1. Introdução
A Lei 9.528/97 inovou o artigo 16 da Lei 8.213/91 e redefiniu o rol de dependentes no RGPS. Façamos, antes de mais nada, a transcrição:
Redação original da Lei 8.231/91:
§ 2º Equiparam-se a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação. Revogada
Redação alterada pela Lei 9.528/97:
§ 2º .O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 1997) Vigente
Não pôde ser mais clara a intenção da Lei 9.528/97 ao retirar do rol do 16 da Lei 8.213/91 os menores sob guarda. Obviamente, pretendeu a lei não mais contemplar essa espécie de vínculo como suficiente à caracterização da condição de dependente, expurgando da cena previdenciária qualquer relação que, fundada neste laço com o segurado, buscasse o recebimento de benefícios.
Mesmo assim, há quem insista na permanência do menor sob guarda na condição de dependente com o fulcro no Estatuto da Criança e do adolescente, que em seu artigo 33 estabelece:
Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais. (Vide Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
(...)
§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários.
A lei previdenciária não mais contempla o menor sob guarda como segurado. Restou com dependente apenas o tutelado. Importante frisar que a ciência jurídica confere categórica diferença entre os institutos da tutela e da guarda, não se podendo, diante da nítida pretensão diferenciadora da lei, confundir os dois institutos.
Portanto, equivocada a conclusão meritória que reconheceu, em flagrante ofensa à nova redação do § 2º, art. 16. da Lei 8.231/91, direito ao recebimento de pensão por morte a pessoa não contemplada como dependente em lei. Eis o que se passa a explicar e fundamentar.
2. Lei previdenciária. Especial e noviça em relação ao ECA.
A pretexto de dar validade à condição de dependente aos menores sob guarda, alguns consideram que a alteração trazida pela Lei 9.528/97 não seria suficiente a alterar o quadro de dependência já reconhecido pelo art. 33. do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), que preconiza a condição de dependente ao menor sob guarda para todos os efeitos, inclusive previdenciários.
Eis aqui o quem chama a doutrina de antinomia aparente entre normas. O presente caso, longe de configurar exemplos mais custosos de solução quanto à aplicabilidade (antinomias de segundo grau), é facilmente resolvido pelas regras ordinárias, que remetem a critérios simples como a especialidade, anterioridade e hierarquia, todos constantes da própria Lei de Introdução ao Código Civil.
Sendo impróprio o último desses critérios por tratarem ambas as leis de mesma ordem hierárquica, os dois remanescentes apontam pela prevalência da lei previdenciária que, no caso, muito mais específica e recente.
Ora, não se pode considerar que na disciplina jurídica previdenciária, ramo próprio e autônomo do Direito, a norma relativa aos direitos da criança e do adolescente seja mais específica. Em se tratando de benefícios, claro é a primazia e a especialidade da legislação previdenciária sobre as demais.
Nada mais pertinente e adequado do que regular situações atinentes ao Direito Previdenciário na própria legislação regente (soa até um pleonasmo). Quisesse o legislador manter hígido o art. 33. do ECA (em detrimento da inovação operada no PBPS), teria ressalvado sua aplicação para aplicação do ECA, assim como fez o prórpio ECA quando quis se fazer aplicar em outro ramo jurídico (o previdenciário, no caso). Ao excluir o menor sob guarda da condição de dependente, não teria outro propósito a lei previdenciária senão atingir os adolescentes e as crianças, únicos destinatários das regras relativas à guarda.
A especialidade da regra previdenciária em detrimento de outras só gera dúvidas porque o interprete, equivocadamente, quer dar mais atenção ao instituto da “guarda” do que à “condição de dependente”. Vejamos.
