6. Novas correntes doutrinárias (Direito alemão e italiano)
Em face da complexidade do Direito Administrativo contemporâneo é possível fixar-lhe um conceito central ? Se tal fosse possível, que conceito ou noção deveria constituir a coluna vertebral deste Direito Administrativo. Na proposição de "novas soluções" para este "dilema existencial" três correntes fundamentais são hoje perfilhadas pela doutrina :
1ª Corrente
Trata-se de uma corrente "conservadora".
Embora sustente a necessidade de renovação profunda do Direito Administrativo, a fim de adequá-los às novas realidades, esta tendência propõe a manutenção do conceito de ato administrativo como conceito central, vislumbrando-o, ainda hoje, como uma das formas mais importantes de atuação administrativa.
Para esta corrente, o conceito de ato administrativo deve ser redefinido, reelaborado e adequado às novas realidades, de tal forma a continuar merecedor de um tratamento particular e privilegiado no âmbito do Direito Administrativo na atualidade. Tal é a corrente predominante na doutrina francesa e brasileira atual. Na Alemanha, embora não seja predominante, é defendida por autores como MAURER, BULL e SHENKE. Na Espanha é a posição de GARCÍA DE ENTERRÍA. Em Portugal é a corrente de DIOGO FREITAS DO AMARAL e ROGÉRIO SOARES.
2ª Corrente
Trata-se de uma corrente "conciliatória". Reconhece a inadequação do conceito de ato administrativo como conceito central do Direito Administrativo. Contudo, propõe a sua manutenção no atual estágio de desenvolvimento desta disciplina jurídica, apenas no que toca ao regulamento do exercício do poder de polícia; para outras atuações administrativas o conceito se revelaria absolutamente imprestável.
Para esta corrente, em face da grande complexidade da atual Administração Pública, torna-se difícil, senão impossível, a fixação de um "conceito central" para o Direito Administrativo, sendo, portanto, necessário, levar-se em conta as especificidades da Administração "agressiva" e da Administração "prestadora". Teríamos, assim, um Direito Administrativo "decomposto" em duas partes, cada uma delas marcadas por singularidades estruturais. O Direito Administrativo tradicional continuaria válido somente para o âmbito da Administração agressiva, onde predominam as "atividades de polícia". Esta corrente tem como representante o jurista alemão ERNST FORSTHOFF.
3ª Corrente
Trata-se de uma corrente "radical". Apregoa uma inadequação visceral do conceito de ato administrativo como conceito-chave do Direito Administrativo, no quadro do atual relacionamento Administração-administrados. Defende-se, aqui, a necessidade de uma renovação do sistema jurídico-administrativo, em virtude da deslocação do centro de gravidade dos eventos administrativos. Propõe-se, assim, a substituição do conceito clássico de ato administrativo por um novo conceito central, apto a unificar todos os setores da Administração Pública e da atuação administrativa.
Para uns tal conceito seria o de "relação jurídica administrativa", sendo esta a posição predominante atualmente na doutrina alemã (BACHOF, HAEBERLE, HENKE, BAUER, ACHTERBERG, MARTENS). Para outros, o conceito-base deveria ser o de "procedimento", sendo esta a posição dominante na doutrina italiana. Veremos, a seguir, as proposições dos doutrinadores alemães e italianos.
7. A alternativa da relação jurídica administrativa
Para parte da doutrina, sobretudo de matriz alemã, o conceito de "relação jurídica administrativa" deveria ser o novo conceito central do Direito Administrativo atual. Para esta corrente, a noção de ato administrativo reflete apenas "um momento", "um instante", do complexo relacionamento entre a Administração Pública e o particular, relacionamento este que não se esgota numa atuação pontual.
Para BACHOF [9], o ato administrativo é apenas uma fotografia instantânea que representa relações em movimento, porque ele fundamenta, cria, ou põe termo a uma relação jurídica, e porque esta relação jurídica é muito mais importante e interessante do que o ato para uma reflexão jurídico-material. Assim, o conceito de relação juridico-administrativa seria o conceito teórico mais adequado para o enquadramento da atual realidade juridico-administrativa.
O ponto forte desta concepção é considerar a existência de verdadeiras relações jurídicas administrativas entre a Administração e os particulares, e não meras relações de poder, como pretendia a dogmática tradicional. Nestas relações jurídicas, Administração e particulares atuam como sujeitos de direito, titularizando direitos e obrigações recíprocas. A doutrina da relação jurídica pretende, assim, superar as limitações da doutrina do ato administrativo, posto que a noção de relação juridico-administrativa revela uma amplitude bem maior que a noção de ato, abrangendo todas as formas de atuação administrativa.
Para esta corrente, o conceito de relação juridico-administrativa permite explicar os diversos vínculos jurídicos existentes entre a Administração e os particulares, anteriores e posteriores a pratica dos atos administrativos, estando, pois, mais sintonizada com as exigências do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput).
Esta corrente, recolocando a Administração Pública no contexto de um Estado Democrático de Direito, busca na Constituição sua fundamentação e legitimação doutrinária. De fato, no ambiente jurídico-político do Estado de Direito, a relação entre o Estado-Administração e os outros sujeitos de direito (cidadãos, grupos sociais, empresas) é mais uma "relação jurídica" do que uma mera "relação de poder".
