RESUMO: Este estudo tem como objetivo a análise da súmula impeditiva de recursos, sob o ponto de vista da nossa Carta Magna de 1988, bem como o seu respaldo no princípio da celeridade. Este instrumento foi recentemente implementado pelo Art. 518, §1º, da lei 11.276/2006, de onde surgiram várias discussões doutrinárias acerca do alcance efetivamente jurisdicional e sobre a constitucionalidade desta inovação segundo os princípios da inafastabilidade da Jurisdição, do Devido Processo Legal, do Contraditório, da Ampla Defesa e do próprio direito ao recurso.
Palavras-chave: Súmula impeditiva. Recursos. Princípios Constitucionais.
1. INTRODUÇÃO
O tema proposto nos remonta a uma análise científica acerca da constitucionalidade da súmula impeditiva de recursos, com ênfase nos princípios constitucionais dito fundamentais, e, ainda, do escopo do princípio da celeridade processual.
A partir da Emenda Constitucional nº 45, dentre as modificações trazidas no âmbito infraconstitucional, verificou-se a aprovação da lei 11.276/2006, trazendo para o ordenamento brasileiro a denominada súmula impeditiva de recursos.
Assim, com tal dispositivo legal, abriu-se a possibilidade do magistrado de primeiro grau, em juízo de admissibilidade do recurso, negar seguimento ao recurso de apelação se a decisão atacada estiver em confronto com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.
Alguns doutrinadores afirmam que tal inovação trará grandes benefícios à celeridade do processo e à efetividade da administração da justiça. Com essa medida, argumentam, será assegurada a razoável duração do processo, homenageando assim o princípio da celeridade processual (CF, art. 5º, LXXVIII) e, também, reduzindo o acúmulo de processos nos tribunais, versando sobre casos repetidos.
Por outro lado, há alguns processualistas contrários à criação da súmula impeditiva de recurso, afirmando que ela desrespeita vários princípios constitucionais - dentre os quais o do contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV), da inafastabilidade de jurisdição (art. 5º, XXXV), do devido processo legal (art. 5º, LIV) – e a própria segurança jurídica, além do instituto do recurso.
Observa-se, assim, que de um lado existe a tendência dos processualistas em reunir esforços para implementar a celeridade processual, e do outro, a necessidade de preservação dos recursos ordinários como forma de garantia do modelo constitucional de processo, uma vez que o recurso permite a intervenção e a contribuição crítica das partes, como corolário das garantias do contraditório e ampla defesa, a partir do espaço procedimental recursal.
A verdade é que esse instrumento previsto no Artigo 518, §1º do CPC, surgiu como uma possível solução ao problema da lentidão processual, uma vez que impede a tramitação de recursos envolvendo questões repetitivas e com pouca probabilidade de êxito, já que contrárias aos entendimentos sumulados dos Tribunais Superiores.
Assim, surge a questão da constitucionalidade deste recente dispositivo legal, mormente sob o argumento de que viola os princípios da Inafastabilidade da Jurisdição, do Devido Processo Legal, do Contraditório, da Ampla Defesa e, para os que consideram um principio constitucional, o Duplo Grau de Jurisdição.
Por isso, o estudo do tema em análise torna-se pertinente, mas, claro, sem a pretensão de esgotamento da matéria, que envolve a controvérsia acerca da constitucionalidade ou não da chamada súmula impeditiva de recurso.
2. OS RECURSOS FRENTE AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Os recursos configuram uma necessidade e possibilidade do reexame de questões equivocadas, objeto de inconformismo, evitando, assim, o arbítrio. O vencido, insatisfeito, sendo inerente à sua natureza humana, vem se manifestando ao longo da história de diversas formas e funções.