Não se quer discutir o alcance e a natureza da relação de dependência gerada nas situações de guarda. Isso é indiscutível, ou melhor, é matéria afeta à doutrina menorista. O instituto da guarda e seus efeitos não são discutidos na seara previdenciária. O que a legislação previdenciária regulamentou foi apenas que essa relação não gera efeitos previdenciários (não é dependente). Não resta dúvida de que a discussão sobre os efeitos previdenciários de determinada relação será mais especificamente tratada na lei previdenciária do que em outro diploma qualquer (do que no ECA, p. ex.). Daí ter operado a revogação da Lei 8.069/90 com o advento da Lei 9.528/97, pois mais específica.
A prova cabal de que o art. 33. do ECA não é específico com relação ao art. 16. da Lei Previdenciária se dá com o seguinte raciocínio: tivesse o legislador apenas revogado a expressão “inclusive previdenciários” do art. 33. do ECA, isso implicaria na descaracterização dos menores sob guarda da condição de dependentes? A resposta é negativa, pois o próprio art. 16. da PBPS continuaria a garantir essa situação ao menor sob guarda, justamente por ser mais específico. A revogação deste trecho do art. 33. do ECA não implicaria em uma revogação tácita do art. 16. da PBPS, o qual continuaria expresso em garantir situação de dependência aos menores sob guarda, independente de previsão legal em outro diploma. Assim, justamente por essa relação de independência com outros diplomas, a Lei 8.213/91 é especial.
Existem mais argumentos. Vamos seguir por outro raciocínio.
Mesmo com o desconforto de alegar o óbvio, é preciso lembrar que a primazia do trato de questões “previdenciárias” pelo “próprio diploma previdenciário” (o pleonasmo é necessário e proposital) em detrimento do ECA se dá, pacificamente, em relação a outros aspectos do art. 16. Veja só. Nesse sentido, perceba que os dependentes de uma mesma classe concorrem em igualdade de condições, ainda que sejam eles filho menor e cônjuge. Essa repartição igualitária entre as classes é regra estipulada pelo diploma previdenciário, e não se rende frente aos argumentos de que a proteção integral da criança ou adolescente (premissa básica do estatuto menorista) e as inequívocas maiores dificuldades de sustento desses incapazes justificariam repartição proporcional e favorável aos menores, e não igualitária entre eles (esposa e cônjuge). É dizer, pelo ECA, os menores deveriam receber mais, seguindo a doutrina da “proteção integral”. Contudo, a lei previdenciária é que diz e determina a repartição igualitária, e assim fica. Mais uma vez, não há ingerência do ECA sobre o PBPS.
É bom lembrar que a discussão sobre a especialidade ou não da lei previdenciária com relação a outros diplomas já foi alvo de muita discussão. Relembremos o episódio da edição do Novo Código Civil em 2002 e comparemos.
Quando da edição do Novo Código Civil em 2002, veio à tona, com o redimensionamento etário da condição de capaz para 18, a discussão sobre: teria a norma do Novo Código Civil reduzido a condição de dependente previdenciário para 18 anos, por se tratar de norma mais recente e mais específica? A resposta foi negativa, sumulando a I Jornada de Direito Civil o seguinte enunciado: “A redução do limite etário para a definição da capacidade civil aos 18 anos não altera o disposto no art. 16, I, da Lei nº 8.213/91, que regula específica situação de dependência econômica para fins previdenciários e outras situações similares de proteção, previstas em legislação especial.”
Ou seja, a própria definição de capacidade do cidadão, um dos principais postulados da ordem civil brasileira, não foi capaz de modificar a relação de dependência previdenciária, estendida até os 21 anos. Assim foi porque a Lei 8.213/91 é mais específica.
Transfiramos o mesmo raciocínio para o caso em foco. A situação em tese é de toda similar. Se, naquela oportunidade, ninguém levantou bandeira para defender uma redução etária da condição de dependente, outorgando à Lei 8.213/91 a patente de “lei específica” em relação a outros diplomas, motivos não há para outro posicionamento em relação ao ECA, pois.
Alterar o raciocínio para esse confronto entre o ECA e a LBPS seria de uma incoerência tamanha.
