Hoje fui assistir Hércules, filme de Brett Ratner com Dwayne Johnson, Rufus Sewell e vários outros bons atores. Como sempre faço me preparei previamente para identificar as diferenças entre a mitologia grega e a sua versão norte-americana.
Já havia anotado vários problemas para discutir aqui, mas fui assombrado pela frase usada pelo poeta galo-romano Rutilius Namatianus no século V para repreender Júlio César.
“Tu fizeste do mundo uma cidade”.
Comecei então a ver o filme Hércules com outros olhos. Prestando atenção ao filme consegui encontrar valores típicos do americanismo na trama e nas ações dos personagens. Hércules, por exemplo, evolui de um mercenário ganancioso e inconsequente para herói desinteressado por riqueza e comprometido com o bem estar do povo. Este tipo evolução dramática - com evidentes intenções moralizantes - pode ser visto em centenas de filmes made in USA recentes e antigos. Humphrey Bogart, por exemplo, representou dezenas de personagens com características semelhantes.
As pessoas submetidas à tirania pelo rei vilão não tem ação própria. Elas precisam ser libertadas pelo redentor musculoso que, correndo riscos imensos sem esperar qualquer retribuição, salva a cidade. O mesmo tema pode ser visto em quase todas as produções hollywoodianas.
O Hércules deste filme é um herói sem muito caráter. Mas entre fugir com o ouro e fazer o bem ele não hesita em fazer a escolha certa. E, apesar dos riscos, é bem sucedido como todo bom personagem tipicamente norte-americano.
Durante séculos, Roma se esforçou para conquistar aldeias, cidades, reinos, repúblicas e impérios inteiros. E não demorou a romanizar tudo aquilo que incorporou ao seu território. A pulsão colonizadora dos romanos foi resumida com precisão e propriedade por Rutilius Namatianus.
A pulsão colonizadora dos norte-americanos também pode ser identificada nos filmes produzidos nos EUA. No mar, no ar, em terra, no passado, no presente, no futuro, dentro ou fora dos EUA e mesmo no espaço sideral o herói cinematográfico made in USA sempre realiza uma tarefa exemplar (salvar um povoado, uma cidade, um país, o planeta ou o universo). Usando extrema violência, ele conclui sua tarefa e geralmente fica com uma bela garota. Quase sempre ele é aplaudido por aqueles que não poderiam fazer coletivamente o que ele fez sozinho (ou com a ajuda de alguns amigos). Algumas vezes o vetor do americanismo é bem remunerado, outras não.
Em Hércules como em vários outros filmes de diversos outros gêneros made in USA, a ação da coletividade é inexistente ou encarada como um mal a ser superado. Não conheço um só filme que veiculo valores do americanismo que valorize a ação organizada, politizada e deliberada das pessoas submetidas à opressão. Em os “7 Samurais”, por exemplo, os camponeses lutam ao lado dos samurais. Na sua versão hollywoodiana (Sete homens e um destino) os pistoleiros norte-americanos contratados pelos aldeãos mexicanos fazem quase tudo sozinhos. Nenhuma politização é possibilitada ou permitida pela estética do americanismo. A idéia básica presentes nestes filmes (sejam eles épicos, de faroeste, de aventura, espaciais, policiais, etc…) é sempre a mesma: um psicopata sozinho ou junto com seus amigos resolverá todos os problemas da coletividade, cuja função é apenas assistir à ação.
Os romanos colonizavam territórios com suas legiões e os romanizavam. Os norte-americanos colonizam as mentes onde quer que sejam projetados os filmes que eles fazem. Onde os filmes made in USA são proibidos eles provavelmente tentarão colonizar com soldados para poder depois vender os produtos culturais que veiculam os valores do americanismo. A estética destes filmes é invariável, por isto é possível ver sempre a mesma coisa com artistas diferentes em ambientes diversos. A estética americanista não admite diferenças culturais, nem respeita as tradições e heranças históricas dos outros povos. Ao espaço e além… onde quer que um ator norte-americano atue num filme made in USA, haverá apenas a fronteira, o pioneiro, o destino manifesto e a superioridade moral de um país capaz de fincar sua bandeira até mesmo no solo sagrado da mitologia grega.
A fixação neurótica dos norte-americanos por si mesmos os distingue dos romanos. Por mais que tenha transformado o mundo nunca cidade, Roma sempre foi capaz de romanizar os deuses dos povos conquistados ou, no mínimo, de permitir às gentes que cultuassem seus próprios deuses mantendo seus próprios ritos e costumes locais (vide http://www.nea.uerj.br/nearco/arquivos/numero6/2.pdf). Ao tempo de Júlio César havia em Roma uma miríade de templos e de cultos estranhos às tradições especificamente romanas. Se o Império Romano não tivesse adotado oficialmente o cristianismo ao tempo de Constantino esta religião não teria se espalhado com tamanha rapidez pela Europa.
O americanismo é um culto intolerante e fechado, incapaz de aceitar quaisquer valores externos. O que a estética americanista não é capaz de absorver (quase tudo presente em todas as culturas, histórias e tradições que existem fora dos EUA) ela desmonta, tritura e se encarrega de destruir em benefício dos valores tipicamente norte-americanos. O que há da vibrante cultura carioca no filme “Velozes e Furiosos 5 - Operação Rio”? Nada. O que há de mitologia grega no filme Hércules? Nada. O americanismo, no entanto, está presente nestes dois filmes. Muito embora pareçam diferentes, no fundo ambos são quase identicos.