Nunes (2006, p.62) esclarece quanto às funções das formas de impugnação existentes ao longo da história, especialmente no que tange ao recurso:
“(...) Poder-se-iam delinear algumas das funções da formas de impugnação das decisões, dentre elas os recursos, no decorrer da história, prescindindo, evidentemente da análise do tipo de Estado adotado, quais seriam: a) função de reprimenda ao erro do julgador; b) função de suspensão de efeitos executórios; c) função de concentração de poder nas mãos do soberano, como instrumento autoritário-hierárquico; d) função de reanálise da decisão jurídica; e e)função de uniformização e aperfeiçoamento do direito.”
O mesmo autor nos informa que:
“(...) podemos ofertar uma definição técnica de recurso do instituto do recurso, compreendo-o como forma legal utilizada no mesmo procedimento em contraditório de irresignação voluntária da parte, manifestada para uma determinada espécie de decisão, salvo as hipóteses de dúvida objetiva, visando à reanálise da questão do mesmo órgão prolator(para os recursos com efeito regressivo) e/ou transferência do conteúdo da decisão para órgão diverso do seu prolator (para os recursos com efeitos devolutivo), visando ao reexame das questões suscitadas pelo recorrente com anulação, reforma, integração ou aclaramento da decisão impugnada.”
Leal (2009, p. 89/90), ao conceituar recurso explica que:
“Confere-se à palavra recurso a idéia de retomada de um caminho já percorrido (do latim re currerere). No campo do direito, assoma-se de importância o regramento, pela norma, dos termos jurídicos, porque só assim se delimitam os significados que compõem a sistematicidade leal garantidora de direitos, poderes e faculdades.”
“(...) Em nossa sistemática jurídica, o direito de ação tem raízes na plataforma constitucional (CR/88), sendo que o recuso é instituto de garantia revisional exercitável, na estrutura procedimental, como meio de alongar ou ampliar o processo pela impugnação das decisões nele proferidas e não meio de dar continuidade ao exercício do direito de ação que se exaure, em cada caso, propositura do procedimento.”
Observa-se, porém, que nem toda impugnação pode ser caracterizada como recurso. Humberto Theodoro Júnior (2008, p. 636) faz a diferenciação, caracterizando o recurso como “o meio idôneo para reexame da decisão dentro do mesmo processo em que foi exarada.”
No mesmo sentido, Marinoni e Arenhart (2007, p. 499) definem os recursos como “os meios de impugnação de decisões judiciais, voluntários, internos à relação processual em que se insere a decisão atacada, aptos a obter desta a anulação, reforma ou aprimoramento. Já as demais formas de impugnação, também chamadas de sucedâneos recursais, constituem ação própria, ensejando um novo processo.”
Porto (2008, p.38) informa sobre a importante conjugação e vinculação dos recursos aos princípios constitucionais, inclusive quanto ao princípio da celeridade recentemente inserido pela emenda constitucional nº45:
“No caso dos recursos, apresenta-se importante a conjugação de quatro garantias ao jurisdicionado e verdadeiros princípios que guiam a atividade jurisdicional, a saber: a) o devido processo constitucional (art. 5º, LIV); b)o livre e efetivo acesso ao judiciário (art.5º, XXXV); c) a idéia de contraditório e ampla defesa , ‘ com todos os meios e recursos a ela inerentes’ (art.5º, LV) e d) a duração razoável do processo e os meios que garantam a sua celeridade de tramitação.”
Nery (2004, pp. 204/205) conceitua o recurso no sentido amplo como sendo:
“(...) o remédio processual que a lei coloca à disposição das partes, do Ministério Publico ou de um terceiro, a fim de que a decisão judicial posse submetida a novo julgamento, por órgão de jurisdição hierarquicamente superior, em regra, àquele que a proferiu.”
Por sua vez, observa-se que os recursos são revestidos de garantias constitucionais, segundo modelo constitucional vigente no Brasil. A carta Magna, em seu art. 5º, LV, ensina que aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa com todos os meios e recursos a ela inerentes. Assim, é possível visualizar diante de tal preceito, que o direito ao recurso se encontra inserido no texto constitucional, através das garantias do devido processo legal, contraditório e ampla defesa.
