3. A Escravidão como Direito de Propriedade
A escravidão tinha como fundamento o Direito Natural. O escravo estava na condição porque era um desejo divino.
O conceito de direito natural traduz-se na existência de um direito fundado na natureza das coisas e, em último tempo, na vontade divina, no direito justo, denominando-se por concepção jusnaturalista (do jusnaturalismo).[30]
O homem, nascendo, ..., com direito à perfeita liberdade e gozo incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, por igual a qualquer outro homem ou grupo de homens do mundo, tem, por natureza, o poder não só de preservar a sua propriedade – isto é, a vida, a liberdade e os bens – contra os danos e ataques de outros homens, mas também de julgar e castigar as infrações dessa lei por outros conforme estiver persuadido da gravidade da ofensa, mesmo com a própria morte nos crimes em que o horror do fato o exija, conforme a sua opinião.[31]
John Loke é tido como o principal defensor da escravidão tendo como fundamento o Direito Natural. Asseverava que defendendo a escravidão estava defendendo o direito de propriedade.
John LoceLocke é considerado pelos seus críticos como sendo "o último grande filósofo que procura justificar a escravidão absoluta e perpétua". Ao mesmo tempo que dizia que todos os homens são iguais, Locke defendia a escravidão (sem distinguir que fosse a relativa aos negros). ... Também é necessário lembrar que a defesa da escravidão decorre da defesa do direito de propriedade que é uma das grandes ideais do liberalismo, e isso une ele aos outros liberais clássicos: O direito de propriedade como um dos Direitos Naturais do ser humano.[32]
O escravo era considerado simultaneamente coisa (“res”) e pessoa. Não era detentor de nenhum direito civil. Quem falava por ele era seu dono e senhor.
Do ponto de vista civil o escravo era res, simultaneamente coisa e pessoa. Mas não participava da vida da civitas, pois estava privado de toda capacidade. Em conseqüência, não tinha direitos civis, muito menos políticos e também não podia atuar em atos como testemunhar em juízo, testar, contratar ou exercer tutela. Pela mesma razão, sendo civilmente incapaz, não constituía, de direito, família, mas apenas uniões de fato.[33].
Os direitos do senhor sobre seu escravo era intuito personae e potestativo:
A dominica potestas dos Romanos, constando de dous elementos – o dominium e a potestas, impunha ao escravo duplo subjeição ao senhor, e o considerava ao mesmo tempo como cousa e como pessoa. Esta instituição não despessoalizava, pois, inteiramente o escravo, nem poderia elle sel-o, pois que a sua incapacidade era subjeita a restrições. À proporção, porém, que o direito estricto se foi aproximando do racional, foi-se restrigindo a dominica potestas, e paralelamente alargando a capacidade dos escravos, esta instituição reconhecida como oposta á natureza,e a liberdade como faculdade natural. Entre nós também os direitos do senhor sobre o escravo constituem domínio e poder, em relação ao domínio o escravo é cousa, em relação ao poder é pessoa. [34]
No mesmo sentido:
No direito romano o termo personae era usado como equivalente a homo e não como titular de direito. Por isso os escravos eram considerados ao mesmo tempo personae, e res. Isto não significa que o escravo pudesse ser titular de direito, pois Ulpiano esclarece muito bem a sua posição perante o direito civil – “Quod attinet ad IUS CIVILE SERVI pro nullis habentur.” O escravo não era sujeito de direito, pois era considerado uma coisa, ou melhor, um animal humano. O dominus exercia sobre o servus o direito de propriedade e para sancionar esse direito fazia uso da reivindicatio, isto é, da mesma ação de que se servia em se tratando de um objeto móvel.[35]
O senhor era o proprietário do escravo. Este tinha preço, podia ser comprado e vendido. Existia inclusive, leilões para compra e venda de escravos.
E mais, essa propriedade era absoluta. Podia fazer o que bem entendesse. Os escravos eram punidos através de chicotadas (açoites). Várias escravas eram vítimas de estupros dos seus senhores (na verdade não era nem considerado como estupro). Muitas delas acabavam engravidando destes. E os filhos adulterinos, mesmo sendo mestiços, ficavam na condição de escravo. Enfim, o senhor tinha direito de vida e morte sobre o escravo.
