinados casos concretos, tenha um peso maior.

Neste caso, teoriza Alexy, há de se aplicar o que ele denomina de "lei de colisão", a qual, numa formulação não muito teórica – segundo ele mesmo –, teria o seguinte enunciado: "Las condiciones bajo las cuales um principio precede a outro constituyen el supuesto de hecho de uma regla que expresa la consecuencia jurídica del principio precedente" (op. cit.: 94).

Assim, de acordo com exemplo fornecido pelo próprio Alexy, se a realização de uma audiência oral num processo crime, poderia trazer risco de vida para o acusado – acometido de grave moléstia –, o direito à vida, deste último, sobrepõe-se ao dever do Estado de garantir uma aplicação adequada do direito penal, constituindo-se esta circunstância (ameaça à vida do acusado), no fato gerador de uma regra que expressa a conseqüência do princípio precedente (não realização da audiência).

4.2. O princípio da dignidade da pessoa humana e a sua inserção no ordenamento constitucional brasileiro

De acordo com o art. 1.º, da Constituição Federal de 1988, "a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos", dentre outros, "a dignidade da pessoa humana" (inciso III).

A dignidade da pessoa humana "como valor supremo a cuja tutela se orienta teleologicamente o sistema jurídico revela uma concepção antropocêntrica do ordenamento", ensina Negreiros (1999: 353).

Canotilho (op. cit.: 363), partindo da teoria dos cinco componentes, creditada a Podlech, estabelece, para a individualização do princípio da dignidade da pessoa humana, as seguintes perspectivas: a) afirmação da integridade física e espiritual do homem como dimensão irrenunciável da sua individualidade autonomamente responsável; b) garantia da identidade e integridade da pessoa através do livre desenvolvimento da personalidade; c) libertação da "angústia da existência" da pessoa mediante mecanismos de socialidade, dentre os quais se incluem a possibilidade de trabalho e a garantia de condições existenciais mínimas; d) garantia e defesa da autonomia individual através da vinculação dos poderes públicos a conteúdos, formas e procedimentos do Estado de direito; e) igualdade dos cidadãos, expressa na mesma dignidade social e na igualdade de tratamento normativo.

A possibilidade de trabalho e a garantia de condições existenciais mínimas, enquanto expressão da dignidade da pessoa humana, impede que no caso acima referido se tutele exclusivamente o direito fundamental de propriedade que o titular do imóvel invadido apresenta, resguardando o direito fundamental daqueles invasores que somente praticaram o ato de invasão porque obrigados pelas circunstâncias de sua realidade fática (carência, fome).

São justamente estas circunstâncias de fato – invasão de um imóvel que não cumpre sua função social, movida por necessidades primárias, básicas (fome) dos invasores – que se constituem no fato gerador de uma regra que expressa a conseqüência jurídica do princípio precedente – dignidade da pessoa humana – em relação aqueloutro – propriedade privada –, qual seja: a não reintegração de posse in casu.


5. Considerações finais

Percebe-se, do texto, que o direito de propriedade experimentou grande evolução no século passado.

O abandono gradual da percepção da realidade jurídica sob um prisma liberal, individualista, e a adoção de uma perspectiva mais social e coletiva, ensejaram que o Estado interviesse mais diretamente nas relações jurídicas entre os particulares, de modo a conformar os direitos subjetivos daí decorrentes aos ditames mais consentâneos com a realidade em que vivemos atualmente.

A Constituição da República, enquanto ápice da pirâmide normativa, confere legitimidade aos demais textos legiferantes, os quais devem subsumir-se aos princípios e regras constitucionais.

A propriedade, guardadas as limitações expostas no texto, deve cumprir a função social que lhe acomete o texto constitucional.

Num conflito possessório envolvendo um proprietário remisso, que não haja dado às terras que possua destinação pertinente à função social, de um lado, e invasores que na área invadida tenham plantado lavoura de subsistência, de outro, não se deve conceder ao primeiro a reintegração de posse, se sua pretensão vier fundada exclusivamente no direito de propriedade de que seja titular.

Neste passo, o operador do direito poderá valer-se do critério proposto por Robert Alexy para a resolução da colisão de princípios albergados na carta constitucional, já que dois direitos fundamentais exsurgiriam daquela situação: o direito de propriedade, atribuído ao dono do imóvel, e a dignidade da pessoa humana, direito fundamental conferido aos invasores no exemplo dado.


6. Referências bibliográficas

ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Trad. espanhola de Ernesto Gazón. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.

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Notas

1. Diez-Picazo sustenta que se deve insistir na estreita conexão que existe entre o sistema jurídico-privado, que forma o que se designa como direito das coisas, e as estruturas econômicas e sociais por uma parte e os princípios gerais da organização política por outra (op. cit.: 62).

2. No mesmo sentido, Comparato, 1986, p. 75: "A norma tem, indubitavelmente, o sentido de uma imposição de deveres positivos ao proprietário".

3. Canotilho (op. cit.: 345) ressalta a existência de princípios constitucionais estruturantes, os quais "designam os princípios constitutivos do ‘núcleo essencial da constituição’, garantindo a esta uma determinada identidade e estrutura".

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Sobre os autores
Eduardo Messias Gonçalves de Lyra Júnior

advogado, pós-graduando em Direito Privado pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (CESMAC)

Henrique Monteiro Figueiredo

advogado, pós-graduando em Direito Privado pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (CESMAC)

Pollyana Maria Farias de Gouveia

servidora do Tribunal Regional do Trabalho da 19ª Região (Alagoas), pós-graduanda em Direito Privado pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (CESMAC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LYRA JÚNIOR, Eduardo Messias Gonçalves ; FIGUEIREDO, Henrique Monteiro et al. A propriedade rural, sua função social e as invasões promovidas por movimentos sem-terra. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3106. Acesso em: 19 abr. 2024.

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