Em conformidade com esta perspectiva, como ensina Vasco Pereira da Silva [10], "o particular encontra-se perante a Administração, não como um mero objeto do poder administrativo – um simples ‘administrado’ -, mas como um autônomo sujeito jurídico, que ocupa no mundo do direito uma posição igual à da Administração." Observe-se que, no plano da teoria do direito, a noção de relação jurídica encontra-se umbilicalmente vinculada à idéia de direito subjetivo.
Não vale aqui, para esta corrente, o calejado argumento de que a posição da Administração é forçosamente diferente da posição do particular, por se tratar de um "poder público", encarregada de fazer prevalecer o "interesse público".
Argumentos de duas ordens são aqui esgrimados: a) a consecução dos interesses públicos por parte da Administração nem sempre implica o uso de poderes autoritários, os chamados "poderes administrativos", principalmente quando se tem em conta a proliferação de formas de atuação não autoritárias; b) por outro lado, mesmo quando a Administração tem de lançar mão de seus "poderes de autoridade", máxime quando pretende determinar condutas de forma unilateral, exercita sempre um "poder jurídico", poder jurídico jurídico este integrado no quadro de uma relação jurídica administrativa mais ampla e complexa.
Diante destes "poderes", juridicamente regrados, o particular é sempre titular de direitos subjetivos, estabelecidos na Constituição e nas leis.
8. A alternativa do procedimento administrativo
Outra corrente, de matriz italiana (NIGRO, CASSESE, PASTORI, PERICU, PUGLIESE, CARDI), vê no procedimento administrativo o conceito central do atual Direito Administrativo. MARIO NIGRO [11] afirma que presenciamos à "absorção do ato administrativo num quadro de formas de atividade mais complexas e articuladas". Para o autor italiano, "o problema central do Direito Administrativo é o problema do procedimento".
De fato, a Administração Pública atual, em suas relações com os particulares, pode atuar de duas formas básicas: de uma forma unilateral e autoritária, onde lança mão de seus poderes tradicionais, ou de uma forma bilateral ou consensual, lançando mão de "técnicas contratuais". Em ambas as formas de atuação o procedimento é o dado comum. O procedimento administrativo regula ambas as formas da ação administrativa, antecedendo tanto a edição do ato administrativo típico, quanto a celebração de contratos com os particulares.
Desta forma, segundo Vasco Pereira da Silva [12],
"o procedimento administrativo surge numa posição privilegiada para ocupar o lugar central da dogmática administrativa, permitindo a compreensão de todos os fenômenos administrativos, quer de tipo tradicional, quer correspondentes às novas modalidades de atuação administrativa". (p.121)
Somente há pouco tempo a doutrina "acordou" para a real importância teórica e prática do "procedimento administrativo".
Tradicionalmente, o procedimento era estudado em função do ato final, que consubstanciava uma determinada decisão administrativa. O procedimento era visto como um mero instrumento a serviço do ato administrativo, e não como um instituto autônomo, regulador da ação administrativa.
No atual Direito Administrativo, o conceito de procedimento tende a "destronar" o conceito de ato, enquanto conceito central deste ramo do direito público. O foco, portanto, muda. Sai do ato e vai para o procedimento.
Para esta corrente, que gradativamente ganha espaço na doutrina brasileira, a noção de procedimento administrativo apresenta significativas vantagens sobre a noção de ato, na dinâmica do Direito Administrativo de nossos dias.
Primeiro, possibilita uma uniformização no tratamento jurídico de toda atividade administrativa, posto que o procedimento seria o elemento comum a todos os setores e formas da atuação administrativa. Atuando de forma autoritária e unilateral, ou de forma consensual e contratual, teremos sempre a necessidade de um procedimento administrativo. Veja-se, neste sentido, a proliferação de Leis de Procedimento Administrativo em diversos países, inclusive no Brasil, nos últimos anos.
Segundo, a instituição do procedimento administrativo permite fixar num quadro mais amplo e complexivo a integralidade da atividade administrativa em suas variadas forma, assim como seu relacionamento com os particulares no "decurso do tempo" ("in fieri"), e não apenas no momento final da edição do ato administrativo.
Ajunte-se às duas vantagens acima uma outra, de natureza jurídico-política, de cunho democrático, no atual contexto do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput). O procedimento administrativo "faz uma ponte" entre autoridades públicas e sujeitos particulares, permitindo a estes, numa democracia participativa, influenciarem nas decisões administrativas.
Conclusão
Sensato revela-se o diagnóstico da exaustão da posição de centralidade do conceito de ato administrativo no Direito Administrativo, tendo em vista o atual quadro das relações administrativas, no contexto das profundas transformações que se abateram sobre o Estado e a Administração Pública. Pode-se, inclusive, falar em crise do ato administrativo, uma vez que tal conceito já não reflete mais a forma de atuação dominante da Administração Pública em relação aos particulares, bem como não consegue abarcar a integralidade das relações Administração-Administrados.