Além do critério da especialidade, a alteração promovida pela Lei 9.528/97 é mais recente, havendo não um, mas dois critérios de solução hermenêutica em favor da lei previdenciária.
3. Do posicionamento jurisprudencial sobre o conflito aparente entre o art. 33. do ECA e a alteração do art. 16. do PBPS pela Lei 9.528/97
A Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudências dos Juizados Especiais Federais, em julgados recentes, tem-se posicionado pela revogação tácita do art. 33. do ECA. Confira:
PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. MENOR SOB GUARDA. IMPOSSIBILIDADE.CONFLITO APARENTE DE NORMAS. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO PREVIDENCIÁRIA.
Divergência com a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça inexistente. Comprovada contrariedade entre a Turma Recursal de SP e a Turma Recursal do Paraná. Menor sob guarda judicial, nos moldes do art. 16, §2º da Lei 8.213/91, não tem direito a perceber pensão por morte. Afastada a aplicação do art. 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente por ser norma de cunho genérico, cuja incidência é afastada pelas leis específicas.
Incidente de uniformização conhecido e provido.
(Origem: JEF Classe: PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO DE INTERPRETAÇÃO DE LEI FEDERAL Processo: 200563060150935 UF: null Órgão Julgador: Turma Nacional de Uniformização Data da decisão: 26/03/2007 Documento: Fonte DJU 21/05/2007 Relator(a) JUIZA FEDERAL RENATA ANDRADE LOTUFO Decisão ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, após voto-vista do Juiz Federal Marcos Roberto Araújo dos Santos, acompanhando o voto da Juíza Federal Renata Andrade Lotufo, a Turma Nacional de Uniformização, por unanimidade, conheceu do pedido de uniformização e deu-lhe provimento.)
PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. MENOR SOB GUARDA. IMPOSSIBILIDADE.CONFLITO APARENTE DE NORMAS. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO PREVIDENCIÁRIA.
Divergência com a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça inexistente. Comprovada contrariedade entre a Turma Recursal de SP e a Turma Recursal do Paraná.
Menor sob guarda judicial, nos moldes do art. 16, §2º da Lei 8.213/91, não tem direito a perceber pensão por morte.
Afastada a aplicação do art. 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente por ser norma de cunho genérico, cuja incidência é afastada pelas leis específicas.
Incidente de uniformização conhecido e provido.
(Origem: JEF Classe: PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO DE INTERPRETAÇÃO DE LEI FEDERAL Processo: 200563060150935 UF: null Órgão Julgador: Turma Nacional de Uniformização Data da decisão: 26/03/2007 Documento: Fonte DJU 21/05/2007 Relator(a) JUIZA FEDERAL RENATA ANDRADE LOTUFO Decisão ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, após voto-vista do Juiz Federal Marcos Roberto Araújo dos Santos, acompanhando o voto da Juíza Federal Renata Andrade Lotufo, a Turma Nacional de Uniformização, por unanimidade, conheceu do pedido de uniformização e deu-lhe provimento.)
Importante frisar que o Superior Tribunal de Justiça, a quem compete dar a última palavra acerca da legislação federal, revisitou a questão, tendo assim decidido:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. MENOR SOB GUARDA. INCABIMENTO.
1. "Esta Corte já decidiu que, tratando-se de ação para fins de inclusão de menor sob guarda como dependente de segurado abrangido pelo Regime Geral da Previdência Social - RGPS, não prevalece o disposto no art. 33, § 3º do Estatuto da Criança e Adolescente em face da alteração introduzida pela Lei nº 9.528/97." (REsp nº 503.019/RS, Relator Ministro Paulo Gallotti, in DJ 30/10/2006).2