3. AS SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS
Com o surgimento do princípio da celeridade no ordenamento jurídico, várias reformas foram formuladas com a finalidade de empreender maior agilidade ao Poder Judiciário. Dentre elas, a alteração do processo de execução, do recurso de agravo, bem como a criação da súmula impeditiva de recurso.
Assim, dentre tais mudanças, foi criada a Lei 11.276/2006, que introduziu o parágrafo 1º ao artigo 518 do CPC, objeto do presente estudo, com a seguinte redação: O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.
Trata-se de Lei oriunda do Projeto de Lei no 4.724/2004, iniciado após a “Campanha pela Efetividade Brasileira” promovida pela Associação dos Magistrados Brasileiros, que dentre outras providências, instituiu a súmula impeditiva de recursos, modificando a redação dos artigos 504, 506, 515 e 518 do Código de Processo Civil, sob a justificativa precípua pela busca da celeridade processual acolhida pela Constituição Federal através da emenda constitucional nº 45.
Abstratamente, tem-se que a tão almejada duração razoável do processo, será alcançada através da redução do número excessivo de impugnações sem possibilidades de êxito, o que se efetivaria em decorrência da nova redação do art. 518 do CPC.
O novo dispositivo legal, também chamado de súmula impeditiva ou obstativa de recurso de apelação, tem como escopo o atendimento à Emenda Constitucional nº 45/2004 que, dentre outras alterações privilegiou a celeridade processual, visando à uma efetividade do processo, com a duração de tempo razoável, prevista no inciso LXXVIII ao art. 5º da Constituição Federal.
Nery (2010, p.518) menciona a exposição de motivos da lei em comento, na qual o Ministro da Justiça Dr. Márcio Thomás Bastos afirmou:
“(...)5. O anteprojeto igualmente altera o art. 518 do CPC, e de maneira a inserir seu §1º a previsão de não conhecimento, pelo juiz, do recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com Sumula do Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal. 6. Trata-se, portanto, de uma adequação salutar que contribuirá para a redução do número excessivo de impugnações sem possibilidade de êxito.”
Pode-se dizer que diante da criação deste novo instrumento, surgiu a possibilidade e o dever de o magistrado de primeiro grau impedir o processamento da apelação que esteja em desconformidade com Súmula do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, sob a alegação de que a implementação deste artigo de lei propiciará uma solução mais rápida aos processos judiciais, evitando o prolongamento do processo, o que em tese desafogaria os tribunais.
Por outro lado, observa-se que houve uma alteração dos requisitos genéricos da apelação, já que, anteriormente, a apelação era cabível em face de sentença, não importando os fundamentos da mesma. Todavia, com as recentes alterações já vigentes, somente será cabível recurso de apelação em face da sentença que não estiver em consonância com súmula do STJ e STF.
Nery (2010, p. 513) reconhece a importância e amplitude do recurso de apelação no sistema processual civil brasileiro:
“Apelação. No sistema processual civil brasileiro, apelação é o recurso típico, cabível contra a sentença proferida no processo de conhecimento, no de execução, no cautelar, nos procedimentos especiais de jurisdição contenciosa ou voluntária. (...)A apelação é o recurso por excelência, de cognição ampla, que possibilita pedir-se ao tribunal ad quem que corrija os errores in judicando e também os errores in procedendo eventualmente existentes na sentença. Esta ampla cognição permite que se impugne a ilegalidade ou a injustiça da sentença, bem como propicia o reexame de toda a prova produzida no processo.”
Acerca da importância de controle das decisões judiciais e quanto ao direito ao recurso, Grinover (2002, p. 74) explica que:
(...) os tribunais de segundo grau, formados em geral por juízes mais experientes e constituindo-se em órgãos colegiados, oferecem maior segurança; e está psicologicamente demonstrado que o juiz de primeiro grau se cerca de maiores cuidados no julgamento quando sabe que sua decisão poderá ser revista pelos tribunais da jurisdição superior”.