Joaquim Manoel de Macedo, descreve com precisão os conflitos existentes entre senhores e escravos em virtude da escravidão. Fala da ingratidão, da sede de vingança e da perversidade dos escravos em virtude da escravidão. Afirma ainda que a escravidão degradava, depravava, e tornava o homem capaz dos mais medonhos crimes. Muito embora seja uma obra ficcional nada mais é do que o retrato da realidade que persistia no século XIX:
“[...] a ingratidão e a perversidade não explicam pela natureza raça, o que seria absurdo; explicam-se pela condição de escravo, que corrompe e perverte o homem. .. O crioulo amorosamente criado pela família de senhores seria talvez o seu melhor amigo, se não fosse escravo. ...Onde há escravo é força que haja açoite.
Onde há açoite é força que haja ódio.
Onde há ódio é fácil haver vingança e crimes. ... O escravo é necessariamente mau e inimigo de seu senhor. ... Não há, não pode haver escravidão sem idéia de vingança, sem o sentimento do ódio a envenenar as almas dos escravos, e a vingança e o ódio tem sempre chegado de antemão à metade da viagem, quando soa a hora infernal da marcha pelo caminho do crime. ... Sabem todos o que é o amor entre os escravos: a condição desnatura desses exilados da sociedade, desses homens reduzidos a coisas, desses corpos animados a quem se negam direitos de sensibilidade, materializados à força, materializa neles sempre o amor: sem o socorro das poesias dos sentimentos que alimenta o coração e o transporta às regiões dos sonhos que se banham nas esperanças de santos e suaves laços, os escravos só se deixam arrebatar pelo instinto animal, que por isso mesmo os impele mais violento. ... A mucama não tem a educação da senhora-moça: a natureza animal é tudo ela. O escravo não crê na pureza da donzela, nem na fidelidade da esposa mais nobre; admite somente que a falta de oportunidade ou de ocasião para ser má seja o que mantém a honra das famílias; a observação é cruel e injustissima: o juízo do escravo é Infamemente torpe; mas ele julga conforme as idéias e a vida da escravidão. ... A escravidão gasta, caleja, petrifica, mata o coração do homem escravo....Ninguém dissimula melhor que o escravo: sua condição sempre passiva, a obrigação de obediência sem limite e sem reflexão, o temor do castigo, a necessidade de esconder o ressentimento para não excitar a cólera ameaçadora do senhor, o hábito da mentira, enfim, fazem do escravo o tipo da dissimulação. ...
Entre os escravos a ingratidão e a perversidade fazem a regra; e o que não é ingrato nem perverso entra apenas na exceção.
Porquanto, e todos os sabem, a liberdade moraliza, nobilita, e é capaz de fazer virtuoso o homem.
E a escravidão degrada, deprava, e torna o homem capaz dos mais medonhos crimes.”[36]
Machado de Assis, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, também descreve a escravidão de forma ácida. O menino Prudêncio era o “bicho de estimação” de Brás Cubas. Fazia todas as maldades possíveis e inimagináveis. Também, narra que após a alforria (libertação) de Prudêncio, este compra um escravo e faz todas as maldades tal qual tinha sofrido na sua infância.
Desde os cinco anos merecera a alcunha de “menino diabo”; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher de doce de coco que estava fazendo e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer a minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque da casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, algumas vezes gemendo, mas obedecia sem dizer palavra, ou quando muito, um “ai, nhonhô!” ao que eu retorquia: - “Cala a boca, besta!
... ...era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: - “Não, perdão meu senhor; meu senhor perdão!” Mas o primeiro não fazia cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
- Toma, diabo! Dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
- Meu senhor! Gemia o outro.
- Cala a boca, besta! Replicava o vergalho.
Parei, olhei...Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, o que meu pai, libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a benção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
- É sim, nhonhô!
- Fez alguma coisa?
- É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixe ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
- Pois não nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado.