2. Embargos de divergência acolhidos.
(EREsp 642915 / RS EMBARGOS DE DIVERGENCIA NO RECURSO ESPECIAL 2007/0000548-7 Relator(a) Ministro HAMILTON CARVALHIDO (1112) Órgão Julgador TERCEIRA SEÇÃO Data do Julgamento 26/03/2008 Data da Publicação/Fonte DJ 30.06.2008 p. 1)
PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PENSÃO POR MORTE. ÓBITO DO INSTITUIDOR DA PENSÃO OCORRIDO APÓS ALTERAÇÃO LEGISLATIVA NO ART. 16. DA LEI N. 8.213/1991. MENOR SOB GUARDA EXCLUÍDO DO ROL DE DEPENDENTES PARA FINS PREVIDENCIÁRIOS. BENEFÍCIO INDEVIDO. SÚMULA 83/STJ. INCIDÊNCIA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
- Esta Corte Superior firmou compreensão de que, se o óbito do instituidor da pensão por morte ocorreu após a alteração legislativa promovida no art. 16. da Lei n. 8.213/1991 pela Lei n. 9.528/97 - hipótese dos autos -, tal benefício não é devido ao menor sob guarda.
- Não há como afastar a aplicação da Súmula 83/STJ à espécie, pois a Corte a quo dirimiu a controvérsia em harmonia com a jurisprudência deste Tribunal Superior, que, em vários julgados, também já rechaçou a aplicabilidade do art. 33, § 3º, da Lei n. 8.069/1990, tendo em vista a natureza específica da norma previdenciária.
Agravo regimental desprovido.
(AgRg no REsp 1285355 / ES AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2011/0240030-8 Relator(a) Ministra MARILZA MAYNARD (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/SE) (8300) Órgão Julgador QUINTA TURMA Data do Julgamento 26/02/2013 Data da Publicação/Fonte DJe 04/03/2013)
Muito importante atentar-se que esse tem sido o posicionamento sedimentado do STJ sobre a questão. Alerta-se que muitos julgados encontrados que conduzem em sentido contrário são relativos à outro sistema previdenciário1, alguns até de regimes próprios estaduais, mas não do Regime Geral da Previdência Social.2
A propósito, vale frisar que os julgados da TNU tem frisado inexistir divergência no Superior Tribunal de Justiça sobre o tema e tem repetido essa constatação, sistematicamente, na elaboração das ementas de julgamento. A exemplo do julgado já transcrito acima, vale colacionar a mais a seguinte emenda (ainda que repetitiva e de mesmo teor), a fim de que inconteste fique: a) a não oscilação do STJ sobre o tema e seu posicionamento; b) o posicionamento da Turma Nacional de Uniformização. Segue:
PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. MENOR SOB GUARDA. IMPOSSIBILIDADE.CONFLITO APARENTE DE NORMAS. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO PREVIDENCIÁRIA.
Divergência com a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça inexistente. Comprovada contrariedade entre a Turma Recursal de SP e a Turma Recursal do Paraná. Menor sob guarda judicial, nos moldes do art. 16, §2º da Lei 8.213/91, não tem direito a perceber pensão por morte. Afastada a aplicação do art. 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente por ser norma de cunho genérico, cuja incidência é afastada pelas leis específicas.
Incidente de uniformização conhecido e provido
PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO DE INTERPRETAÇÃO DE LEI FEDERAL Processo: 200570510039066 Órgão Julgador: Turma Nacional de Uniformização Data 26/03/2007
Conclusão
A alteração promovida na legislação previdenciária excluiu o menor sob guarda do rol de dependentes do Regime Geral da Previdência Social, não sendo oponível a esta alteração os artigos, tacitamente revogados, do ECA.
Notas
1 A serviço da honestidade, registra-se que os únicos votos em sentido contrário refletem apenas o posicionamento da Ministra Laurita Vaz, tido, expressamente, como entendimento isolado no âmbito daquela Corte.
2 Dando conta deste equívoco e ressaltando o posicionamento firme do STJ quanto a não inclusão do menor sob guarda como dependente, ver o analítico voto lançado pelo Relator Juiz Federal Adilson Pereira Nobre Júnior no processo 200271020101042 julgado pela TNU.