De fato, a atuação administrativa assumiu, na atual quadra histórica, uma pluralidade de formas. O ato administrativo deixou de ser a forma exclusiva (ou mesmo a mais freqüente) de atuação administrativa. Percebe-se, neste sentido, uma proliferação de formas de atuação genéricas, tais como, as decisões-plano (vg., os planos urbanísticos) e de formas de atuação não autoritárias, como sejam: as atuações disciplinadas pelo direito privado, as atuações contratuais e as atividades na natureza técnica.
Contudo, se é verdade que o "ato administrativo" não pode mais ser considerado como o novo "centro" do Direito Administrativo, não é menos verdade que não se pode, "tout a court", desprezar-se toda a rica construção doutrinária em torno deste instituto, de fundamental importância histórica e conceitual na estruturação desta disciplina jurídica.
Com efeito, existem ainda vastos setores da Administração Pública onde o conceito de ato administrativo revela ainda uma grande funcionalidade, em especial, no que concerne à atividade decorrente do "poder de polícia", ou, numa terminologia mais moderna, no campo das "limitações administrativas à liberdade e à propriedade". Tal atividade vem crescendo em amplitude e intensidade em nossos dias, sendo, neste setor, de fundamental importância o conceito de ato administrativo.
Contudo, mesmo admitindo-se uma "sobrevida" na noção de ato administrativo, a manutenção deste conceito reclama um melhor enquadramento do mesmo. Tal enqradramento poderia ser dado pelos conceitos de "procedimento" ou "relação jurídica administrativa", conceitos estes, mais sintonizados como os postulados e exigências do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput).
Não se pode, contudo, negar a necessidade de uma profunda renovação (ou mesmo reconstrução) da dogmática jurídico-administrativa, operando-se um oportuno e inevitável deslocamento de seu eixo central.
Neste deslocamento, qual conceito revelar-se-ia mais funcional e adaptado aos "novos tempos"? o de "relação jurídica administrativa" (conforme alternativa sugerida pela doutrina alemã) ou de "procedimento" (conforme opção da doutrina italiana)?.
Difícil revela-se a escolha, se é que é possível fazê-la: é grande a complexidade do Direito Administrativo atual e, daí, a dificuldade de eleger-se um "conceito central".
De fato, os dois conceito destacam e acentuam aspectos e exigências da atual dogmática administrativista.
O conceito de "relação jurídica administrativa" enfatiza uma perspectiva "subjetivista" do Direito Administrativo, voltada para a promoção e proteção dos direitos subjetivos públicos dos particulares em face da Administração.
Já o conceito de "procedimento" enfatiza uma ótica mais "objetivista", direcionada à realização do interesse público através da participação dos particulares. Trata-se, portanto, de orientação de grande inclinação democrática.
Por qual das duas "vias alternativas" deve trilhar a reconstrução da dogmática administrativista ? Qual das duas noções revela maior funcionalidade e virtude conceitural no atual estágio do Direito Administrativo ?
Acreditamos legítima uma "postura dialética", de caráter não maniqueísta. De fato, as noções de "relação jurídica" e "procedimento administrativo" não nos parecem realidades ou conceitos incompatíveis ou mutuamente excludentes, permitindo-se, ademais, com a articulação de ambos, a composição de uma perspectiva subjetivista com outra de caráter objetivista, fundamental ao equilíbrio perseguido pelo Direito Administrativo.
Como diz Vasco Pereira da Silva (op. cit., p. 121/122), no Direito Administrativo atual, pode-se, simultaneamente, conceber e valorizar o procedimento como o "quadro" ou o "pano de fundo", onde se estabelecem e desenvolvem relações jurídicas administrativas.
Bibliografia
BACHOF, Otto. Die Dogmatik des Verwaltungs vor den Gegenwartsaufgabem der Verwaltung. Walter de Gruyter, 1972.
GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Curso de Derecho Administrativo. vol. I, Civitas, Madrid: Civitas, 2000.
NIGRO, Mario. Giustizia Amministrativa, 3.ed. Bologna: Il Mulino, 1983.
SANTAMARIA PASTOR, Juan Alfonso. Fundamentos de Derecho Administrativo. vol. I, Editorial Centro de Estudios Ramon Areces, Madrid, 1991.
SILVA, Vasco Manuel Pereira da. Em busca del Acto Administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 1995.
Notas
1. Direito Constitucional Comparado, Rio de Janeiro, Renovar, p. 71.
2. Curso de Derecho Administrativo, V. I, Madrid, Civitas, 2000, p. 518
3. Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Coimbra, Almedina, 1998, p. 64
4. Ibidem
5. Op. cit., p. 40
6. Fundamentos de Direito Administrativo, V. I, Editorial Centro de Estudios Ramon Areces, Madrid, 1991, p. 163
7. Op. cit., p. 71
8. Op. cit., p. 111
9. Die Dogmatik des Verwaltungs vor den Gegenwartsaufgabem der Verwaltung, Walter de Gruyter, Berlin, 1972, p. 231.
10. Op. cit. P. 165
11. Giustizia Amministrativa, 3ª ed., Il Mulino, Bologna, 1983, p. 126
12. Op. cit., p. 121