... Logo que meti mais dentro na faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porem, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!” [37]
Na verdade, a escravidão no Brasil, tinha cunho econômico. Como dito os senhores eram proprietário do escravo. Havia comércio de compra e venda de escravo. Caso houvesse a libertação dos escravos seus senhores teriam grandes prejuízos, vez que pagaram pelo escravo e não seriam ressarcidos. Por isso, que muitos defendiam, que o fim da escravidão deveria ser lento e gradual.
...ao longo das décadas de 1850 e 1860, muitos escravos usaram a justiça para lutar contra seus senhores, a fim de obrigá-los a lhes conceder a liberdade mediante a apresentação de seu valor.
...
Para muitos senhores e parlamentares, era preciso ir devagar e a liberdade não podia ser concedida de forma rápida e direta: os escravos tinham um preço que devia ser indenizado, e a liberdade não poderia dar origem à gente completamente livre, mas a ingênuos e libertos que, de várias formas, deveriam permanecer sob a tutela senhorial ou do Estado...[38]
Uma vez liberto (às suas custas ou mesmo quando alforriados pelo senhor), os ex-escravos teriam um ano para se assalariarem. Aqueles que não conseguissem provar esta condição em presença de um magistrado, voltariam a ser escravos. Seriam colocados em hasta pública e o valor de suas vendas seria revertido para libertar outros cativos.[39]
Ao estudarmos o escravo ante a lei civil... neste meio século, teremos como fundamentais os conflitos entre a escravidão e o quadro institucional do país (representado pela monarquia constitucional e pela economia agro-exportadora), e ainda entre a escravidão sustentada pelo direito positivo e as concepções jurídicas oriundas do constitucionalismo. ...Quanto ao liberalismo político, ideologicamente dominante desde a independência, conviveu em geral com a escravidão como uma situação de fato. O discurso liberal quase sempre apontava para sua transitoriedade e seu fim inexorável, embora garantisse, através dos preceitos constitucionais que determinavam a cidadania e o sufrágio censitário, a exclusão de escravos e libertos do processo político.[40]
Mas, como é sabido por todos, não foi isso que ocorreu. A Lei Áurea, de 1888, assinada pela princesa Isabel, decretou o fim da escravidão do Brasil, sem nenhum direito de ressarcimento aos senhores. Inclusive isso, foi uma das causas da queda do império no Brasil.
No campo penal, o escravo, era visto como pessoa. Poderia responder por seus atos. Se o ato criminoso causasse dano civil a alguém, quem seria responsável neste caso, seria seu senhor que pagaria a quantia determinada pelo magistrado, ou, se preferir poderia dar o escravo ofensor ao ofendido a título de pagamento.
Na lei penal, diferentemente da civil, o escravo sujeito ativo ou agente do crime era considerado pessoa e não coisa, o que significa dizer que respondia plenamente por seus atos, como imputável. Enquanto sujeito passivo, o mal a ele feito era considerado não dano mas ofensa física (aplicando-se o dispositivo do artigo 201 do Código Criminal do Império, como aos homens livres), embora cabendo ao proprietário indenização civil, ... . A legislação colonial negava-se ao senhor o direito de vida e morte, concedendo apenas a aplicação de castigo “moderados”, que definia. O Código Criminal do Império (art. 14, § 60) seguiu essa orientação. A prisão domiciliar, por exemplo, era concedida ao senhor. ...Quando o fato criminoso, praticado por escravo, causava também danos civis, o senhor deveria indenizar o ofendido até o limite do valor do escravo. ... Nos casos em que o escravo ofensor era entregue pelo senhor ao ofendido, a lei considerava-o ressarcido (Código Criminal, art. 28, § 1°).[41]
Como vimos, durante o regime escravocrata no Brasil sempre houve um confronto entre escravos e senhores .[42] Cada qual defendendo seus interesses. Ocorre que isso não ocorreu apenas neste período, mas em toda a história das civilizações sempre houve conflitos entre classes.
A história do de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra, ora franca, ora disfarçada.[43]
Por fim, é necessário não olvidar que a escravidão foi e sempre será uma mancha na história do Brasil. Nem o Direito Natural nem qual outro Direito é capaz de justificar o tratamento degradante e desumano dispensado aos nossos irmãos de raça negra até o século XIX.