Com tais mudanças processuais, o direito da parte fica mais “restrito”, pois o seu direito à interposição do recurso somente terá cabimento quando não contrariar súmulas do STJ ou STF, o que praticamente inviabiliza a revisão de qualquer súmula do STJ, ainda que defasada ou contrária aos princípios legais e constitucionais.
Esta medida possibilitou o desafogamento dos tribunais, relegando em segundo plano o direito ao recurso, do devido processo legal, também assegurados constitucionalmente.
Com o implemento da nova súmula impeditiva de recursos, houve uma alteração dos requisitos de admissibilidade do recurso de apelação efetuado liminarmente pelo juiz de primeiro grau, estendendo a este a prévia análise do juízo de mérito ou juízo indireto de mérito como preferem alguns doutrinadores.
No juízo de admissibilidade efetuado pelo juiz de primeiro grau, analisa-se a presença das condições impostas por lei como necessárias à apreciação do conteúdo da postulação recursal. Caso este Juízo seja positivo, o recurso será conhecido, e, consequentemente, decidida a matéria impugnada para que se dê provimento ao recurso no caso de a matéria objeto do recurso ser fundada ou, para que se rejeite, se for infundada.
Conforme Moreira (2005, p.116):
“O juízo de admissibilidade é, sempre e necessariamente, preliminar ao juízo de mérito. Negada que seja a admissibilidade do recurso, não há que investigar se ele é fundado ou não. Por outro lado, se o órgão ad quem apreciou o conteúdo da impugnação, quer lhe haja reconhecido fundamento, quer não, terá julgado o recurso no mérito.”
Nery (2010, p. 851) ensina:
“Juízo de mérito dos recursos. É sempre da competência do órgão destinatário do recurso, isto é, o tribunal ad quem. O mérito do recurso se consubstancia na pretensão recursal, vale dizer, no objeto do reexame pleiteado pelo recorrente. Pode ou não se confundir com o mérito da ação.”
O disposto no artigo 518, §1º do CPC, que prevê a expressão “não receberá” o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do STJ ou STF, pressupõe que se referia ao juízo de admissibilidade do recurso de Apelação.
Também diante dessa nova modificação processual, houve também uma alteração na competência do órgão julgador de primeiro grau. Anteriormente, o julgador a quo estava adstrito apenas à analise dos pressupostos genéricos de admissibilidade do recurso (requisitos extrínsecos). Porém, com o advento desta nova lei, o julgador de primeiro grau também passou a poder (dever-ser) não conhecer do recurso de apelação quando a sentença estiver em consonância com as súmulas do STJ e STF, gerando um verdadeiro juízo de mérito do recurso cuja competência era originalmente somente do órgão destinatário do recurso.
FERES (2006, p. 82) ao analisar o juízo de admissibilidade com base na nova norma entende que:
“Enquanto antes o julgador estava adstrito ao exame dos pressupostos genéricos de admissibilidade da apelação, agora passa a também poder não conhecer o recurso quando a sentença censurada pela parte “estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal”, ou seja, permite-se que o Juiz possa ingressar no próprio mérito do recurso de apelação, fazendo o contraste entre ele e a súmula de certos Tribunais.”
Wambier (2006, p. 226) também corrobora o mesmo posicionamento:
“(...) o recurso não é indeferido em razão da ausência de seus requisitos de admissibilidade, já que saber se a sentença está ou não em consonância com um entendimento sumulado pelo STF ou pelo STJ é questão atinente ao juízo de mérito do recurso.”
