Morte e Vida Severina e os "excluídos"

22/08/2014 às 14:47
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Análise da Obra de João Cabral de Melo Neto e sua relação com os outsiders

A obra de João Cabral de Melo Neto, “Morte e Vida Severina”, retrata, principalmente, a luta pela sobrevivência daqueles que não fazem parte da sociedade, ou por estarem completamente alheios a ela ou por terem sido excluídos dela. O texto, apesar de escrito em forma de poema, o que acaba por amenizar, em certa medida, seu tom dramático, apresenta a realidade de um retirante que sai do sertão nordestino com destino ao litoral, em busca de uma mudança de vida.

Essa obra possui diversos símbolos, cuja interpretação ajudam a entender que se trata de algo mais grandioso que simplesmente a fuga da seca: a tentativa de fuga da opressão. Tal opressão, no texto, é caracterizada pelas condições do sertão (árido, inóspito), em que apenas algumas poucas pessoas logram êxito, como os donos de fazendas e grandes comerciantes. Isso retrata um micro cosmos da realidade mundial, e mesmo da realidade setorial brasileira, em que um pequeno número de famílias detêm o controle econômico sobre o país.

Em virtude dessa realidade desfavorável, o retirante resolve escapar, ou ao menos tentar fugir. Pelo caminho, vivencia diversas experiências que culminam com sua chegada ao litoral. Ao chegar na tão esperada cidade litorânea, onde há fartura, onde não há seca, onde há oportunidades, o retirante se depara com uma dura realidade: o litoral é igual ao sertão. Apesar de um pouco diferentes, em termos práticos, sertão e litoral, na obra de João Cabral de Melo Neto, são iguais, pois em ambos ocorre a opressão do mais frágil, a ausência de oportunidades e o esquecimento daqueles que estão alheios à sociedade.

Tal realidade pode também ser verificada em qualquer grande cidade brasileira, principalmente em São Paulo, em que se verifica uma literal marginalização das pessoas, em especial, das pessoas não desejadas na sociedade. Em um documentário visto em sala de aula, foi-nos mostrada a luta de algumas pessoas humildes residentes em São Paulo contra o estereótipo da “Cracolândia” e contra o poder gerencial das classes dominantes dessa cidade, que desejavam “revitalizar” um bairro, construindo diversos shoppings, lojas, reformando e demolindo diversos prédios antigos (em que essas pessoas moram) com o objetivo de tornar a cidade “mais bonita”.

Esse poder dominial de gestão da sociedade, de exclusão das classes indesejadas e limpeza social possuem extrema relação com o bio poder, uma vez que, apesar de não se tratar de influência direta sobre o “poder de deixar viver” e o “poder de matar”, acaba por controlar por completo a vida das pessoas sob sua influência.

É importante ter em mente que a exclusão social é um fortíssimo bio poder e, na maioria dos casos, um poder tão forte e determinante quanto uma ordem de prisão ou de morte. De certa forma, a marginalização de uma parcela da sociedade acaba por determinar seu “destino” para o restante da vida, uma vez que nem a sociedade vê com bons olhos os marginais (posto que não fazem parte dela), o que implica o distanciamento ainda maior dessas pessoas, nem são geradas ou mesmo possíveis as oportunidades de os marginais poderem chegar ao “centro”.

“Morte e Vida Severina” também retrata, em certa medida, a condição dos refugiados, muito semelhante à condição dos marginalizados, pois não possuem pátria, apesar de possuírem características em comum dentro do grupo. Sobre o tema, o filme “Distrito 9” apresenta uma relação interessantíssima acerca dessa realidade.

No filme, é retratada de forma intrigante a exclusão social: além de os marginais (no caso do filme, alienígenas) serem excluídos pela classe dominante, eram também excluídos pelos outros marginais que, em alguma medida, ainda faziam parte da sociedade.

Tem-se claro, portanto, o poder referente à marginalização, uma vez que até mesmo aqueles que são marginalizados em alguma medida, mas que ainda se sentem parte da sociedade, nem mesmo cogitam a oportunidade de refletir acerca da atitude de marginalização dos excluídos, os outsiders.

O retirante de João Cabral de Melo Neto é um exemplo desse excluído, a partir do momento em que deixa o sertão, pois não mais faz parte da sociedade, sendo um trabalhador (na maioria das vezes, um verdadeiro escravo, pois doa suas horas de trabalho por uma quantia que quase não o sustenta até o final do dia). O retirante é um inconformado com o sistema, em certa medida, e, justamente por esse motivo, passa a não mais fazer parte dele.

Apesar de o final da obra do escritor pernambucano ser cheia de esperança, em virtude do nascimento de uma nova vida, o que faz com que o retirante queira voltar a ser parte da sociedade, traz consigo, em termos de bio poder uma inevitável realidade: a marginalização é hereditária.

Aqueles que não possuem meios de se inserir na sociedade nunca irão fazê-lo, ou ao menos, as chances são muito baixas. Outro filme que retrata de forma interessante esse tema, adotando a ótica do capitalismo (o que o torna ainda mais interessante, uma vez que a suposta liberdade capitalista serve justamente para o aprisionamento da exclusão inevitável de alguns) é “O Preço do Amanhã” em que o tempo é literalmente dinheiro, e as pessoas geralmente possuem apenas o suficiente para viver um dia, e precisam lutar para sobreviver, enquanto a elite altera os preços dos produtos (pagos com o tempo de vida) e inclusive aposta o tempo “conquistado” em jogos de azar, ou seja, brinca com o dinheiro dos marginalizados.

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Certamente a obra de João Cabral de Melo Neto é riquíssima, tanto no cunho artístico quanto no político e social, possuindo até mesmo uma relação com o direito, conforme apresentado neste excerto. Tal obra traz luz a uma realidade um pouco difícil de se aceitar: o retirante é criado pela sociedade e não se encontra exclusivamente restrito à realidade do sertão, estando presente em qualquer esquina de qualquer cidade.

É possível combater a estrutura de dominação social, a partir do momento que se compreende o poder exercido e a influência desse poder (bio poder) sobre a realidade e o comportamento social, mas pra isso, precisa-se, primeiramente, enxergar os retirantes não como imigrantes ou mesmo outsiders, mas como parte dessa sociedade.

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