Leal (2009, p. 237) esclarece de forma brilhante que:
“O que se tem visto é que, a pretexto do juízo absoluto de admissibilidade em todos os níveis, como posto pela Lei Processual Civil brasileira e pelos Regimentos Internos dos Tribunais, as decisões monocráticas sobrepõem-se ao exame colegiado em negativa ao Estado Democrático de Direito e à principiologia constitucional de processo(art.1º,caput, e art.5º, LV, e §2º, da CR/88, merecendo por isso mesmo lúcidas observações de Barbosa Moreira quando fala que ‘ atento à distinção entre os dois juízos, não deve o órgão de interposição indeferir o recurso por entendê-lo infundado: a procedência não é requisito de admissibilidade’ e acrescenta que escapam ao controle do órgão (juízo a quo) as causas de ‘inadmissibilidade supervenientes ao recebimento do recurso’.”
Há também uma cizânia doutrinária quanto a este assunto, pois alguns estudiosos defendem que com a introdução do mencionado artigo de lei, gerou uma verdadeira pré-coisa julgada, já que a sentença proferida em conformidade com Súmula do STJ e/ou STF impede a interposição do recurso de apelação, o que já resultaria em uma coisa julgada sem o decurso do tempo.
Leal (2009, p. 260) explica que:
“Entretanto, o mais despótico nessa lei é o que contém o §1º do art. 518. Aqui o juiz tem figura de factótum, uma vez que, de modo holístico, ab ovo e leviantanicamente, diz que a sentença é cópia fiel (plágio) de súmula do STJ ou STF e, por isso, adquire foros de de uma estranha ‘pré-coisa’ julgada. Transitada em julgado sem decurso do tempo. Eis o magicismo.”
Do mesmo modo, há doutrinadores que afirmam que a súmula impeditiva de recursos não ofende o duplo grau de jurisdição, seja como princípio processual ou constitucional, nem tão pouco o direito ao recurso ou ampla defesa, já que o Código de Processo Civil prevê o direito à interposição ao agravo de instrumento (art. 522 do CPC) em caso de não conhecimento do recurso de apelação interposto que contrarie súmula do STJ ou STF.
Porém, tal fato isoladamente não se está a garantir o direito constitucional ao recurso decorrente da ampla defesa e contraditório, já que em se considerando a súmula impeditiva de recursos válida, o juiz, no exercício da jurisdição, deverá (dever-ser) aplicar as normas vigentes, inclusive aquela que veda a interposição de recurso de apelação quando a sentença estiver de acordo com súmula do STJ ou STF. Ou seja, em verdade haverá sim uma limitação do espaço procedimental discursivo recursal, já que a matéria em debate não será objeto de análise e discussão pelos tribunais superiores.
Por fim, um outro aspecto relevante é no sentido de que a previsão legal de interposição do agravo em face da decisão que não conhecer do recurso de apelação (art. 518, §1º do CPC), demonstra que o objetivo da súmula impeditiva de recursos (celeridade através redução de recursos) não seria alcançado, já que na prática não será evitado o recurso, e, consequentemente, não haverá garantia de efetividade ou celeridade.
4. DA CONSTITUCIONALIDADE OU INCONSTITUCIONALIDADE DAS SÚMULAS IMPEDITIVAS DE RECURSOS
Nossa Carta Magna prevê expressamente as garantias fundamentais da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal, da duração razoável do processo, dentre outras. Sabe-se também que o processo está intimamente ligado e atrelado aos preceitos constitucionais. Por isso, é necessário que toda norma infraconstitucional esteja em harmonia com os princípios constitucionais.
Como bem ensina Ada Pellegrini Grinover (1975, p. 5):
“(...) o direito processual não se separa da constituição: muito mais do que mero instrumento técnico, o processo e instrumento ético de efetivação das garantias jurídicas. Sobre os princípios políticos e sociais da constituição edificam-se os sistemas processuais, num inegável paralelo entre o regime constitucional e a disciplina do processo.”
Nunes (2006, p. 142), por sua vez, citando Andolina e Vignera explica:
“(...) Andolina e Vignera compreendem este modelo como ‘as normas e os princípios constitucionais que se referem ao exercício das funções jurisdicionais, se consideradas na sua complexidade, concedem ao intérprete a determinação de um verdadeiro e próprio esquema geral de processo, suscetível de formar o objeto de uma exposição unitária.’
Nesse perspectiva, a nossa constituição traz um modelo constitucional de processo consubstanciado nos princípios do contraditório da ampla defesa, do direito à prova (...), da isonomia (...), do devido processo legal (...), da fundamentação racional das decisões(...), do juiz natural(...), da inafastabilidade da tutela jurisdicional (...), da celeridade e do direito ao advogado, dentre outros.”
Dinamarco (1999, pp. 127/128) já informava sobre os riscos de alteração das leis com o intuito meramente de resolver problemas do judiciário:
“(...) as alterações ocorridas em vários dispositivos do Código de Processo Civil revelam com nitidez a intenção de reduzir a carga de trabalho dos órgãos superiores da jurisdição, seja mediante a imposição de mais óbices à admissibilidade dos recursos, seja através do acréscimo de poderes do relator, seja limitando a instauração do incidente de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público (...) Se louvores merece a nova lei diante do notório congestionamento dos tribunais, também grandes preocupações e perplexidades ela vem provocando, com sérios riscos de causar injustiças (...) no afã de simplificar sem ouvir democraticamente os especialistas, o legislador andou arranhando valores garantidos constitucionalmente e com isso pôs em perigo a efetividade da tutela jurisdicional justa e tempestiva (...).”
Como já dito anteriormente, a súmula impeditiva de recursos encontra-se estribada no princípio da celeridade, sob o escopo de que a implementação de tal norma constitui meio hábil para garantir um processo célere, com duração razoável, propiciando ainda o desafogamento dos tribunais.
Por isso, torna-se necessária uma interpretação harmônica do princípio da celeridade processual com os demais princípios fundamentais constitucionais como o do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, a fim de verificar a inconstitucionalidade ou não da súmula impeditiva de recursos.
Arenhart (2006, p. 524) explica a harmonia entre tais princípios, afirmando que ao se obstar a tramitação de recursos cujo resultado final conhece-se, uma vez que já se encontra pacificado (sumulado) nos Tribunais Superiores o entendimento acerca da questão recorrida, estar-se-ia evitando um acúmulo despropositado de recursos e processos nos tribunais, particularmente nos casos de ações repetitivas e, por conseguinte, garantindo-se a observância do direito fundamental a razoável duração do processo, insculpido pelo princípio da celeridade processual.
Tal entendimento, porém, não é pacífico. Assim, é necessário atentar-se que a celeridade processual, atualmente, com status de garantia fundamental, só terá eficácia se for compatibilizada com o princípio do devido processo legal, insculpido na Constituição Federal no artigo 5º, LIV, que em seu enunciado reúne todas as demais garantias processuais, tais como: ampla defesa, contraditório, inafastabilidade do Poder Judiciário, razoabilidade e outros.
Observa-se também, e no mesmo contexto, que o número de recursos previstos no Código de Processo Civil não é a única causa da morosidade da Justiça e assoberbamento do judiciário, razão pela qual a restrição ao direito constitucional ao recurso não se mostrou até o presente momento como solução adequada à eficácia das decisões judiciais.
Tavares (2009, p. 117/118) expõe que:
“A demora para se percorrer integralmente a trajetória legal de resolução de conflitos não pode ser imputada a fatores temporais, mas, à contribuição daqueles que participam da estrutura processual, especialmente por questões ligadas à (in) eficiência das atividades desenvolvidas pela máquina judiciária, sabidamente emperrada e viciada.
O novo princípio de direito fundamental da duração razoável do procedimento (e não do processo) e da celeridade de tramitação deve ser aplicado em estrita complementaridade com os demais princípios regentes da processualidade, isto é, isonomia, contraditório e ampla defesa, de modo a se dar uma interpretação sistêmica a este novo direito-garantia, também de índole fundamental, como os demais.”
É notória a necessidade de uma duração razoável do processo e uma garantia da eficácia das decisões judiciais, mas a implementação de tal princípio deve ser implementado respeitando-se o espaço discursivo procedimental no processo, garantindo-se o devido processo legal. Caso contrário, pouca valia teria uma decisão judicial célere proferida em atropelo aos demais princípios constitucionais, visto que esta certamente, apesar de rápida, não alcançaria a pacificação social, já que distante da segurança jurídica.
Diante de tal assunto, Leal (2009, p. 39) ensina que:
“Não há processo, nos procedimentos, quando não estiver antes, institucionalmente definido e constitucionalizado pelos fundamentos normativos do contraditório, ampla defesa direito ao advogado, e isonomia, ainda que o procedimento se faça em contraditório, porque o contraditório há de ser princípio regente (direito garantia constitucionalizado) do procedimento, e não atributo consentido por leis ordinárias processuais (codificadas ou não) ou dosado pela atuação jurisdicional em conceitos e juízos personalistas de senso comum, de convivência ou de discricionariedade do julgador. Na teoria jurídica da democracia, o procedimento só é legítimo quando garantido pela instituição do devido processo constitucional que assegure a todos indistintamente uma estrutura espaço-temporal(devido processo legal e devido processo legislativo)na atuação (exercício), aquisição, fruição, correição e aplicação de direitos.”
Nery (2009, p.79), por sua vez diz que:
“Caracteriza-se pelo trinômio vida, liberdade-propriedade, vale dizer, tem-se o direito de tutela àqueles bens da vida em sentido mais amplo e genérico. Tudo o que disser respeito à tutela da vida, liberdade ou propriedade está sob a proteção da due process clause.”
E em sentido processual significa que:
“(...) a cláusula procedural due process of law nada mais é do que a possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo de modo mais amplo possível, isto é, ter this day in court, na denominação genérica da Suprema Corte do Estados Unidos.”
Por sua vez, Leal (2009, p. 261) afirma que o instituto jurídico do devido processo criou para os litigantes e não para os juízes direitos ao contraditório e à ampla defesa, que são garantias personalíssimas das partes, não podendo sofrer restrições.
Ainda, segundo Leal (2002, p. 171), a defesa ampla assegurada pela constituição deve ser vista como:
“(...) direito processualmente garantido a um espaço procedimental cognitivo à construção de fundamentos obtidos por argumentos jurídicos advindos de liberdades isonômicas exercidas em contraditório na preparação das decisões.”
Gonçalves (1992, pp.120/121) ensina que o contraditório:
“(...) é a garantia participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença, daqueles que são ’interessados’, ou seja, aqueles sujeitos do processo que suportarão os efeitos do provimento e da medida jurisdicional que ele vier a impor.”
“(...) a participação em contraditório se desenvolve ‘entre partes’, porque a disputa se passa perante elas,elas são as detentoras de interesse que serão atingidos pelo provimento.”
O direito ao recurso é garantido constitucionalmente pelos princípios da ampla defesa e contraditório, sendo aquele elemento inerente a tais princípios fundamentais, já que não serve apenas para persuadir ou convencer o magistrado quanto aos argumentos e alegações das partes, mas também para controlar suas decisões.
Assim, tem-se que com a edição da súmula impeditiva de recursos de apelação prevista no artigo 518, §1º do CPC, vedou-se às partes interessadas o direito de recorrer, de reagir em face de uma decisão judicial desfavorável, estendendo ao juiz de primeiro grau o direito de não conhecer do recurso contrário à súmula do STJ ou STF, extrapolando-se a análise dos requisitos extrínsecos de admissibilidade, sem sequer submeter tal recurso à apreciação do Tribunal, o que faltamente fere o princípio da ampla defesa e dos recursos a ela inerentes.
Nunes (2006, p. 176) demonstra que no Estado democrático de direito há necessidade de se garantir às partes o contraditório e ampla defesa como meio de legitimar as decisões:
“O que garante a legitimidade das decisões são antes garantias processuais atribuídas às partes e que são, principalmente, a do contraditório e da ampla defesa, além da necessidade de fundamentação das decisões. A construção participada da decisão judicial, garantida num nível institucional, e o direito de saber sobre quais bases foram tomadas as decisões dependem não somente da atuação do juiz,mas também do Ministério Público e fundamentalmente das partes e dos seus advogados.”
Por isso, alguns afirmam que há uma ofensa ao direito constitucional ao recurso assegurados pela ampla defesa e contraditório, como corolário do devido processo legal. Isto porque há uma vedação às partes do seu direito constitucionalmente assegurado ao recurso, na medida em que impede a criação do espaço procedimental hábil a atacar as falhas do sistema processual que nem sempre garantem o contraditório e a ampla defesa, imprescindíveis ao modelo constitucional de processo vigente no Brasil.
Nery (2010, p. 901), ao defender a inconstitucionalidade do dispositivo legal em discussão afirma:
(...)As garantias fundamentais do devido processo legal e do duplo grau de jurisdição não permitem exercício de futurologia em detrimento do direito das partes. Assim como não é constitucional, tampouco razoável, indeferir-se o processamento de apelação sob fundamento de que a sentença aplicou corretamente a lei ou o direito, não se pode indeferir apelação sob fundamento de que o juiz aplicou corretamente a súmula do tribunal.
Por isso, tem-se que a efetividade da prestação jurisdicional eficaz não está atrelada somente ao fator temporal (a celeridade processual), não se podendo prescindir da segurança jurídica adequada, ao ponto de entrar em confronto direto com os demais princípios constitucionais. Quando houver tal conflito de princípios, igualmente importantes, pode ocorrer justamente o efeito reverso que se quer evitar, gerando o desprestígio, o descrédito e o inconformismo dos jurisdicionados diante de decisões arbitrárias e desprovidas da necessária segurança jurídica, insculpida no Estado Democrático de Direito adotado pelo sistema brasileiro.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo foi de suma importância para que restasse demonstrada a questão do debate acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade das súmulas impeditivas de recursos, criadas com o advento do art. 518, §1º do CPC, introduzido pela lei 11.276/2006.
Diante de tal mecanismo, o magistrado de primeiro grau consegue impedir o processamento da apelação, sempre que o recurso esteja em desconformidade com Súmula do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, evitando o prolongamento do processo, o que em tese desafogaria os tribunais.
Alguns doutrinadores afirmam que tal modificação inserida pela súmula impeditiva de recursos está a fazer prevalecer o requisito quantitativo de desafogamento dos tribunais, relegando em segundo plano e relativizando o devido processo legal, o direito à ampla defesa, contraditório, o direito constitucional ao recurso deles decorrentes.
Pois bem, o presente estudo identificou que tal inovação processual implica em vedação de jurisdição, à medida em que restringiu o espaço amplo discursivo de comparticipação, ao conferir ao juízo a quo a prerrogativa (dever-ser) de não conhecer do recurso (efetuando juízo de mérito e não apenas dos requisitos extrínsecos de admissibilidade), lesando assim os direitos fundamentais do contraditório, ampla defesa e dos recursos a esta inerentes (art.5º, LV da CR/88), além do duplo grau de jurisdição para aqueles que acatam este como princípio constitucional.
Limitou-se, assim, a possibilidade de revisão e/ou análise das decisões através de turma colegiada (órgão hierarquicamente superior), criando mais obstáculos à admissão do recurso, sem contudo garantir a pacificação social, já que a celeridade a qualquer custo não se traduz em eficácia, especialmente quando há desconsideração do modelo constitucional de processo, nos quais se incluem o devido processo legal, contraditório, ampla defesa, dentre outros.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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